Victor Hugo - Os Miseráveis
A autoridade readquire os seus direitos
Primeira Parte - Fantine
Livro Oitavo — Desforra
V — Sepultura apropriada
— Então não sabem? Era um antigo forçado!
— Quem?
— O maire.
— Ora adeus! O senhor Madelaine?
— Sim.
— Realmente?
— Não se chamava Madelaine, tem um nome esquisito, Béjan, Bojean ou Boujean.
— Parece incrível!
— Já está preso!
— Preso!
— Está na cadeia da cidade, esperando que o transfiram.
— Que o transfiram! Para onde?
— Tem de ser julgado por um roubo de estrada que cometeu noutro tempo.
— Eu sempre desconfiei de alguma coisa. Era um homem bom de mais,
demasiadamente perfeito. Recusou o hábito e dava dinheiro a quantos vadios
encontrava. Sempre me pareceu que havia por baixo de tudo aquilo alguma história
extraordinária.
Os salões, sobretudo, abundaram em diálogos deste género. Uma senhora idosa,
assinante da Bandeira Branca, fez a seguinte reflexão, de que é quase impossível sondar
a profundidade:
— Não me desagrada de todo. Será uma lição para os bonapartistas!
Foi assim que o fantasma que se chamava Madelaine se dissipou em Montreuil-sur-mer. Em toda a cidade, apenas três ou quatro pessoas se conservaram fiéis à sua
memória. A velha porteira que o servia entrou neste número.
Na noite daquele mesmo dia, a idosa e digna porteira estava sentada no seu cubículo,
ainda sobressaltada e refletindo tristemente. A fábrica estivera fechada em todo o dia,
a porta principal tinha corridos os ferrolhos, a rua estava deserta. Não havia em toda a
casa mais do que as duas religiosas, Perpétua e Simplícia, que estavam velando junto do
corpo de Fantine.
A hora em que Madelaine costumava recolher-se, a excelente porteira levantou-se
maquinalmente, tirou duma gaveta a chave do quarto do maire e a palmatória de que
ele se servia todas as noites para subir a escada, depois pendurou a chave no prego
onde ele costumava encontrá-la, e pôs-lhe ao pé a palmatória, como se o esperasse. Em
seguida tornou a sentar-se e continuou a meditar.
A pobre velha fizera tudo isto sem ter a consciência de coisa alguma. Só decorridas
mais de duas horas é que ela saiu da sua meditação e exclamou:
— Valha-me Deus! E eu a dependurar ainda a chave no prego!
Neste momento o postigo da loja abriu-se, um braço passou pela abertura, pegou na
chave e na palmatória e acendeu a vela na candeia que estava sobre a mesa. A porteira
levantou os olhos e ficou de boca aberta, contendo na garganta um grito prestes a
escapar-lhe. Tinha reconhecido aquela mão, o braço e a manga que o cobria.
Era o senhor Madelaine.
Esteve alguns segundos sem poder falar, petrificada, como ela depois dizia, contando o
caso.
— Jesus, senhor maire! — exclamou ela. — Enfim, julgava-o...
E não terminou a frase porque desmentiria o respeito que devia ao princípio. Jean
Valjean continuava a ser para ela o senhor maire.
Jean Valjean, porém, completou-a.
— Na cadeia — disse ele. — Ali estava, com efeito, mas quebrei um varão, deixei-me
cair num telhado e eis-me aqui. Vou ao meu quarto, vá-me procurar a irmã Simplícia,
que está, decerto, ao pé dessa pobre infeliz.
A velha obedeceu apressadamente.
Jean Valjean não lhe fez a menor recomendação: estava bem certo de que a velhota o
guardaria melhor do que ele próprio. Nunca se pôde saber como ele conseguira penetrar
no pátio sem ser pela porta principal. Trazia sempre consigo um trinco com que abria
uma porta lateral, mas tendo sido decerto apalpado, deviam ter-lho tirado.
