Gabriel García Márquez
continuando... Então ficou sabendo. Antes de empreender a viagem Lorenzo Daza tinha
cometido o erro de anunciá-la pelo telégrafo a seu cunhado Lisímaco Sánchez, e
este por sua vez mandara a notícia a sua vasta e complicada parentela, disseminada
em numerosos povoados e caminhos da província. De maneira que Florentino Ariza
pôde não só averiguar o itinerário completo como estabelecer uma grande
irmandade de telegrafistas para seguir o rastro de Fermina Daza até a última
rancharia do Cabo da Vela. Isto lhe permitiu manter com ela uma comunicação
intensa desde que chegou a Valledupar, onde ficou três meses, até o fim da viagem
em Riohacha, ano e meio depois, quando Lorenzo Daza aceitou como fato que a
filha havia afinal esquecido, e resolveu voltar para casa. Talvez ele mesmo não
estivesse consciente de quanto relaxara sua vigilância, distraído como estava com os
agrados dos parentes políticos, que depois de tantos anos haviam abdicado de seus
preconceitos tribais, admitindo-o de coração aberto como um dos seus. Embora não
tivesse esse propósito, a visita foi uma reconciliação tardia. Com efeito, a família de
Fermina Sánchez se opusera a todo custo a que ela se casasse com um imigrante
sem origem, falador e bruto, que estava sempre de passagem em todos os lugares,
com um negócio de mulas xucras que parecia demasiado simples para ser limpo.
Lorenzo Daza se empenhava a fundo, porque sua pretendida era a mais apreciada de
uma família típica da região: uma cáfila intrincada de mulheres corajosas e homens
de coração terno e gatilho fácil, perturbados até a demência pelo sentido da honra.
Contudo, Fermina Sánchez se sentou em seu capricho com a determinação cega dos
amores contrariados, e se casou com ele a despeito da família, com tanta pressa e
tantos mistérios que dava a impressão de fazê-lo menos por amor do que para
cobrir com um manto sacramentai algum descuido prematuro.
Vinte e cinco anos depois, Lorenzo Daza não se dava conta de que sua
intransigência com os amoricos da filha era uma repetição viciosa de sua própria
história, e se lamentava de sua desgraça perante os mesmos cunhados que se
haviam oposto a ele como estes se haviam lamentado outrora perante os seus. Mas
o tempo que ele perdia em lamentações, sua filha o ganhava nos amores. Enquanto
ele andava castrando bezerros e amansando mulas nas terras felizes dos cunhados,
ela passeava à rédea solta num tropel de primas comandadas por Hildebranda
Sánchez, a mais bela e prestimosa, cuja paixão sem futuro por um homem vinte
anos mais velho, casado e com filhos, se conformava com olhares furtivos.
Depois da prolongada estada em Valledupar prosseguiram viagem pelas
quebradas da serra, através de campinas floridas e mesetas de sonho, e em todos os
povoados foram recebidos como no primeiro, com músicas e petardos, e com novas
primas confabuladas e mensagens pontuais nas agências telegráficas. Em breve
Fermina Daza viu que a tarde de sua chegada a Valledupar não tinha sido
extraordinária e sim que naquela província feraz todos os dias da semana eram
vividos como se fossem de festa. Os visitantes dormiam onde os apanhasse a noite e
comiam onde a fome os achava, pois eram casas de portas abertas onde sempre
havia uma rede pendurada e um cozido de três carnes fervendo no fogão, para o
caso de alguém chegar antes do seu telegrama de aviso, como em geral acontecia.
Hildebranda Sánchez acompanhou a prima o resto da viagem, guiando-a com pulso
alegre através dos carrascais do sangue até suas fontes de origem. Fermina Daza se
reconheceu, se sentiu senhora de si mesma pela primeira vez, se sentiu
acompanhada e protegida, os pulmões cheios de um ar de liberdade que lhe
restituiu o sossego e a vontade de viver. Nos seus últimos anos ainda evocava
aquela viagem, cada vez mais recente na memória, com a lucidez perversa da
nostalgia.
Uma noite voltou do passeio diário aturdida pela revelação de que não só se
podia ser feliz sem amor como também contra o amor. A revelação a alarmou,
porque uma de suas primas tinha surpreendido uma conversa dos pais com Lorenzo
Daza na qual este tinha sugerido a ideia de concertar o casamento da filha com o
herdeiro único da fortuna fabulosa de Cleofás Moscote, Fermina Daza o conhecia.
Vira-o caracolando pelas praças seus cavalos perfeitos, com jaezes tão ricos que
pareciam paramentos de missa, e era elegante e destro, e tinha umas pestanas de
sonhador que faziam suspirar as próprias pedras, mas ela o comparou à lembrança
que tinha de Florentino Ariza sentado embaixo das amendoeiras da pracinha, pobre
e escaveirado, com o livro de versos no colo, e não encontrou sombra de dúvida no
seu coração.
