domingo, 5 de janeiro de 2025

Edgar Allan Poe - Contos: A Quinta de Arnheim (1)

Edgar Allan Poe - Contos


A Quinta de Arnheim
Título original: The Masque of the Red Death 
Publicado em 1842

      Desde o berço até ao túmulo, o meu amigo Ellison foi sempre embalado por uma brisa de prosperidade. E neste caso não emprego a palavra prosperidade no sentido puramente mundano, mas sim como sinónimo de felicidade. A pessoa de que falo parecia ter sido criada para simbolizar as doutrinas de Turgot, de Price, de Priestley e de Condorcet; para fornecer um exemplo individual do que se denominou a quimera dos perfecionistas.
     A curta existência de Ellison é uma refutação do dogma que pretende que na própria natureza do homem jaz um princípio misterioso inimigo da felicidade. Um exame minucioso da sua carreira fez-me compreender que a miséria da espécie humana nasce, em geral, da violação de algumas leis simples da humanidade; que temos em nosso poder elementos de contentamento ainda não empregados e que, mesmo agora, nas trevas presentes e no estado delirante do pensamento humano sobre a grande questão das posições sociais, não seria impossível que o homem, como indivíduo, pudesse ser feliz em certas circunstâncias insólitas e notavelmente fortuitas.
     O meu jovem amigo estava também intimamente compenetrado das mesmas opiniões; não é inútil observar que a felicidade contínua, que caracterizou toda a sua vida, foi em grande parte o resultado de um sistema concebido.
     É evidente que, sem esta filosofia instintiva que em muitos casos substitui a experiência, M. Ellison ter-se-ia visto precipitado, pelo extraordinaríssimo sucesso da sua vida, no turbilhão comum de desgraça que se abre diante de todos os homens maravilhosamente dotados pela sorte. Mas o meu fim não é de modo algum escrever um tratado sobre a felicidade. As ideias do meu amigo podem resumir-se em algumas palavras.
     Ele não admitia senão quatro princípios ou, mais estritamente, quatro condições elementares de felicidade. A principal era a simples condição, puramente física, do exercício ao ar livre. “A saúde — dizia ele — que se pode obter por outros meios quase não é digna desse nome.” Ele citava as voluptuosidades do caçador de raposas e designava os cultivadores da terra como as únicas pessoas que podiam ser seriamente consideradas como mais felizes do que as outras. A segunda condição era o amor da mulher. A terceira, a mais difícil de realizar, era o desprezo de todas as ambições. A quarta era o objeto de uma pretensão incessante; e afirmava que, as outras coisas sendo iguais, a extensão da felicidade que se pode atingir estava na proporção da espiritualidade deste quarto objeto.
     Ellison foi um homem notável pela profusão contínua com que a fortuna o sobrecarregou de seus dons. Em graça e beleza pessoal não havia homem que se lhe comparasse. A sua inteligência era tal que, para ele, a aquisição dos conhecimentos era menos um trabalho do que uma intuição e uma necessidade. Pertencia a uma das famílias mais ilustres do estado e tinha por esposa a mais deliciosa e a mais dedicada das mulheres. A sua fortuna havia sido sempre considerável; mas quando chegou à maioridade, o destino tinha-lhe preparado um destes acasos extravagantes que estupeficam o meio social em que acontecem e que não deixam nunca de alterar radicalmente a constituição moral daqueles a quem favorecem.
     Parece que cem anos antes da maioridade de M. Ellison tinha morrido, numa província remota, um tal M. Seabright Ellison. Este gentleman havia amontoado uma fortuna principesca e, não tendo herdeiros imediatos, concebera a fantasia de deixar acumular aquela fortuna durante um século depois da sua morte. Tendo indicado ele mesmo, minuciosamente e com a maior sagacidade, os diferentes modos de empregar o dinheiro, legou a massa total ao seu parente mais próximo que vivesse na época em que terminasse o centésimo ano. Tinham-se feito muitas tentativas para obter a anulação daquele legado singular, mas todas haviam abortado, como confutadas de um caráter retroativo. A única coisa que resultou daquelas diligências foi a promulgação de um decreto pelo qual ficavam proibidas, para o futuro, semelhantes acumulações de capitais. Contudo, aquele decreto não pôde impedir o jovem Ellison de entrar em posse, no vigésimo primeiro aniversário do seu nascimento, como herdeiro direto de Seabright, de uma fortuna de quatrocentos e cinquenta milhões de dólares.
