sábado, 14 de setembro de 2024

O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (12)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida



O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA

continuando...

     Muitas vezes, por moralidade, hipocrisia, orgulho, timidez, a mulher obstina-se em sua mentira. "Muitas vezes, uma aversão pelo marido querido não foi percebida durante toda uma vida: chamam-na melancolia ou lhe dão qualquer outro nome", escreve Chardonne (Cf. Eve). Mas não é por não ser nomeada, que a hostilidade deixa de ser vivida. Imprime-se, com maior ou menor violência, pelo esforço que faz a mulher para recusar o domínio do esposo. Depois da lua de mel e do período de desatino que muitas vezes se lhe segue, ela tenta reconquistar a autonomia. Não é empresa fácil. Por ser amiúde mais idoso do que ela, por possuir em todo caso um prestígio viril, por ser por lei o "chefe da família", o marido detém uma superioridade moral e social; muitas vezes possui também, pelo menos aparentemente, uma superioridade intelectual. Tem sobre a mulher a vantagem da cultura ou pelo menos da formação profissional; desde a adolescência interessa-se pelos negócios do mundo; são seus negócios; conhece um pouco de direito, está a par da política, pertence a um partido, a um sindicato, a associações; trabalhador, cidadão, seu pensamento está empenhado na ação; enfrenta a prova da realidade contra a qual não se pode trapacear: isso equivale a dizer que o homem médio tem a técnica do raciocínio o gosto dos fatos e da experiência, certo senso crítico; é o de que ainda carecem numerosas jovens; mesmo se leram, assistiram a conferências, se se dedicaram por distração a alguma arte, seus conhecimentos acumulados mais ou menos ao acaso não constituem uma cultura; não é em consequência de um vício cerebral que raciocinam mal: é porque a prática não as obrigou a fazê-lo bem. Para elas, o pensamento é antes um jogo do que um instrumento; mesmo inteligentes, sensíveis, sinceras, elas não sabem, por falta de técnica intelectual, demonstrar suas opiniões, tirar as consequências que comportem. É por esse lado que um marido — mesmo mais medíocre — as dominará facilmente: saberá provar que tem razão ainda que não tendo. Nas mãos de um homem, a lógica é muitas vezes violência. Chardonne descreveu em Epithalame essa forma matreira de opressão. Mais idoso, mais culto e mais instruído do que Berthe, Albert vale-se da superioridade para negar qualquer valor às opiniões da mulher, quando não as partilha; prova-lhe infatigavelmente que tem razão; ela por seu lado obstina-se e recusa-se a outorgar qual quer conteúdo aos raciocínios do marido: ele aferra-se igual mente a suas ideias, eis tudo. Assim se agrava entre eles um mal-entendido sério. Ele não procura compreender sentimentos, reações que ela não sabe justificar habilmente mas que têm nela raízes profundas; ela não compreende o que pode haver de vivo sob a lógica pedante com que o marido a esmaga. Ele chega a irritar-se com uma ignorância que, entretanto, ela nunca lhe dissimulou e faz-lhe, como para desafiá-la, perguntas de astronomia; no entanto, sente-se lisonjeado por lhe orientar as leituras, por encontrar nela um auditor que domina sem dificuldade. Em uma luta em que a insuficiência intelectual a condena a ser sempre vencida, a jovem esposa não apela senão para o silêncio, ou as lágrimas, ou a violência: 

Com o cérebro ensurdecido, abatido pelos choques, Berthe não podia mais pensar quando ouvia alguma voz sincopada e estridente e Albert continuava a envolvê-la num zunido imperioso para estonteá-la, feri-la no desatino de seu espirito humilhado. . . Ela sentia-se vencida, desamparada ante as asperezas de uma argumentação inconcebível e para se livrar desse injusto poder gritou: Deixa-me em paz! Tais palavras pareciam-lhe fracas demais; deparou com um frasco de cristal na penteadeira e subitamente atirou-o em Albert... 

