segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Mas seus rogos não foram atendidos

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      Mas seus rogos não foram atendidos. Ao contrário. Isto sucedia na época em que Florentino Ariza se confessou à mãe e ela o dissuadiu de entregar as setenta páginas de galanteios, e por isso Fermina Daza continuou esperando todo o resto do ano. Sua ansiedade se convertia em desespero à medida que se aproximavam as férias de dezembro, pois se perguntava sem sossego o que ia fazer para vê-lo, e para que ele a visse, durante os três meses em que não iria ao colégio. As dúvidas continuavam sem solução na noite de Natal, quando estremeceu com a sensação de que ele a olhava do meio da multidão da missa do galo, e essa inquietação lhe sufocou o coração. Não se atreveu a voltara cabeça, porque estava sentada entre o pai e a tia, e teve que se dominar para que não percebessem sua perturbação. Mas na desordem da saída sentiu-o tão iminente, tão nítido no tumulto, que uma força irresistível a obrigou a olhar por cima do ombro quando abandonava o templo pela nave central, e então viu a dois palmos de seus olhos os outros olhos de gelo, o rosto lívido, os lábios petrificados pelo susto do amor. Transtornada por sua própria audácia, se agarrou ao braço da tia Escolástica para não cair, e esta sentiu o suor glacial da mão através da mitene de renda, e a reconfortou com um sinal imperceptível de cumplicidade sem condições. Em meio ao estrondo dos foguetes e dos tambores, das lanternas coloridas nos portais e clamor das multidões sedentas de paz, Florentino Ariza vagou feito um sonâmbulo até o raiar do dia vendo a festa através das lágrimas, aturdido pela alucinação de que era ele e não Deus que tinha nascido aquela noite.
      O delírio aumentou a semana seguinte, à hora da sesta, quando passou sem esperanças pela casa de Fermina Daza, e viu que ela e a tia estavam sentadas embaixo das amendoeiras do portal. Era a repetição ao ar livre do quadro que tinha visto naquela primeira tarde no quarto de costura: a menina tomando a lição de leitura da tia. Mas Fermina Daza estava mudada sem o uniforme escolar, pois vestia uma túnica de linho com muitas pregas que lhe caía dos ombros feito um peplo, e tinha na cabeça uma grinalda de gardênias naturais que lhe dava a aparência de uma deusa coroada. Florentino Ariza se sentou na praça, onde tinha certeza de ser visto, e então não apelou para o recurso da leitura fingida, permanecendo com o livro aberto e os olhos fixos na donzela ilusória, que não lhe retribuiu sequer com um olhar de caridade.
      A princípio pensou que a aula debaixo das amendoeiras era uma mudança casual, devida talvez às obras intermináveis da casa, mas nos dias seguintes compreendeu que Fermina Daza estaria ali, ao alcance da sua vista, todas as tardes à mesma hora dos três meses das férias, e essa certeza lhe infundiu ânimo novo. Não teve a impressão de ser visto, não notou nenhum sinal de interesse ou repúdio, mas na frieza dela havia um resplendor diferente que o animava a persistir. Em breve, uma tarde de finais de janeiro, a tia pôs o trabalho na cadeira e deixou a sobrinha só no portal, no tapete de folhas amarelas caídas das amendoeiras. Animado pela suposição irrefletida de que aquela era uma oportunidade combinada, Florentino Ariza atravessou a rua e se colocou na frente de Fermina Daza, e tão perto dela que sentiu a trilha, a forma de sua respiração e o hálito floral com que havia de identificá-la pelo resto da vida. Falou a ela com a cabeça erguida e com uma determinação que só voltaria a ter meio século depois, e pelo mesmo motivo.

— A única coisa que lhe peço é que receba uma carta minha — lhe disse.

     Não era a voz que Fermina Daza esperava dele: era nítida, e com uma autoridade que não tinha nada a ver com suas maneiras lânguidas. Sem afastar a vista do bordado, respondeu: "Não posso recebê-la sem permissão do meu pai."
      Florentino Ariza estremeceu com o calor daquela voz, cujos timbres graves não ia esquecer pelo resto da vida. Mas se manteve firme, e respondeu sem perda de tempo: "Consiga a permissão." Depois adoçou a ordem com uma súplica: "É um assunto de vida ou morte." Fermina Daza não o olhou, não interrompeu o bordado, mas sua decisão entreabriu uma porta por onde cabia o mundo inteiro.

