sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - Desforra / V — Sepultura apropriada

Victor Hugo - Os Miseráveis

A autoridade readquire os seus direitos
Primeira Parte - Fantine

Livro Oitavo — Desforra


V —  Sepultura apropriada

     Javert conduziu Jean Valjean à cadeia da cidade. A prisão de Madelaine produziu em Montreuil-sur-mer sensação, ou para melhor dizer, uma comoção extraordinária. Entristece-nos não podermos dissimular que só por efeito das palavras «era um forçado», quase toda a gente o abandonou. Em menos de duas horas foi esquecido todo o bem que fizera e não ficou sendo mais do que um forçado. É justo dizer que não se conheciam ainda os pormenores do acontecimento de Arras. Durante todo o dia não se ouviram por toda a cidade senão conversas como esta:

— Então não sabem? Era um antigo forçado! 
— Quem? 
— O maire
— Ora adeus! O senhor Madelaine? 
— Sim. 
— Realmente? 
— Não se chamava Madelaine, tem um nome esquisito, Béjan, Bojean ou Boujean. 
— Parece incrível! 
— Já está preso! 
— Preso! 
— Está na cadeia da cidade, esperando que o transfiram. 
— Que o transfiram! Para onde? 
— Tem de ser julgado por um roubo de estrada que cometeu noutro tempo. 
— Eu sempre desconfiei de alguma coisa. Era um homem bom de mais, demasiadamente perfeito. Recusou o hábito e dava dinheiro a quantos vadios encontrava. Sempre me pareceu que havia por baixo de tudo aquilo alguma história extraordinária. 

     Os salões, sobretudo, abundaram em diálogos deste género. Uma senhora idosa, assinante da Bandeira Branca, fez a seguinte reflexão, de que é quase impossível sondar a profundidade:

— Não me desagrada de todo. Será uma lição para os bonapartistas!

     Foi assim que o fantasma que se chamava Madelaine se dissipou em Montreuil-sur-mer. Em toda a cidade, apenas três ou quatro pessoas se conservaram fiéis à sua memória. A velha porteira que o servia entrou neste número. 
     Na noite daquele mesmo dia, a idosa e digna porteira estava sentada no seu cubículo, ainda sobressaltada e refletindo tristemente. A fábrica estivera fechada em todo o dia, a porta principal tinha corridos os ferrolhos, a rua estava deserta. Não havia em toda a casa mais do que as duas religiosas, Perpétua e Simplícia, que estavam velando junto do corpo de Fantine. 
     A hora em que Madelaine costumava recolher-se, a excelente porteira levantou-se maquinalmente, tirou duma gaveta a chave do quarto do maire e a palmatória de que ele se servia todas as noites para subir a escada, depois pendurou a chave no prego onde ele costumava encontrá-la, e pôs-lhe ao pé a palmatória, como se o esperasse. Em seguida tornou a sentar-se e continuou a meditar. 
     A pobre velha fizera tudo isto sem ter a consciência de coisa alguma. Só decorridas mais de duas horas é que ela saiu da sua meditação e exclamou: 

— Valha-me Deus! E eu a dependurar ainda a chave no prego!

     Neste momento o postigo da loja abriu-se, um braço passou pela abertura, pegou na chave e na palmatória e acendeu a vela na candeia que estava sobre a mesa. A porteira levantou os olhos e ficou de boca aberta, contendo na garganta um grito prestes a escapar-lhe. Tinha reconhecido aquela mão, o braço e a manga que o cobria. 
     Era o senhor Madelaine. 
     Esteve alguns segundos sem poder falar, petrificada, como ela depois dizia, contando o caso. 

— Jesus, senhor maire! — exclamou ela. — Enfim, julgava-o... 

     E não terminou a frase porque desmentiria o respeito que devia ao princípio. Jean Valjean continuava a ser para ela o senhor maire
     Jean Valjean, porém, completou-a.

— Na cadeia — disse ele. — Ali estava, com efeito, mas quebrei um varão, deixei-me cair num telhado e eis-me aqui. Vou ao meu quarto, vá-me procurar a irmã Simplícia, que está, decerto, ao pé dessa pobre infeliz.