     Por vezes a mulher procura lutar. Mas, amiúde, ela aceita por bem ou por mal, como a Nora de A Casa das Bonecas [1] que o homem pense por ela; ele é que será a consciência do casal. Por timidez, inabilidade, preguiça, ela deixa ao homem o cuida do de forjar as opiniões que lhes serão comuns acerca de todos os assuntos gerais e abstratos. Uma mulher inteligente, culta, independente mas que admirara durante quinze anos um marido que julgava superior, dizia-me transtornada, depois da morte dele, que se vira, obrigada a decidir ela própria de suas convicções e de sua conduta: tenta ainda adivinhar o que ele teria pensado em cada circunstância. O marido compraz-se geralmente nesse papel de mentor e chefe [2]. Ao fim de um dia em que conhece dificuldades em suas relações com iguais, em que tem de submeter-se a superiores, ele gosta de se sentir um superior absoluto e oferecer verdades incontestadas [3]. Narra os acontecimentos do dia, dá razão a si mesmo contra seus adversários, feliz por encontrar na esposa um duplo que o confirma a si próprio; comenta o jornal e as notícias políticas, de bom grado lê em voz alta para a mulher, a fim de que a relação dela com a cultura não seja autônoma. Para ampliar sua autoridade, exagera com prazer a incapacidade feminina; ela aceita mais ou menos docilmente esse papel de subordinada. Sabe-se com que prazer espantado mulheres que lamentam sinceramente a ausência do marido descobrem em si mesmas, nessa oportunidade, possibilidades insuspeitadas; gerem os negócios, educam os filhos, decidem, administram sem qualquer auxílio. Sofrem quando a volta do marido as relega novamente à incompetência.
     0 casamento incita o homem a um imperialismo caprichoso: a tentação de dominar é a mais universal, a mais irresistível que existe; entregar o filho à mãe, entregar a mulher ao marido é cultivar a tirania na terra; muitas vezes não basta ao esposo ser aprovado, admirado, aconselhar, guiar: ele ordena, representa o papel de soberano. Todos os rancores acumulados em sua infância, durante sua vida, acumulados quotidianamente entre os outros homens cuja existência o freia e fere, ele descarrega em casa, acenando para a mulher com sua autoridade; mima a violência, a força, a intransigência: dá ordens com voz severa, ou grita, bate na mesa; essa comédia é para a mulher uma realidade quotidiana. Ele se acha tão convencido de seus direitos que a menor autonomia conservada pela mulher lhe parece uma rebeldia; gostaria de impedi-la de respirar sem ele. Ela, entre tanto, revolta-se. Mesmo se começou reconhecendo o prestígio viril, seu deslumbramento dissipa-se depressa. O filho percebe um dia que o pai não é senão um indivíduo contingente; a es posa descobre logo que não tem diante de si a grande figura do suserano, do chefe, do senhor e sim um homem; não vê nenhuma razão para se escravizar; a seus olhos ele não representa senão um ingrato e injusto dever. Por vezes, a mulher se submete com uma complacência masoquista; assume um papel de vítima e sua resignação não passa de uma censura silenciosa; mas muitas vezes, também, ela luta abertamente contra seu senhor, e por seu turno esforça-se por tiranizá-lo.
     O homem é ingênuo quando imagina que submeterá facilmente a mulher a suas vontades e a "formará" como quiser. "A mulher é o que dela faz o marido", diz Balzac; mas diz o contrário algumas páginas adiante. No terreno da abstração e da lógica, a mulher resigna-se amiúde a aceitar a autoridade masculina; mas quando se trata de ideias, de hábitos que a interessam realmente, ela lhe opõe uma tenacidade matreira. A influência da infância e da juventude é muito mais profunda nela do que no homem, pelo fato de que ela permanece mais encerrada em sua história individual. Do que adquiriu nesses períodos, não se desfaz nunca, o mais das vezes. 0 marido imporá à mulher uma opinião política, não lhe modificará as convicções religiosas, não lhe abalará as superstições: é o que verifica Jean Barois que imaginava conquistar uma in fluência real sobre a pequena devota que associou a sua vida. Diz, acabrunhado: "Um cérebro de menina cristalizado à sombra de uma cidade provinciana: todas as afirmações da tolice ignorante: não se arranca essa crosta". A despeito das opiniões aceitas, a despeito dos princípios que repete como um papagaio, a mulher conserva sua visão pessoal do mundo. Essa resistência pode torná-la incapaz de compreender um marido mais inteligente do que ela; ou, ao contrário, ela o erguerá acima da seriedade masculina, como acontece com as heroínas de Stendhal ou Ibsen. Por vezes — ou porque ele a tenha desiludido sexual mente, ou, ao contrário, porque a domine e ela queira vingar-se, — a mulher deliberadamente apega-se por hostilidade ao homem, a valores que não são os dele; apoia-se na autoridade da mãe, do pai, de um irmão, de qualquer personalidade masculina que se lhe afigure "superior", de um confessor, de uma irmã de caridade, tão-somente para o enfrentar. Ou, sem lhe opor nada de positivo, ela se esforça por contradizê-lo sistematicamente, atacá-lo, magoá-lo; esforça-se por inculcar-lhe um complexo de inferioridade. Naturalmente, tendo as capacidades necessárias, com prazer-se-á em deslumbrar o marido, em lhe impor seus palpites, suas opiniões, suas diretrizes; apossar-se-á de toda a autoridade moral. Nos casos em que lhe for impossível contestar a supremacia espiritual do marido, tentará conseguir seu revide no terreno sexual. Ou recusa-se a ele, como Mme Michelet, de quem Halévy nos diz:

Queria dominar em tudo; na cama, porquanto era forçoso suportá-lo e à mesa de trabalho. Era a mesa que ela visava e Michelet a vedou enquanto ela vedava a cama. Durante muitos meses o casal foi casto. Finalmente, Michelet teve a cama e Athénais Mialaret logo depois teve a mesa: nascera escritora e era em verdade seu lugar... 