 — Volte todas as tardes — lhe disse — e espere que eu mude de cadeira.

      Florentino Ariza não entendeu o que ela quis dizer, até a segunda-feira da semana seguinte, quando viu do seu banco da praça a mesma cena de sempre com uma única variação: quando tia Escolástica entrou na casa, Fermina Daza se levantou e sentou na outra cadeira. Florentino Ariza, com uma camélia branca na botoeira da sobrecasaca, atravessou então a rua e parou diante dela. Disse: "Este é o maior momento de minha vida." Fermina Daza não ergueu a vista para ele, examinando, isto sim, os arredores com um olhar circular, e viu as ruas desertas na modorra da estação seca e um remoinho de folhas mortas arrastadas pelo vento.

 — Entregue-a — disse.

      Florentino Ariza tinha pensado em levar-lhe as setenta folhas que então já poderia declamar de memória de tanto que as lera, mas se decidiu por uma meia página sóbria e explícita, em que só prometia o essencial: sua fidelidade a toda prova e seu amor para sempre. Tirou-a do bolso interno da sobrecasaca e a colocou diante dos olhos da bordadeira atribulada que ainda não tinha ousado olhá-lo. Ela viu o envelope azul tremendo na mão petrificada de terror, e levantou o bastidor para que ele ali pusesse a carta, pois não podia admitir que também nos dedos dela se notasse o tremor. Aí aconteceu: um pássaro se sacudiu na folhagem da amendoeira, e sua cagada caiu bem em cima do bordado. Fermina Daza afastou o bastidor, escondeu-o atrás da cadeira para que Florentino Ariza não descobrisse o que tinha acontecido, e o olhou pela primeira vez com o rosto em chamas. Impassível, carta na mão, Florentino Ariza disse: "Dá sorte." Ela lhe agradeceu com seu primeiro sorriso, e quase lhe arrebatou a carta, que dobrou e escondeu no corpinho. Ele lhe ofereceu então a camélia que trazia na lapela. Ela a recusou: "É uma flor de compromisso." Em seguida, consciente de que seu tempo se esgotava, refugiou-se de novo em sua compostura.

 — Agora vá embora — disse — e não volte mais até que eu lhe avise.

      Antes que Florentino Ariza lhe contasse que a tinha visto, sua mãe já o descobriria, porque ele perdeu a fala e o apetite e passava as noites em claro rolando na cama. Mas quando começou a esperar a resposta à sua primeira carta, sua ansiedade se complicou com caganeiras e vômitos verdes, perdeu o sentido da orientação e passou a sofrer desmaios repentinos, e a mãe se aterrorizou porque seu estado não se parecia com as desordens do amor e sim com os estragos do cólera. O padrinho de Florentino Ariza, antigo homeopata que tinha sido confidente de Trânsito Ariza desde seus tempos de amante oculta, se alarmou também à primeira vista com o estado do enfermo, porque tinha o pulso tênue, a respiração rascante e os suores pálidos dos moribundos. Mas o exame revelou que não tinha febre, nem dor em nenhuma parte, e a única coisa que sentia de concreto era uma necessidade urgente de morrer. Bastou ao médico um interrogatório insidioso, primeiro a ele e depois à mãe, para comprovar uma vez mais que os sintomas do amor são os mesmos do cólera. Receitou infusões de flores de tília para entreter os nervos e sugeriu uma mudança de ares para buscar consolo na distância, mas aquilo por que anelava Florentino Ariza era todo o contrário: gozar seu martírio.
      Trânsito Ariza era uma quadrarona livre com um instinto da felicidade frustrado pela pobreza, e se deleitava com as penas do filho como se fossem suas. Fazia com que bebesse as poções quando o sentia delirar e o enroupava em mantas de lã para enganar os calafrios, mas ao mesmo tempo lhe dava ânimo para confortá-lo em sua prostração.

 — Aproveite agora que você é jovem para sofrer o mais que puder — lhe dizia — que estas coisas não duram toda a vida.