     A velha obedeceu apressadamente. 
     Jean Valjean não lhe fez a menor recomendação: estava bem certo de que a velhota o guardaria melhor do que ele próprio. Nunca se pôde saber como ele conseguira penetrar no pátio sem ser pela porta principal. Trazia sempre consigo um trinco com que abria uma porta lateral, mas tendo sido decerto apalpado, deviam ter-lho tirado.  
     Subiu, pois, a escada que conduzia ao seu quarto. Chegando acima, deixou a palmatória num dos degraus, abriu a porta sem fazer bulha e foi às apalpadelas fechar a janela por dentro; depois voltou a buscar a vela e entrou no quarto. 
     A precaução era inútil; como se sabe, a janela via-se da rua. 
     Olhou em redor de si, para a mesa e para a cama, que havia três dias não se tinha desmanchado. Não se conhecia ali o mínimo vestígio da inquietação da penúltima noite. 
     A porteira arrumara tudo. O que ela unicamente fizera demais fora tirar da cinza e colocar sobre a mesa as ponteiras de ferro do cajado e a moeda de quarenta soldos enegrecidos pelo fogo. 
     Jean Valjean pegou numa folha de papel e escreveu:

Aqui estão as duas ponteiras do meu cajado e a moeda de quarenta soldos roubados ao pequenito Gervásio de que falei no tribunal.

     Colocou em seguida sobre o papel os dois bocados de ferro e a moeda de prata, de modo que fosse a primeira coisa que vissem quando entrassem no quarto. 
     Tirou dum armário uma camisa velha, que rasgou, eem cujos bocados embrulhou os dois casƟçais de prata. E no meio de tudo isto não se mostrava apressado nem inquieto. Enquanto embrulhava os casƟçais do bispo, foi comendo um bocado de pão negro. Era talvez opão que trouxera da cadeia quando se evadiu. Isto provou-se pelas migalhas que foram encontradas no sobrado do quarto, quando depois a justiça ali passou busca. 
     Passados instantes, bateram duas pancadas à porta. Era a irmã Simplícia. 
     Estava pálida, tinha os olhos vermelhos e o castiçal que trazia na mão tremia. São assim as violências privativas do destino. Por mais perfeitos ou indiferentes que cheguemos a ser, elas arrancam-nos a natureza humana do fundo das entranhas e obrigam-na a demonstrar-se exteriormente. No meio das emoções daquele dia a religiosa tornara-se mulher. Como mulher, chorara e tremera. Jean Valjean acabava de escrever algumas linhas numa folha de papel, que apresentou à religiosa, dizendo-lhe:

— Minha irmã, há-de entregar isto ao senhor cura.

     O papel estava desdobrado. A irmã lançou-lhe os olhos e ele disse-lhe:

— Pode ler.

     A religiosa leu:

Peço ao senhor cura que queira olhar por tudo que aqui deixo. Com o seu produto pagará as despesas do meu processo e o enterro da mulher que aqui morreu hoje. O resto distribui-lo-á pelos pobres.

     A irmã quis falar, mas só pôde balbuciar alguns sons inarticulados. Contudo, sempre conseguiu dizer:

— Então o senhor maire não deseja ver ainda pela última vez a infeliz morta? 
— Não — disse ele —, andam já em minha perseguição, e se me prendessem no seu quarto isso podia perturbá-la. 

     Tinha apenas pronunciado estas palavras quando se ouviu grande ruído na escada. Ouviram a bulha de muitos passos subindo e a voz da porteira dizendo o mais alto que podia:

— Juro-lhes que não entrou aqui ninguém em todo o dia, nem em toda a noite, não deixei a porta nem um instante!

     A isto uma voz de homem respondeu: 

— Não obstante há luz neste quarto. 