Subiu, pois, a escada que conduzia ao seu quarto. Chegando acima, deixou a
palmatória num dos degraus, abriu a porta sem fazer bulha e foi às apalpadelas fechar a
janela por dentro; depois voltou a buscar a vela e entrou no quarto.
A precaução era inútil; como se sabe, a janela via-se da rua.
Olhou em redor de si, para a mesa e para a cama, que havia três dias não se tinha
desmanchado. Não se conhecia ali o mínimo vestígio da inquietação da penúltima noite.
A porteira arrumara tudo. O que ela unicamente fizera demais fora tirar da cinza e
colocar sobre a mesa as ponteiras de ferro do cajado e a moeda de quarenta soldos
enegrecidos pelo fogo.
Jean Valjean pegou numa folha de papel e escreveu:
Aqui estão as duas ponteiras do meu cajado e a moeda de quarenta soldos roubados ao pequenito
Gervásio de que falei no tribunal.
Colocou em seguida sobre o papel os dois bocados de ferro e a moeda de prata, de
modo que fosse a primeira coisa que vissem quando entrassem no quarto.
Tirou dum armário uma camisa velha, que rasgou, eem cujos bocados embrulhou os
dois casƟçais de prata. E no meio de tudo isto não se mostrava apressado nem inquieto.
Enquanto embrulhava os casƟçais do bispo, foi comendo um bocado de pão negro. Era
talvez opão que trouxera da cadeia quando se evadiu. Isto provou-se pelas migalhas que
foram encontradas no sobrado do quarto, quando depois a justiça ali passou busca.
Passados instantes, bateram duas pancadas à porta. Era a irmã Simplícia.
Estava pálida, tinha os olhos vermelhos e o castiçal que trazia na mão tremia. São
assim as violências privativas do destino. Por mais perfeitos ou indiferentes que
cheguemos a ser, elas arrancam-nos a natureza humana do fundo das entranhas e
obrigam-na a demonstrar-se exteriormente. No meio das emoções daquele dia a
religiosa tornara-se mulher. Como mulher, chorara e tremera. Jean Valjean acabava de
escrever algumas linhas numa folha de papel, que apresentou à religiosa, dizendo-lhe:
— Minha irmã, há-de entregar isto ao senhor cura.
O papel estava desdobrado. A irmã lançou-lhe os olhos e ele disse-lhe:
— Pode ler.
A religiosa leu:
Peço ao senhor cura que queira olhar por tudo que aqui deixo. Com o seu produto pagará as despesas do
meu processo e o enterro da mulher que aqui morreu hoje. O resto distribui-lo-á pelos pobres.
A irmã quis falar, mas só pôde balbuciar alguns sons inarticulados. Contudo, sempre
conseguiu dizer:
— Então o senhor maire não deseja ver ainda pela última vez a infeliz morta?
— Não — disse ele —, andam já em minha perseguição, e se me prendessem no seu
quarto isso podia perturbá-la.
Tinha apenas pronunciado estas palavras quando se ouviu grande ruído na escada.
Ouviram a bulha de muitos passos subindo e a voz da porteira dizendo o mais alto que
podia:
— Juro-lhes que não entrou aqui ninguém em todo o dia, nem em toda a noite, não
deixei a porta nem um instante!
A isto uma voz de homem respondeu:
— Não obstante há luz neste quarto.
Jean Valjean e a irmã Simplícia reconheceram a voz de Javert. Como o quarto era
construído de modo que a porta ao abrir-se escondia o recanto da parede do lado
direito, Jean Valjean apagou a vela e correu a meter-se nele.
A irmã Simplícia caiu de joelhos ao pé da mesa. A porta abriu-se e Javert entrou.
No corredor ouviu-se o cochichar de muitos homens e a voz da porteira, que
continuava a protestar que não tinha entrado ninguém.