     Quando a cifra prodigiosa da herança foi conhecida fizeram-se, como era natural, uma multitude de reflexões sobre a maneira de a empregar. A enormidade da soma e a sua aplicação imediata deslumbravam todos aqueles que pensavam na questão. Se se tivesse tratado do possuidor de qualquer fortuna apreciável, teria sido simples imaginá-lo executando um ou outro de mil projetos. Dotado de uma fortuna maior que as de todos os outros cidadãos, teria sido natural supô-lo a lançar-se em todos os excessos de extravagâncias , ou então a entregar se a intrigas politicas, ou a aspirar ao poder ministerial, ou a comprar um título elevado, ou fazendo vastas coleções artísticas, ou representando o papel magnífico de Mecenas das letras, das ciências e das artes, ou fundando grandes instituições de caridade e dando-lhes o seu nome. Mas relativamente à riqueza inconcebível de que o herdeiro se achava agora investido, estes objetos e todos os outros objetos ordinários de despesa pareciam não oferecer senão um campo muito limitado. Verificou-se que, mesmo a três por cento, o rendimento anual da herança não montava a menos de treze milhões e quinhentos mil dólares, isto é, um milhão cento e vinte e cinco mil dólares por mês, ou trinta e seis mil novecentos e oitenta e seis dólares por dia, ou mil quinhentos e quarenta e um dólares por hora, ou vinte e seis dólares por minuto. Assim o caminho batido das suposições achava-se absolutamente cortado. Os homens não sabiam o que conjeturar. Alguns iam até imaginar que M. Ellison se despojaria voluntariamente de metade daquela fortuna, como representando uma opulência absolutamente supérflua, para enriquecer todos os seus parentes. Com efeito, Ellison estabeleceu aos mais próximos a fortuna pouco ordinária de que ele gozava já antes daquela herança monstruosa.
     Contudo, eu não me surpreendi de ver que Ellison tinha, desde muito tempo, ideias determinadas sobre o assunto que causava entre os seus amigos uma tão grande discussão; e a natureza da sua decisão não me inspirou maior surpresa. Relativamente às caridades individuais, satisfizera a sua consciência. Quanto à possibilidade de um aperfeiçoamento qualquer propriamente dito, efetuado pela pessoa do homem na condição geral da humanidade, não lhe merecia grande crédito, confesso-o com mágoa. Em suma, por sua felicidade ou por sua desgraça, Ellison concentrava-se geralmente consigo mesmo.
     Era um poeta no sentido mais nobre e mais vasto da palavra. Além disso compreendia o verdadeiro caráter, o fim augusto, a necessidade suprema e a dignidade do sentimento poético. O seu instinto dizia-lhe que a mais perfeita, senão a única satisfação, própria a este sentimento, consistia na criação de novas formas de beleza. Algumas particularidades da sua educação primária ou mesmo da natureza da sua inteligência haviam introduzido nas suas especulações éticas uma porção do que se chama materialismo. E foi talvez esta disposição de espírito que o conduziu a acreditar que o campo mais vantajoso, senão o único legítimo, para o exercício da faculdade poética consiste na criação de novos modos de beleza puramente física. Foi por isso que ele não se fez músico nem poeta (se empregarmos esta última palavra na sua aceção ordinária). Ou talvez que não se tivesse feito uma coisa nem outra, simplesmente em consequência da sua ideia favorita, a saber: que é no desprezo da ambição que reside um dos princípios essenciais da felicidade sobre a terra. Em verdade, não podemos nós conceber que, se uma inteligência superior deve ser necessariamente ambiciosa, haja uma espécie de inteligência ainda mais superior que esteja acima do que se chama ambição? E, portanto, não é possível supormos que tenham existido inteligências muito maiores que as de Milton, que hajam ficado voluntariamente “mudas e ingloriosas”?
     Pela minha parte, creio que o mundo não viu nunca, e que salvo o caso em que uma série de acidentes estimulassem a inteligência da classe mais nobre, obrigando-a aos esforços repugnantes da aplicação prática, o mundo não verá jamais a perfeição triunfante de execução de que a natureza humana é positivamente capaz nos mais ricos domínios da arte.
     Ellison não se fez pois músico nem poeta, dado que jamais homem algum tenha existido mais profundamente enamorado da música e da poesia. Em circunstâncias diferentes daquelas que o envolviam, talvez se tivesse feito pintor. A escultura, posto que rigorosamente poética por sua natureza, é uma arte cujo domínio e efeitos são muito limitados para lhe ter ocupado a atenção por muito tempo.
     Acabo de enumerar todos os departamentos nos quais, segundo a aquiescência dos entendedores, o espírito poético pode estabelecer-se. Mas Ellison afirmava que o domínio mais rico, o mais verdadeiro e o mais natural da arte, senão absolutamente o mais vasto, tinha sido inexplicavelmente esquecido. Nunca se tinha feito uma definição do jardineiro-paisagista como do poeta; e, contudo, o meu amigo pensava que a criação do jardim-paisagem oferecia a mais magnífica das oportunidades a uma musa particular. Ali, com efeito, abria-se o mais belo campo para o desenvolvimento de uma imaginação aplicada à infinita combinação das formas novas da beleza: os elementos a combinar eram de uma classe superior e os mais admiráveis que a terra podia oferecer.
     Na multiplicidade de cores e de formas das árvores e das flores, Ellison reconhecia os esforços mais diretos e os mais enérgicos da natureza para a beleza física. Era na direção ou concentração desse esforço, ou antes na sua acomodação aos olhos destinados a contemplar os seus resultados sobre a terra, que ele se sentia chamado a empregar os melhores meios, a trabalhar o mais frutuosamente para a realização não só do seu próprio destino como poeta, mas também dos augustos desígnios em vista dos quais a Divindade implantou no homem o sentimento poético.
