Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Primeiro — Waterloo
I — O que encontra quem vem de Wivelíes
Meio quarto de légua adiante desta estalagem, chegou ao fundo de um valezinho,
cortado por um regato, a cujas águas dá passagem um arco praticado no aterro da
estrada e onde o raro, mas verde arvoredo que cobre o vale de um lado da calçada, se
estende do outro por dilatados prados, continuando em graciosa desordem até Braine-l’Alleud.
À beira da estrada, do lado direito, ficava uma estalagem, a cuja porta se via um carro
de quatro rodas, um grande feixe de varas de lúpulo, uma charrua, uma ruma de mato
seco ao pé de uma sebe, uma pouca de cal a fumegar dentro de uma cova quadrada e
uma escada deitada ao comprido de um alpendre velho, fechado por um tapamento de
palha. Num campo onde ao sabor da viração, volteava um grande cartaz amarelo,
provavelmente anunciando o espetáculo de alguns comediantes ambulantes em alguma
feira, uma rapariga andava a sachar; da esquina da estalagem, junto de um pântano,
onde sobrenadava uma flotilha de patos, partia um carreiro que se entranhava pelo
tojo. Deitou o viajante por esse carreiro, e ao cabo de uns cem passos, depois de ter
costeado uma parede do século XV, coroada por uma empena aguda de tijolos
contrapostos, achou-se em presença de uma grande porta de pedra, construída em arco,
com imposta retilínea, no estilo grave de Luís XIV e ornada de dois medalhões lisos. Do
frontispício severo em que se abria esta porta partia perpendicularmente uma parede
flanqueando-a em ângulo reto. No prado que se estendia em frente da porta jaziam
três grades, por entre as quais cresciam à mistura todas as flores de Maio. A porta era
fechada por dois batentes decrépitos ornados com um martelo velho e cheio de
ferrugem.
Estava um lindo dia de sol; sobre uma grande árvore, cujos ramos rumorejavam com
esse sussurro mal distinto, que mais parece provir dos ninhos que do vento, balouçava-se um passarinho, naturalmente amoroso, descantando em apaixonados gorjeios.
O viajante curvou-se e pôs-se a examinar uma escavação circular bastante grande,
semelhante ao alvéolo de uma esfera, praticada numa pedra no fundo do pé direito da
porta. Neste momento abriram-se os batentes que a fechavam e saiu uma aldeã, que, ao
ver o viajante e percebendo o que ele estava a examinar, disse-lhe:
— Foi uma bala francesa que fez isso. — E depois acrescentou: — O que ali vê em
cima, ao pé daquele prego, é o buraco de uma grande bala que não chegou a atravessar
a madeira.
— Como se chama este lugar? — perguntou o viandante.
— Hougomont — disse a aldeã.
O viajante endireitou-se e deu alguns passos para ir olhar de cima das sebes, de onde
por entre as árvores que se destacavam no horizonte avistou um monóculo, e sobre ele
o que quer que fosse, que de longe parecia um leão.
Estava no campo da batalha de Waterloo.
continua na página 237...
______________
Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________
Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - I — O que encontra quem vem de Wivelíes
_______________________
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
Nenhum comentário:
Postar um comentário