sábado, 4 de janeiro de 2025

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (15.2) - enterrados em túmulos trocados

Cem Anos de SOLIDÃO


Gabriel Garcia Márquez


(15.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     No começo todo mundo pensou que fosse uma peste. As donas-de-casa se extenuavam de tanto varrer pássaros mortos, sobretudo na hora da sesta, e os homens os jogavam no rio às carradas. No Domingo da Ressurreição, o centenário Padre Antonio Isabel afirmou no púlpito que a morte dos pássaros obedecia à má influência do Judeu Errante, que ele mesmo tinha visto na noite anterior. Descreveu-o como um híbrido do de bode cruzado com fêmea herege, uma besta infernal cujo alento calcinava o ar e cuja visita determinaria a concepção de monstros pelas recém-casadas. Não foram muitos os que prestaram atenção à sua conversa apocalíptica, porque o povo estava convencido de que o pároco tresvariava por causa da idade. Mas uma mulher acordou todo mundo na madrugada de quarta-feira, porque encontrara uns rastos de bípede de casco fendido. Eram tão verdadeiros e inconfundíveis que os que foram vê-los não puseram em dúvida a existência de uma criatura horrível semelhante à descrita pelo pároco e se associaram para montar armadilhas nos quintais. Foi assim que levaram a efeito a captura. Duas semanas depois da morte de Úrsula, Petra Cotes e Aureliano Segundo acordaram sobressaltados com um choro de bezerro descomunal que chegava da vizinhança. Quando se levantaram, já um grupo de homens estava soltando o monstro das afiadas varas que tinham posto no fundo de uma fossa coberta com folhas secas, e ele já deixara de berrar. Pesava como um boi, apesar da sua estatura não ser maior que a de um adolescente, e das suas feridas manava um sangue verde e viscoso. Tinha o corpo coberto por um pelo áspero, cheio de carrapatos miúdos, e a pele petrificada por uma crosta de caracas, mas ao contrário da descrição do pároco, as suas partes humanas eram mais de anjo doente do que de homem, porque as mãos eram limpas e hábeis, os olhos grandes e crepusculares, e tinha nas omoplatas os cotocos cicatrizados e calosos de asas potentes, que deve -riam ter sido desbastadas com machado de lavrador. Penduraram-no pelos tornozelos numa amendoeira da praça para que ninguém ficasse sem vê-lo e quando começou a apodrecer incineraramno numa fogueira, porque não se pôde determinar se a sua natureza bastarda era de animal para jogar no rio ou de cristão para sepultar. Nunca se verificou se na realidade foi por causa dele que morreram os pássaros, mas as recém-casadas não conceberam os monstros anunciados, nem diminuiu a intensidade do calor.
     Rebeca morreu no final desse ano. Argénida, sua criada de toda a vida, pediu ajuda às autoridades para derrubar a porta do quarto onde a sua patroa estava trancada há três dias, e a encontraram na cama solitária, enroscada como um camarão, com a cabeça pelada pela calvície e o polegar metido na boca. Aureliano Segundo se encarregou do enterro e tentou restaurar a casa para vendê-la, mas a destruição estava tão encarniçada sobre ela que as paredes descascavam quando se acabavam de pintar e não houve argamassa bastante grossa para impedir que o mato triturasse o chão e a hera apodrecesse as vigas.