A religiosa, que estava a orar, não se mexeu, nem sequer ergueu a vista. A vela estava
sobre o fogão e dava pouca claridade. Javert viu a irmã de caridade e parou estupefato.
Todos se lembrarão de que o fundo de Javert, o seu elemento, o seu meio respeitável,
era a veneração por toda a espécie de autoridade. Neste sentido era feito duma só peça,
não admitia objecções, nem a mais leve restrição. Para ele, é necessário que se entenda,
a primeira de todas as autoridades era a eclesiástica, porque era religioso, e sobre este
ponto, como sobre os outros, era superficial e correto. A seus olhos, um padre era um
espírito infalível, uma religiosa, uma criatura impecável. Eram almas muradas no meio do
mundo, para onde não tinham senão uma porta, que só dava saída à verdade.
Vendo, pois, a irmã de caridade, o seu primeiro movimento foi para se retirar.
Contudo, havia outro dever que o detinha e que impelia imperiosamente em sentido
contrário. O seu segundo movimento foi de ficar e de fazer ao menos uma pergunta.
A irmã de caridade que ali se achava era aquela irmã que nunca em sua vida mentira.
Javert sabia-o e venerava-a particularmente por essa causa.
— Minha irmã — disse ele — , estava só neste quarto?
Seguiu-se um momento terrível, no qual a porteira se sentiu prestes a desfalecer.
A irmã ergueu os olhos e respondeu:
— Estava.
— Sendo assim — tornou Javert —, desculpe-me a insistência, é o meu dever, não viu
esta noite uma pessoa, um homem que se evadiu e que nós procuramos, esse tal Jean
Valjean, não o viu?
— Não — respondeu a irmã.
E mentiu. Mentiu duas vezes seguidas, sem hesitar, com a rapidez da dedicação.
— Queira desculpar-me — disse Javert; e saiu, fazendo profundo cumprimento.
Oh, santa mulher! Há muito que sois deste mundo; já há muitos anos vos reunistes às
virgens vossas irmãs e aos anjos vossos irmãos, seja-vos essa mentira contada no
paraíso.
A afirmativa da irmã de caridade foi para Javert uma coisa tão decisiva que nem
reparou na vela que tinham acabado de apagar e que ainda fumegava sobre a mesa.
Passada uma hora, um homem caminhava através do arvoredo, envolvendo-se com o
nevoeiro e afastando-se de Montreuil-sur-mer, na direção de Paris. Este homem era
Jean Valjean.
Foi provado pelo testemunho de dois ou três carreiros que o tinham encontrado que
levava vestida uma blusa, e debaixo do braço um embrulho. Onde tinha ele obtido
aquela blusa? Nunca se soube. Todavia, morrera poucos dias antes na enfermaria da
fábrica um velho operário, que não deixara senão a sua blusa. Era, talvez, a que ele
levava.
Uma última palavra a respeito de Fantine. Todos nós temos uma mãe comum, a terra.
Fantine foi restituída a essa mãe.
O cura julgou que procedia com acerto, e procedeu decerto, reservando para os
pobres a maior quantia que pudesse do dinheiro que Jean Valjean lhe deixara. No fim de
contas, de quem se tratava?
De um forçado e de uma meretriz.
Foi esta a razão porque ele simplificou o enterro de Fantine, reduzindo-o ao estreito
necessário, que se denominava vala comum.
Fantine foi pois enterrada no canto gratuito do cemitério, que pertence a todos e não
pertence a ninguém e onde para sempre se perdem os pobres. Felizmente, Deus sabe
onde há-de ir buscar as almas. Fantine foi lançada às trevas entre montões de ossos
desconhecidos, atirada à vala comum, onde sofreu a promiscuidade das cinzas. O túmulo
assemelhou-se ao leito.
continua na página 235...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Os Miseráveis: Fantine, Livro Oitavo - V — Sepultura apropriada
Segunda Parte
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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