Naqueles dias, Hildebranda Sánchez andava delirando de ilusões depois de
visitar uma pitonisa cuja clarividência a havia assombrado. Preocupada com as
intenções do pai, Fermina Daza também foi consultá-la. As cartas do baralho lhe
anunciaram que não havia em seu futuro nenhum obstáculo a um casamento longo
e feliz, e o prognóstico lhe devolveu o ânimo, pois não concebia que um destino tão
venturoso pudesse ser com homem que não fosse o que amava. Exaltada por essa
certeza, assumiu o comando do seu arbítrio. E por isso a correspondência
telegráfica com Florentino Ariza deixou de ser um concerto de intenções e
promessas ilusórias, tornando-se metódica e prática, e mais intensa do que nunca.
Marcaram datas, estabeleceram meios e modos, empenharam suas vidas na
determinação comum de se casarem sem consultar ninguém, onde fosse e como
fosse, logo que se reencontrassem. Fermina Daza considerava tão severo este
compromisso que a noite em que seu pai lhe deu permissão para que assistisse a
seu primeiro baile de adultos, na aldeia de Fonseca, a ela não pareceu decente
aceitar sem o consentimento de seu prometido. Florentino Ariza estava aquela noite
no hotel suspeito, jogando baralho com Lotário Thugut, quando lhe avisaram da
chegada de mensagem telegráfica urgente.
Era o telegrafista de Fonseca que havia conjugado sete postos intermediários
para que Fermina Daza pedisse licença para ir ao baile. Obteve-a, mas não se
conformou com a simples resposta afirmativa, pedindo prova de que na realidade
era Florentino Ariza quem estava operando o manipulador no outro extremo da
linha. Mais atônito do que lisonjeado, ele compôs uma frase de identificação: Diga
lhe que eu juro pela deusa coroada. Fermina Daza reconheceu o santo e senha, e
ficou no seu primeiro baile de gente grande até as sete da manhã, quando teve de
trocar de roupa às carreiras para não chegar tarde à missa. Nessas alturas, tinha no
fundo do baú mais cartas e telegramas do que os que o pai lhe tirara, e já se
comportava com atitudes de mulher casada. Lorenzo Daza interpretou aquelas
mudanças no seu modo de ser como prova de que a distância e o tempo a haviam
curado das fantasias juvenis, mas nunca lhe apresentou o projeto do casamento
combinado. As relações dos dois ficaram fluidas, dentro das reservas formais que
ela lhe havia imposto desde a expulsão da tia Escolástica, o que lhes permitiu uma
convivência tão cômoda que ninguém teria duvidado que se alicerçava no carinho.
Foi nessa época que Florentino Ariza resolveu lhe contar nas cartas que se
empenhava em resgatar para ela o tesouro do galeão submerso. Era coisa certa,
como tinha sentido num sopro de inspiração, uma tarde luminosa em que o mar
parecia calçado de alumínio, tal a quantidade de peixes postos a boiar por plantas
narcóticas usadas pelos pescadores. Todas as aves do céu se haviam alvoroçado com
a matança, e os pescadores precisavam afugentá-las com os remos para que não
lhes disputassem os frutos daquele milagre proibido. O emprego do barbasco, que
apenas adormecia os peixes, estava interditado por lei desde os tempos da Colônia,
mas continuou sendo prática comum em pleno dia entre os pescadores do Caribe,
até que foi substituído pela dinamite. Uma das diversões de Florentino Ariza,
enquanto durou a viagem de Fermina Daza, era ver do cais como os pescadores
carregavam as canoas com redes inchadas de peixes adormecidos. Ao mesmo
tempo, uma malta de meninos que nadavam como tubarões pedia aos curiosos que
atirassem moedas para que as fossem fisgar no fundo da água. Eram os mesmos
que nadavam com igual propósito ao encontro dos transatlânticos, e sobre os quais
se haviam escrito tantos relatos de viagem nos Estados Unidos e na Europa, pela
sua mestria na arte de nadar debaixo d'água. Florentino Ariza os conhecia da vida
inteira, de antes de conhecer o amor, mas nunca lhe havia ocorrido que talvez
fossem capazes de pôr à tona a fortuna do galeão. Ocorreu-lhe essa tarde, e do
domingo seguinte até o regresso de Fermina Daza, quase um ano depois, teve um
motivo adicional de delírio.
Euclides, um dos meninos nadadores, se animou tanto quanto ele com a ideia de
uma exploração submarina, depois de uma conversa de não mais de dez minutos.