     Tudo estava assim desde o dilúvio. A inércia das pessoas contrastava com a voracidade do esquecimento que pouco a pouco ia consumindo sem piedade as lembranças, ao extremo de por esses tempos, num novo aniversário do tratado de Neerlândia, chegarem a Macondo uns emissários do Presidente da República para entregar finalmente a condecoração várias vezes recusada pelo Coronel Aureliano Buendía e perderam uma tarde inteira procurando alguém que lhes indicasse onde poderiam encontrar algum dos seus descendentes. Aureliano Segundo esteve tentado a recebê-la, pensando que era uma medalha de ouro maciço, mas Petra Cotes persuadiu-o da indignidade quando os emissários já preparavam as comunicações oficiais e os discursos para a cerimônia. Também por essa época voltaram os ciganos, os últimos herdeiros da ciência de Melquíades, e encontraram o povoado tão acabado e seus habitantes tão afastados do resto do mundo que tornaram a entrar nas casas arrastando ferros imantados, como se na verdade fossem a última descoberta dos sábios babilônicos, tornaram a concentrar os raios solares com a lupa gigantesca e não faltou quem ficasse de boca aberta vendo caírem as panelas e rolarem os caldeirões e quem pagasse cinquenta centavos para se assombrar com uma cigana que tirava e botava a dentadura postiça. Um desengonçado trem amarelo, que não trazia nem levava ninguém e que mal se detinha na estação deserta, era a única coisa que restava do trem multitudinário no qual o Sr. Brown enganchava o seu vagão com teto de vidro e poltronas de bispo e dos trens fruteiros de cento e vinte vagões que demoravam uma tarde inteira para passar. Os delegados da Cúria que tinham vindo investigar a comunicação sobre a estranha mortandade dos pássaros e o sacrifício do Judeu Errante encontraram o Padre Antonio Isabel brincando de cabra-cega com as crianças e, pensando que a sua comunicação era produto de uma alucinação senil, levaram-no para um asilo. Pouco depois mandaram o Padre Augusto Ángel, um cruzado da nova fornada, intransigente, audaz, temerário, que tocava pessoalmente os sinos várias vezes por dia para que não se entorpecessem os espíritos e que andava de casa em casa acordando os dorminhocos para que fossem à missa, mas antes de completar um ano já estava vencido também pela negligência que se respirava no ar, pela poeira ardente que envelhecia e obstruía tudo, e pela moleza que causavam as almôndegas do almoço no calor insuportável da sesta.
     Depois da morte de Úrsula, a casa voltou a cair num abandono do qual não a poderia resgatar nem mesmo uma vontade tão resoluta e vigorosa como a de Amaranta Úrsula, que muitos anos depois, sendo uma mulher sem preconceitos, alegre e moderna, com os pés bem firmados na terra, abriu portas e janelas para espantar a ruína, restaurou o jardim, exterminou as formigas ruivas que já andavam em pleno dia pela varanda, e tratou inutilmente de despertar o esquecido espírito de hospitalidade. A paixão claustral de Fernanda construiu um dique intransponível nos cem anos torrenciais de Úrsula. Não só se negou a abrir as portas quando passou o vento árido, como também mandou pregar as janelas com cruzes de madeira, obedecendo à ordem paterna de se enterrar em vida. A dispendiosa correspondência com os médicos invisíveis terminou em fracasso. Depois de numerosos adiamentos, trancou-se no quarto na data e hora marcadas, coberta somente por um lençol branco e com a cabeça para o Norte e, à uma da madrugada, sentiu que lhe taparam a cara com um lenço embebido num líquido gelado. Quando acordou, o sol brilhava na janela e ela tinha uma enorme costura em forma de arco que começava na virilha e terminava no esterno. Mas antes de que cumprisse o repouso prescrito recebeu uma carta desconcertada dos médicos invisíveis, que diziam tê-la revistado durante seis horas sem encontrar nada que correspondesse aos sintomas tantas vezes e tão escrupulosamente descritos por ela. Na realidade, o seu hábito pernicioso de não chamar as coisas pelo nome tinha dado origem a uma nova confusão, pois a única coisa que os cirurgiões telepáticos encontraram foi um caimento de útero que podia ser corrigido com o uso de um pessário. A desiludida Fernanda tentou obter uma informação mais precisa, mas os correspondentes ignotos não tornaram a responder as suas cartas. Sentiu-se tão angustiada pelo peso de uma palavra desconhecida que decidiu amordaçar a vergonha para perguntar o que era um pessário e só então soube que o médico francês se pendurara numa viga três meses antes e tinha sido enterrado contra a vontade do povo por um