     Jean Valjean e a irmã Simplícia reconheceram a voz de Javert. Como o quarto era construído de modo que a porta ao abrir-se escondia o recanto da parede do lado direito, Jean Valjean apagou a vela e correu a meter-se nele. 
     A irmã Simplícia caiu de joelhos ao pé da mesa. A porta abriu-se e Javert entrou. 
     No corredor ouviu-se o cochichar de muitos homens e a voz da porteira, que continuava a protestar que não tinha entrado ninguém.  
     A religiosa, que estava a orar, não se mexeu, nem sequer ergueu a vista. A vela estava sobre o fogão e dava pouca claridade. Javert viu a irmã de caridade e parou estupefato. Todos se lembrarão de que o fundo de Javert, o seu elemento, o seu meio respeitável, era a veneração por toda a espécie de autoridade. Neste sentido era feito duma só peça, não admitia objecções, nem a mais leve restrição. Para ele, é necessário que se entenda, a primeira de todas as autoridades era a eclesiástica, porque era religioso, e sobre este ponto, como sobre os outros, era superficial e correto. A seus olhos, um padre era um espírito infalível, uma religiosa, uma criatura impecável. Eram almas muradas no meio do mundo, para onde não tinham senão uma porta, que só dava saída à verdade. 
     Vendo, pois, a irmã de caridade, o seu primeiro movimento foi para se retirar. Contudo, havia outro dever que o detinha e que impelia imperiosamente em sentido contrário. O seu segundo movimento foi de ficar e de fazer ao menos uma pergunta. 
     A irmã de caridade que ali se achava era aquela irmã que nunca em sua vida mentira. Javert sabia-o e venerava-a particularmente por essa causa.

— Minha irmã — disse ele — , estava só neste quarto?

     Seguiu-se um momento terrível, no qual a porteira se sentiu prestes a desfalecer. 
     A irmã ergueu os olhos e respondeu: 

— Estava. 
— Sendo assim — tornou Javert —, desculpe-me a insistência, é o meu dever, não viu esta noite uma pessoa, um homem que se evadiu e que nós procuramos, esse tal Jean Valjean, não o viu? 
— Não — respondeu a irmã.

     E mentiu. Mentiu duas vezes seguidas, sem hesitar, com a rapidez da dedicação.

— Queira desculpar-me — disse Javert; e saiu, fazendo profundo cumprimento.

     Oh, santa mulher! Há muito que sois deste mundo; já há muitos anos vos reunistes às virgens vossas irmãs e aos anjos vossos irmãos, seja-vos essa mentira contada no paraíso. 
     A afirmativa da irmã de caridade foi para Javert uma coisa tão decisiva que nem reparou na vela que tinham acabado de apagar e que ainda fumegava sobre a mesa. 
     Passada uma hora, um homem caminhava através do arvoredo, envolvendo-se com o nevoeiro e afastando-se de Montreuil-sur-mer, na direção de Paris. Este homem era Jean Valjean. 
     Foi provado pelo testemunho de dois ou três carreiros que o tinham encontrado que levava vestida uma blusa, e debaixo do braço um embrulho. Onde tinha ele obtido aquela blusa? Nunca se soube. Todavia, morrera poucos dias antes na enfermaria da fábrica um velho operário, que não deixara senão a sua blusa. Era, talvez, a que ele levava. 
     Uma última palavra a respeito de Fantine. Todos nós temos uma mãe comum, a terra. Fantine foi restituída a essa mãe. 
     O cura julgou que procedia com acerto, e procedeu decerto, reservando para os pobres a maior quantia que pudesse do dinheiro que Jean Valjean lhe deixara. No fim de contas, de quem se tratava? 
     De um forçado e de uma meretriz. 
     Foi esta a razão porque ele simplificou o enterro de Fantine, reduzindo-o ao estreito necessário, que se denominava vala comum.  
     Fantine foi pois enterrada no canto gratuito do cemitério, que pertence a todos e não pertence a ninguém e onde para sempre se perdem os pobres. Felizmente, Deus sabe onde há-de ir buscar as almas. Fantine foi lançada às trevas entre montões de ossos desconhecidos, atirada à vala comum, onde sofreu a promiscuidade das cinzas. O túmulo assemelhou-se ao leito.

continua na página 235...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - V — Sepultura apropriada
Segunda Parte
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira

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