      Na Agência Postal, é claro, não pensavam o mesmo. Florentino Ariza estava entregue à desídia, e andava tão distraído que confundia as bandeiras com que anunciava a chegada do correio, e numa quarta-feira içava a alemã quando o navio aportado era o da Companhia Leyland com o correio de Liverpool, e içava em qualquer dia a dos Estados Unidos quando o navio que chegava era o da Compagnie Générale Transatlantique com o correio de Saint-Nazaire. As confusões do amor causavam tais transtornos na separação das cartas e provocavam tantos protestos do público que se Florentino Ariza não ficou sem emprego foi porque Lotário Thugut o manteve no telégrafo e o levou a tocar violino no coro da catedral. Tinham uma aliança difícil de entender devido à diferença de idades, pois podiam ter sido avô e neto, mas se davam tão bem no trabalho quanto nas tascas do porto, onde iam parar os tresnoitados, sem escrúpulos de classe, desde os beberrões sem eira nem beira até os rapazes de família, vestidos a rigor, que fugiam das festas elegantes do Clube Social para comer peixe frito com arroz de coco. Lotário Thugut costumava ir para lá depois do último turno do telégrafo, e muitas vezes amanhecia bebendo ponche da Jamaica e tocando acordeão com as tripulações de loucos das goletas das Antilhas. Era corpulento, parrudo, com uma barba dourada e um barrete frígio que usava para sair à noite, e só lhe faltava uma réstia de campânulas para ser idêntico a Papai Noel. Ao menos uma vez por semana acabava com uma pássara da noite, como ele as chamava, das muitas que vendiam amores de emergência num hotel de dormida para marinheiros. Quando conheceu Florentino Ariza, a primeira coisa que fez com um certo deleito magistral foi iniciá-lo nos segredos do seu paraíso. Escolhia para ele as pássaras que lhe pareciam melhores, discutia com elas o preço e o modo, e se prontificava a pagar adiantado e com o seu dinheiro o serviço. Mas Florentino Ariza não aceitava: era virgem, e havia proposto a si mesmo não deixar de sê-lo, se não fosse por amor.
      O hotel era um palácio colonial que já conhecera dias melhores, e os grandes salões e os aposentos de mármore estavam divididos em cubículos de papelão com buracos de alfinete, pois tanto se alugavam para fazer como para ver. Falava-se de enxeridos cujos olhos tinham sido furados com agulhas de tricô, de outro que reconheceu a própria esposa naquela que estava espionando, e de cavalheiros de prosápia que entravam fantasiados de verdureiros para se aliviarem com os contramestres de passagem, e de tantos outros percalços de bisbilhoteiros e bisbilhotados, que a mera ideia de se expor dentro de um quarto parecia pavorosa a Florentino Ariza. Por isso Lotário Thugut não conseguiu persuadi-lo de que ver e se deixar ver eram requintes de príncipes na Europa.
      Ao contrário do que fazia crer sua corpulência, Lotário Thugut tinha um bilro de querubim que parecia um botão de rosa, mas isto devia ser um defeito afortunado, porque as pássaras mais experientes se disputavam a sorte de dormir com ele, e seus alaridos de esfaqueadas abalavam as fundações do palácio e faziam tremer de espanto seus fantasmas. Diziam que usava uma pomada de veneno de víbora que excitava a sela turca das mulheres, mas ele jurava não dispor de recursos diferentes daqueles que Deus lhe havia dado. Dizia, morto de rir: "É puro amor." Muitos anos tiveram que passar para que Florentino Ariza compreendesse que talvez o dissesse com razão. Acabou de se convencer num tempo mais avançado de sua educação sentimental, quando conheceu um homem que se dava uma vida de rei explorando três mulheres ao mesmo tempo. As três lhe prestavam contas ao amanhecer, humilhadas a seus pés para se fazerem perdoar pelas coletas exíguas, e a única gratificação por que anelavam era que ele fosse para a cama com a que mais dinheiro trouxesse. Florentino Ariza achava que só o terror podia induzir a tamanha indignidade. Contudo, uma das três moças o surpreendeu com a verdade contrária.

 — Estas coisas — lhe disse — só podem ser feitas por amor.