antigo companheiro de armas do Coronel Aureliano Buendía Então, confiou-se a seu filho José Arcadio e este lhe mandou os pessários de Roma com um folheto explicativo, que ela jogou na privada depois de aprendê-lo de memória para que ninguém viesse a conhecer a natureza dos seus quebrantos. uma precaução inútil, porque as únicas pessoas que viviam casa mal reparavam nela. Santa Sofía de la Piedad vagava numa velhice solitária, cozinhando o pouco que comiam e dedicada quase por completo ao cuidado de José Arcadio Segundo. Amaranta Úrsula, herdeira de certos encantos de Remedios, a bela, ocupava em fazer as suas tarefas escolares o que antes perdia em atormentar Úrsula e começava a manifestar um bom juízo e uma consagração aos estudos que fizeram renascer em Aureliano Segundo a boa esperança que inspirara Meme. Prometera mandá-la terminar os estudos e Bruxelas, de acordo com um costume estabelecido no tempo da companhia bananeira, e essa ilusão levara-o a tentar ver as terras devastadas pelo dilúvio. As poucas vezes em era visto em casa agora, era por causa de Amaranta Úrsula pois com o tempo se tinha transformado num estranho para Fernanda e o pequeno Aureliano ia ficando esquivo e ensimesmado à medida que se aproximava da puberdade. Aureliano Segundo confiava na velhice para abrandar o coração de Fernanda, para que o menino pudesse se incorporar a vida de um povoado onde certamente ninguém se daria o trabalho de fazer especulações desconfiadas sobre a sua origem. Mas o próprio Aureliano parecia preferir a clausura e a solidão e não revelava a menor malícia para conhecer o mundo que começava na porta da rua. Quando Úrsula fez abrir o quarto de Melquíades, ele ficou rondando, bisbilhotando pela porta entreaberta, e ninguém percebeu em que momento terminou vinculado a José Arcadio Segundo por um afeto recíproco. Aureliano Segundo descobriu essa amizade muito tempo depois de iniciada, quando ouviu o menino falando da matança da estação. Aconteceu num dia em que alguém se lamentou na mesa da ruína em que afundara o povoado desde que a companhia bananeira o abandonara e Aureliano contradisse com uma maturidade e um conhecimento de adulto. O seu ponto de vista, contrário à interpretação geral, era que Macondo tinha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que o perturbasse, corrompesse e explorasse a companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como um pretexto para fugir aos compromissos com os trabalhadores. Falando de maneira tão racional que a Fernanda pareceu uma paródia sacrílega de Jesus entre os doutores, o menino descreveu com detalhes precisos e convincentes como o exército metralhara mais de três mil trabalhadores encurralados na estação e como carregara os cadáveres num trem de duzentos vagões e os atirara ao mar. Convencida como a maioria das pessoas da verdade oficial de que não tinha acontecido nada, Fernanda se escandalizou com a ideia de que o menino tivesse herdado os instintos anarquistas do Coronel Aureliano Buendía e ordenou-lhe que se calasse. Aureliano Segundo, pelo contrário, reconheceu a versão do seu irmão gêmeo. Na realidade, apesar de todo mundo considerá-lo louco, José Arcadio Segundo era naquele tempo o habitante mais lúcido da casa. Ensinou o pequeno Aureliano a ler e a escrever, iniciou-o no estudo dos pergaminhos e incutiu-lhe uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia bananeira que muitos anos depois, quando Aureliano se incorporasse ao mundo, haveria de se pensar que contava uma versão alucinada, porque era radicalmente contrária à falsa que os historiadores tinham admitido e consagrado nos textos escolares. No quartinho isolado, aonde nunca chegou o vento árido, nem a poeira, nem o calor, ambos recordavam a visão atávica de um ancião de chapéu de asas de corvo que falava do mundo de costas para a janela, muitos anos antes que eles nascessem. Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcadio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez bastante para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada. José Arcadio Segundo conseguira, além disso, classificar as letras criptográficas dos pergaminhos. Estava certo de que correspondiam a um alfabeto de quarenta e sete a cinquenta e três caracteres que, separados, pareciam aranhazinhas e carrapatos e que, na primorosa caligrafia de Melquíades, pareciam peças de roupa postas para secar num varal. Aureliano se lembrava de haver visto uma tabela semelhante na enciclopédia inglesa, de modo que a levou ao quarto para compará-la com a de José Arcadio Segundo. Eram iguais, realmente.