     “Sua acomodação aos olhos destinados a contemplar os seus resultados sobre a terra.” Explicando esta frase, M. Ellison resolvia quase o que tinha sempre sido para mim um enigma; quero falar do facto, incontestável para todos, exceto para os ignorantes, de não existir na natureza combinação alguma decorativa, tal como o pintor de talento poderia produzi-la. Não se acham na realidade paraísos semelhantes àqueles que as telas de Claude Lorrain ostentam. Na mais bela das paisagens naturais descobre-se sempre um defeito ou um excesso, mil excessos e mil defeitos. Ainda mesmo que as partes constitutivas pudessem desafiar, cada uma individualmente, a habilidade de um artista consumado, a disposição dessas partes seria sempre suscetível de aperfeiçoamento. Em suma, não existe um lugar sobre a vasta superfície da terra natural onde os olhos de um contemplador atento não se sintam desagradavelmente impressionados por algum defeito no que se chama a composição da paisagem. E contudo, como isto é inteligível! Em qualquer outra matéria ensinaram-nos justamente a venerar a natureza como perfeita. Quanto aos detalhes, tremeríamos de ousar rivalizar com ela. Quem terá a presunção de imitar as cores da tulipa ou de aperfeiçoar as proporções da açucena do vale? A crítica, que diz a propósito de escultura e de pintura que a natureza deve ser enobrecida ou idealizada, engana-se. Não há combinação de elementos de beleza humana, em pintura ou em escultura, que possa fazer mais do que aproximar-se da beleza viva e respirante. Só na paisagem o princípio da crítica é verdadeiro; e como ela o sentiu verdadeiro neste ponto, o maldito espírito de generalização levou-a a considerá-lo verdadeiro em todos os domínios da arte.
     Sentiu o verdadeiro neste ponto, digo eu; porque o sentimento não é nem afetação nem quimera. As matemáticas não fornecem demonstrações mais absolutas do que as que o artista tira do sentimento da sua arte. O artista não crê só, sabe também que estas e aquelas disposições da matéria, arbitrárias em aparência, são as únicas bases da verdadeira beleza. As suas razões, contudo, não se firmaram ainda até à fórmula. Resta um trabalho reservado à análise (uma análise de uma profundeza até agora desconhecida ao mundo), o qual será procurar essas razões e formulá-las completamente. Entretanto, o artista é confirmado nas suas opiniões instintivas pela voz de todos os seus irmãos. Suponhamos uma composição defeituosa; e suponhamos também uma correção operada simplesmente na combinação da forma, a qual correção seja submetida ao julgamento de todos os artistas do mundo. A necessidade da correção será admitida por todos. Mais ainda! Para remediar o defeito da dita composição, cada membro da confraria teria sugerido uma correção idêntica.
     Repito pois que somente na composição da paisagem a natureza física é suscetível de aperfeiçoamento e que esta exceção única era um mistério que eu não pudera nunca resolver. Todas as minhas reflexões sobre este assunto repousavam na ideia de que a intenção primitiva da natureza devia ter disposto a superfície da terra de maneira a satisfazer, em todos os pontos, o sentimento humano da perfeição no belo, no sublime ou no pitoresco; mas que esta intenção primitiva havia sido desmanchada pelas perturbações geológicas conhecidas, perturbações que tinham sido ressentidas pelas formas e pelas cores, na correção e na reunião das quais jaz a alma da arte. Contudo, a força daquela ideia diminuía consideravelmente pela respetiva necessidade de considerar estas perturbações como anormais e destituídas de toda a espécie de fim. Foi Ellison que me sugeriu que elas eram prognósticos de morte, explicando-se assim: “Admitamos que a imortalidade terrestre do homem tenha sido a intenção primeira. Desde então, podemos conceber uma disposição primitiva da superfície da terra, apropriada a esse estado bem-aventurado do homem, estado que não chegou a realizar-se, mas que foi concebido. As perturbações não foram senão preparativos para a sua condição mortal, concebida posteriormente.

“Ora, acrescentava o meu amigo, o que nós consideramos como um enobrecimento da paisagem pode muito bem ser um enobrecimento real, apenas debaixo do ponto de vista moral ou humano. Quem sabe se qualquer mudança na decoração natural não produziria um defeito no quadro, se o supuséssemos visto em ponto grande, em massa, de qualquer ponto afastado da superfície da terra, ou mesmo além dos limites da sua atmosfera? Compreende-se facilmente que o aperfeiçoamento de um pormenor, examinado de perto, possa ao mesmo tempo estragar um efeito geral, um efeito apreciável a uma grande distância. Pode ser que exista uma classe de seres pertencentes outrora à humanidade, invisíveis agora para ela, a cujos olhos, na sua região longínqua, a nossa desordem apareça como uma ordem, o nosso não pitoresco como pitoresco; anjos terrestres, numa palavra, dotados de um sentimento do belo, purificado pela morte, e para os olhares dos quais, mais especialmente do que para os nossos, Deus quis talvez ostentar os imensos jardins-paisagens dos hemisférios.”

continua na página 394...
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Edgar Allan Poe - Contos: A Quinta de Arnheim (1)
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.

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