Florentino Ariza não lhe revelou o verdadeiro objeto do empreendimento, mas se
informou a fundo sobre suas habilidades de mergulho e navegação. Perguntou-lhe
se conseguia descer sem ar a vinte metros de profundidade, e Euclides disse que
sim. Perguntou se estava em condições de levar sozinho uma canoa de pescador
pelo mar alto em plena borrasca, sem instrumentos além do próprio instinto, e
Euclides disse que sim. Perguntou se seria capaz de localizar um lugar exato
dezesseis milhas marítimas a noroeste da ilha maior do arquipélago de Sotavento, e
Euclides disse que sim. Perguntou se era capaz de navegar à noite orientando-se
pelas estrelas, e Euclides disse que sim. Perguntou se estava disposto a fazê-lo
recebendo a mesma diária que lhe pagavam os pescadores para ajudá-los a pescar, e
Euclides disse que sim, mas com uma sobretaxa de cinco réis aos domingos.
Perguntou se sabia se defender dos tubarões, e Euclides disse que sim, pois tinha
artes mágicas de afugentá-los. Perguntou se era capaz de guardar um segredo ainda
que o pusessem nas máquinas de tormentos do palácio da Inquisição, e Euclides
disse que sim, pois não dizia que não a nada, e sabia dizer sim com tanta convicção
que não havia jeito de duvidar dele. No fim, fez as contas das despesas: o aluguel da
canoa, o aluguel dos remos, o aluguel de instrumentos de pesca para que ninguém
desconfiasse da verdadeira intenção das excursões. Era ainda preciso levar comida,
um garrafão de água doce, uma lamparina, um maço de velas de sebo e um chifre de
caçador para pedir auxílio em caso de emergência.
Tinha uns doze anos, e era ligeiro e astuto, e falava sem parar e tinha um corpo
de enguia que parecia feito para que ele se esgueirasse por qualquer escotilha. A
vida ao ar livre lhe havia curtido tanto a pele que era impossível imaginar sua cor
original, o que tornava mais radiantes seus grandes olhos amarelos. Florentino
Ariza resolveu de pronto que era o cúmplice perfeito para uma aventura de
semelhantes possibilidades, e a atacaram sem mais delongas no domingo seguinte.
Zarparam do porto dos pescadores ao amanhecer, bem providos e melhor
dispostos. Euclides quase nu, só com a tanga que vestia sempre, e Florentino Ariza
com a sobrecasaca, o chapéu de trevas, as botinas de verniz e o laço de poeta no
pescoço, e um livro para se entreter na travessia até as ilhas. Desde o primeiro
domingo viu que Euclides era de fato perito navegante e bom mergulhador, e que
tinha uma prática assombrosa da natureza do mar e da sucata da baía. Podia contar
com mínimos pormenores a história de cada casco velho de navio roído de oxido,
sabia a idade de cada boia, a origem de qualquer escombro, o número de elos da
corrente com que os espanhóis fechavam a entrada da baía. Temendo que soubesse
também qual o propósito de sua expedição, Florentino Ariza lhe fez algumas
perguntas insidiosas, comprovando que Euclides não tinha a menor suspeita acerca
do galeão afundado.
Ao ouvir pela primeira vez a história do tesouro no hotel, Florentino Ariza se
informara o mais possível sobre a crônica dos galeões. Ficou sabendo que o San
José não estava só em seu leito de corais. Era a nave capitania da Frota de Terra
Firme, e chegara aqui depois de maio de 1708, procedente da feira legendária de
Portobello, no Panamá, onde carregara parte de sua fortuna: trezentos baús com
prata do Peru e Veracruz, e cento e dez baús de pérolas juntadas e contadas na ilha
de Contadora. Durante o longo mês em que aqui permaneceu, de dias e noites de
festas populares, puseram a bordo o resto do tesouro destinado a tirar da pobreza o
reino da Espanha: cento e dezesseis baús de esmeraldas de Muzo e Somondoco, e
trinta milhões de moedas de ouro.
A Frota de Terra Firme estava integrada por nada menos que doze embarcações
de diferentes tamanhos, e zarpou deste porto comboiada por uma esquadra
francesa, muito bem armada, que mesmo assim não pôde salvar a expedição diante
dos canhonaços certeiros da esquadra inglesa, sob as ordens do comandante Carlos
Wager, que a esperou no arquipélago de Sotavento, à saída da baía. De modo que o
San José não era a única nave afundada, embora não houvesse certeza documental
de quantas haviam sucumbido e quantas escapado ao fogo dos ingleses. Do que não
havia dúvida era que a nave capitania fora das primeiras a ir a pique, com a
tripulação completa e o comandante imóvel em seu castelo de proa, e que levava a
carga principal.
continua na página 071...
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Leia também:
Amor nos Tempos de Cólera: Então ficou sabendo
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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