     Na época em que teve a ideia da loteria de adivinhações, Aureliano Segundo acordava com um nó na garganta, como se estivesse reprimindo a vontade de chorar. Petra Cotes interpretou isso como um dos tantos transtornos provocados pela má situação e todas as manhãs, durante mais de um ano, pincelava-lhe o céu da boca com mel de abelha e lhe dava xarope de rábano. Quando o nó da garganta se fez tão apertado que lhe custava esforço respirar, Aureliano Segundo visitou Pilar Ternera para ver se ela conhecia alguma erva que lhe trouxesse alívio. A inquebrantável avó, que tinha chegado aos cem anos à frente de um bordelzinho clandestino, não confiou nas superstições terapêuticas, mas consultou as cartas sobre o problema. Viu o cavalo de ouro com a garganta ferida pelo aço do valete de espadas e deduziu que Fernanda estava tentando fazer o marido voltar para casa mediante o desprestigiado sistema de fincar alfinetes no seu retrato, mas provocara-lhe um tumor interno pelo mau conhecimento da feitiçaria. Como Aureliano Segundo não tinha outros retratos além dos do casamento e as cópias estavam completas no álbum familiar, continuou procurando por toda a casa durante as distrações esposa e finalmente encontrou, no fundo do guarda-roupa meia dúzia de pessários nas suas caixinhas originais. Pensando que as rodinhas de borracha vermelha eram objetos de bruxaria, guardou uma no bolso para que Pilar Ternera a visse. Esta não pôde explicar a sua natureza, mas lhe pareceu tão suspeita que por via das dúvidas mandou trazer a meia dúzia e queimou-a numa fogueira que fez no quintal. Para esconjurar o suposto malefício de Fernanda, ordenou a Aureliano Segundo que sangrasse uma galinha choca e a enterrasse debaixo do castanheiro, e ele o fez de tão boa fé que quando acabou de dissimular com folhas secas a terra revolvida já sentia que respirava melhor. Por Outro lado, Fernanda interpretou o desaparecimento como uma represália dos médicos invisíveis e coseu na parte interior da camisola um bolsinho redobrado onde guardou os pessários novos que lhe mandou o filho.
     Seis meses depois de enterrar a galinha, Aureliano Segundo acordou à meia-noite com um acesso de tosse e sentindo que o estrangulavam por dentro com presas de caranguejo. Compreendeu então que, por muitos pessários mágicos que destruísse e muitas galinhas de esconjuro que esfaqueasse, a única e triste verdade era que estava morrendo. Não disse nada a ninguém. Atormentado pelo medo de morrer sem mandar Amaranta Úrsula para Bruxelas, trabalhou como nunca, e em vez de uma, fez três rifas semanais. Desde muito cedo era visto percorrendo o povoado, mesmo nos bairros mais afastados e miseráveis, tentando vender os bilhetinhos com uma ansiedade que só era concebível num moribundo. “Aqui está a Divina Providência”, apregoava. “Não a deixem escapar, que só aparece uma vez em cada cem anos.” Fazia comovedores esforços para parecer alegre, simpático, loquaz, mas bastava ver o seu suor e a sua palidez para saber que não podia com a alma. As vezes se desviava para prédios vazios, onde ninguém o visse, e se sentava um momento para descansar das tenazes que o despedaçavam por dentro. Ainda à meia-noite estava no bairro de tolerância, tentando consolar com prédicas de boa sorte as mulheres solitárias que choravam junto às vitrolas. “Este número não sai há quatro meses”, dizia, ‘mostrando os bilhetinhos. “Não o deixe escapar, que a vida é mais curta do que a gente pensa.” Acabaram por perder-lhe o respeito, por zombar dele, e já nos últimos meses não o chamavam de “Seu” Aureliano, como o tinham feito sempre, mas o chamavam, na sua própria cara, de “Seu” Divina Providência. A sua voz foi-se enchendo de notas falsas, desafinando, e acabou por se apagar num ronco de cachorro, mas ainda assim teve força de vontade para não deixar que decaísse a expectativa pelos prêmios no quintal de Petra Cotes. Entretanto, à medida que ficava sem voz e percebia que em pouco tempo já não poderia suportar a dor, ia compreendendo que não era com porcos e cabritos rifados que a sua filha chegaria a Bruxelas, de modo que concebeu a ideia de fazer a fabulosa rifa das terras destruídas pelo dilúvio, que bem podiam ser restauradas por quem dispusesse de capital. Foi uma iniciativa tão espetacular que o próprio alcaide se ofereceu para anunciá-la por decreto e se formaram sociedades para comprar bilhetes a cem pesos cada um, que se esgotaram em menos de uma semana. Na noite da rifa, os ganhadores fizeram uma festa aparatosa, comparável apenas às dos bons tempos da companhia bananeira, e Aureliano Segundo tocou no acordeão pela última vez as canções esquecidas de Francisco, o Homem, mas já não pôde cantá-las.