     Ou ela se retesa nos braços masculinos e lhe inflige a afronta da frigidez; ou mostra-se caprichosa, coquete, impondo-lhe uma atitude de suplicante; flerta, provoca ciúmes, engana-o: de uma maneira ou de outra tenta humilhá-lo em sua virilidade. Se a prudência a impede de ir até o fim, encerra ela, pelo menos orgulhosamente em seu coração, o segredo de sua frieza altiva. Confia-o, por vezes, a um diário, de preferência a suas amigas: numerosas mulheres casadas divertem-se em se contar mutuamente "truques" de que se valem para fingir experimentar um prazer que pretendem não sentir; riem-se ferozmente da vaidosa ingenuidade de suas vítimas; tais confidencias talvez sejam igualmente uma comédia: entre a frigidez e a vontade de frigidez, a fronteira não é muito precisa. Em todo caso, elas se imaginam insensíveis e assim satisfazem seu ressentimento. Há mulheres — as que se as semelham à fêmea do louva-a-deus — que querem triunfar tanto à noite como de dia: são frias no amor, desdenhosas nas conversas, tirânicas nas condutas. Assim é que — segundo o testemunho de Mabel Dodge — Frieda se conduzia com Lawrence. Não podendo negar a superioridade intelectual dele, pretendia impor-lhe sua própria visão do mundo, em que só os valores sexuais contavam.

Ele tinha de encarar a vida através dela e era o papel dela vê-la do ponto de vista do sexo. Era deste ponto de vista que ela se colocava para aceitar ou condenar a vida. 

     Ela declarou um dia a Mabel Dodge:

É preciso que ele receba tudo de mim. Quando eu não estou presente ele não sente nada; nada, e é de mim que recebe seus livros, continuou ela com ostentação. Ninguém o sabe. Fiz páginas inteiras desses livros para ele.

     Entretanto, Frieda tem necessidade premente de provar a si mesma que ela lhe é necessária; exige que ele se ocupe dela incessantemente: se não o faz espontaneamente, força-o a fazê-lo:

Frieda muito conscienciosamente aplicava-se a nunca permitir que suas relações com Lawrence se desenvolvessem na calma que se estabelece geralmente entre casados. Logo que o sentia entregar-se ao hábito, lançava-lhe uma bomba. Fazia de modo que ele não a esquecesse nunca. Essa necessidade de uma atenção perpétua. .. a arma de que a gente se serve contra um inimigo. Frieda sabia feri-lo nos lugares sensíveis. . . à noite até o insulto. Se durante o dia não lhe dava atenção, ela ia à noite até o insulto.

     A vida conjugal tornara-se para eles uma série de cenas indefinidamente recomeçadas e nas quais nenhum deles queria ceder, dando à menor altercação o aspecto titânico de um duelo entre o Homem e a Mulher.

continua página 226...
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[1] "Quando estava em casa de meu pai, ele dizia-me todas as suas maneiras de ver e eu tinha então as mesmas; e se tinha outras, escondia-as, pois ele não teria gostado disso. . . passei para as tuas. . . Das 'mãos de papai Tudo arranjavas como querias e eu tive o mesmo gosto ou fingi tê-lo; não sei bem; creio que houve as duas coisas, ora uma, ora outra. Meu pai e tu prejudicaram-me muito. É culpa vossa, se não fui capaz de nada."
[2] Helmer diz a Nora: "Acreditas que me sejas menos cara porque não sabes agir com tua própria cabeça? Não, não; basta que te apoies em mim; eu te aconselharei, eu te dirigirei. Não seria um homem, se essa incapacidade feminina, precisamente, não te tornasse duplamente sedutora a meus olhos... Descansa bem e sossega: tenho asas bastante grandes para te proteger. . . Há para o homem uma doçura e uma satisfação indizíveis na plena consciência de ter perdoado a mulher. . . Ela torna-se assim, a um tempo, sua mulher e sua filha. É o que serás para mim doravante, pequeno ser desesperado e desnorteado. Não te preocupes com nada, Nora; fala-me tão somente com o coração na mão e eu serei ao mesmo tempo tua vontade e tua consciência".
[3] Cf. Lawrence, Fantasia do Inconsciente: "Você deve lutar para que sua mulher veja em você um homem de verdade, um pioneiro de verdade. Ninguém é homem, se a mulher nele não vê um pioneiro... E deve lutar duramente para que sua mulher submeta, ao seu, o objetivo dela. . . Que vida maravilhosa então! Que delícia voltar à noite para junto dela e encontrá-la ansiosa à sua espera! Que doçura voltar para casa e sentar-se ao lado dela. . . Como a gente se sente rico e pleno com todo o labor do dia nos rins pelo caminho da volta. . . Experimenta-se uma gratidão insondável pela mulher que ama, que acredita na tarefa da gente". 


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O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (12)
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.

Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"

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