      Não foi tanto por suas virtudes de fornicador como por sua graça pessoal que Lotário Thugut chegou a ser um dos clientes mais apreciados do hotel. Florentino Ariza, com seu jeito silencioso e escorregadiço, ganhou também o apreço do dono, e na época mais árdua de seus quebrantos costumava se trancar para ler versos e folhetins lacrimosos nos quartinhos sufocantes, e seus sonhos deixavam ninhos de escuras andorinhas nos balcões e rumores de beijos e bater de asas nos marasmos da sesta. Ao entardecer, quando baixava o calor, era impossível não escutar as conversações dos homens que vinham buscar um desafogo para o dia num amor apressado. Assim se inteirou Florentino Ariza de muitas infidelidades e mesmo de alguns segredos de estado que os clientes importantes e as próprias autoridades locais confiavam a suas amantes efêmeras sem o cuidado de não serem ouvidos nos quartos vizinhos. Foi também assim que se inteirou de que a quatro léguas marítimas ao norte do arquipélago de Sotavento jazia afundado desde o século XVIII um galeão espanhol carregado com mais de quinhentos bilhões de pesos em ouro puro e pedras preciosas. O relato o assombrou, mas não voltou a pensar nele até uns meses depois, quando sua loucura de amor lhe alvoroçou as ânsias de resgatar a fortuna submersa para que Fermina Daza se banhasse em tanques de ouro.
      Anos mais tarde, quando procurava lembrar como era na realidade a donzela idealizada com a alquimia da poesia, não conseguia separá-la das tardes dilacerantes daqueles tempos. Mesmo quando a espreitava sem ser visto, nos dias de ansiedade em que esperava a resposta à sua primeira carta, a via transfigurada na reverberação das duas da tarde sob o chuvisco de flores das amendoeiras, que estavam sempre em abril qualquer que fosse o tempo do ano. Só lhe interessava então acompanhar Lotário Thugut ao violino no mirante privilegiado do coro porque dali via ondular a túnica dela com a brisa dos cânticos. Mas seu próprio desvario acabou por estragar-lhe o prazer, pois a música mística era tão inócua para seu estado de alma que tratava de avivá-la com valsas de amor, e Lotário Thugut se viu obrigado a despedi-lo do coro. Foi essa a época em que cedeu aos ímpetos de comer as gardênias que Trânsito Ariza cultivava nos canteiros do pátio, e desse modo conheceu o sabor de Fermina Daza. Foi também a época em que encontrou por acaso num baú de sua mãe um frasco de um litro da água-de-colônia que vendiam de contrabando os marinheiros da Hamburg American Line e não resistiu à tentação de prová-la para buscar outros sabores da mulher amada. Continuou bebendo do frasco até o amanhecer, embebedando-se de Fermina Daza com goles abrasivos, primeiro nas tascas do porto e depois absorto no mar, que contemplava do cais onde faziam amores precários os amantes sem teto, até que sucumbiu à inconsciência. Trânsito Ariza, que o havia esperado até as seis da manhã com a alma por um fio, buscou-o nos esconderijos menos imagináveis, e pouco depois do meio dia o encontrou chafurdando num charco de vômitos fragrantes num remanso da baía onde vinham aportar os afogados.
     Aproveitou a pausa da convalescença para repreendê-lo pela passividade com que esperava a resposta à carta. Lembrou a ele que os fracos não entram jamais no reino do amor, que é um reino impiedoso e mesquinho, e que as mulheres só se entregam aos homens de ânimo resoluto, porque lhes infundem a segurança pela qual tanto anseiam para enfrentar a vida. Florentino Ariza assimilou a lição talvez mais do que devia. Trânsito Ariza não pôde dissimular um sentimento de orgulho, mais concupiscente do que maternal, quando o viu sair do armarinho com o terno de lã negra, o chapéu duro e o laço lírico no colarinho de celuloide, e lhe perguntou de brincadeira se ia a um enterro. Ele respondeu com as orelhas em fogo: "É quase a mesma coisa." Notou que ele mal podia respirar, de medo, mas sua determinação era invencível. Fez as advertências finais, deu a bênção, e lhe prometeu morrendo de rir outra garrafa de água-de-colônia para celebrarem juntos a conquista.

continua na página 052...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Mas seus rogos não foram atendidos
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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