     Dois meses depois, Amaranta Úrsula foi para Bruxelas. Aureliano Segundo entregou-lhe não só o dinheiro da rifa extraordinária, mas também o que tinha conseguido economizar nos meses anteriores e o muito escasso que obtivera na venda da pianola, do clavicórdio e de outros cacarecos caídos em desgraça. Segundo os seus cálculos, esses fundos chegavam para os estudos, de modo que só ficava faltando o valor da passagem de volta. Fernanda se opôs à viagem até o último momento, escandalizada com a ideia de que Bruxelas estivesse tão próxima da perdição de Paris, mas se tranquilizou com uma carta que o Padre Ángel lhe deu para uma pensão de jovens católicos dirigida por religiosas, onde Amaranta Úrsula prometeu viver até o final dos estudos. Além disso, o pároco conseguiu que ela viajasse aos cuidados de um grupo de franciscanas que iam para Toledo, onde esperavam encontrar gente de confiança para mandá-la para a Bélgica. Enquanto se adiantava a apressada correspondência que tornou possível esta coordenação, Aureliano Segundo, ajudado por Petra Cotes, ocupou-se da bagagem de Amaranta Úrsula. Na noite em que prepararam um dos baús nupciais de Fernanda, as coisas estavam tão bem arrumadas que a estudante sabia de cor quais eram as roupas e os chinelos de pelúcia com que devia fazer a travessia do Atlântico, e o sobretudo de lã azul com botões de cobre e os sapatos de couro com que devia desembarcar.
     Sabia também como devia andar para não cair n’água quando subisse a bordo pela prancha, que em nenhum momento devia se separar das freiras nem sair do camarote se não fosse para comer e que por nenhum motivo devia responder às perguntas que os desconhecidos de qualquer sexo lhe fizessem em alto-mar. Levava um vidrinho de gotas para enjoo e um caderno escrito pelo próprio punho e letra do Padre Angel, com seis orações para esconjurar a tempestade. Fernanda fabricou-lhe um cinturão de lona para que guardasse o dinheiro e indicou-lhe a forma de usá-lo ajustado ao corpo, de modo que não tivesse que tirá-lo nem mesmo para dormir. Tentou dar-lhe de presente o penico de ouro lavado com água sanitária e desinfetado com álcool, mas Amaranta Úrsula recusou-o temendo que as suas companheiras de colégio zombassem dela. Poucos meses depois, na hora da morte, Aureliano Segundo haveria de se lembrar dela como a vira da última vez, tentando abaixar sem conseguir o vidro empoeirado do vagão de segunda classe, para escutar as últimas recomendações de Fernanda. Vestia um traje de seda cor-de-rosa com um raminho de flores artificiais no broche do ombro esquerdo; os sapatos de couro com fivela e salto baixo, e as meias de seda com ligas elásticas na batata da perna. Tinha o corpo miúdo, o cabelo solto e comprido e os olhos vivos que Úrsula tivera na sua idade, e a forma como se despedia sem chorar, mas também sem sorrir, revelava a mesma força de caráter. Andando junto com o vagão à medida que acelerava e levando Fernanda pelo braço para que não fosse tropeçar, Aureliano Segundo mal pôde corresponder com um aceno de mão, quando a filha lhe mandou um beijo com a ponta dos dedos. Os esposos permaneceram imóveis sob o sol abrasador, olhando como o trem ia se confundindo com o ponto negro do horizonte e de braço dado pela primeira vez desde o dia do casamento. A nove de agosto, antes que se recebesse a primeira carta de Bruxelas, José Arcadio Segundo conversava com Aureliano no quarto de Melquíades e sem que viesse ao caso disse:

— Lembra-te sempre de que eram mais de três mil e que os jogaram ao mar. Em seguida caiu de bruços sobre os pergaminhos e morreu com os olhos abertos. Nesse mesmo instante, na cama de Fernanda, o seu irmão gêmeo chegou ao fim do prolongado e terrível martírio dos caranguejos de ferro que lhe carcomiam a garganta. Uma semana antes voltara para casa, sem voz, sem fôlego, e quase só pele e ossos, com os seus baús errantes e o seu acordeão de perdulário, para cumprir a promessa de morrer junto à esposa. Petra Cotes ajudou-o a juntar as suas roupas e despediu-o sem derramar uma lágrima, mas se esqueceu de lhe dar os sapatos de verniz que ele queria trazer no ataúde. De modo que quando soube que tinha morrido, vestiu-se de negro, embrulhou as botinas num jornal e pediu permissão a Fernanda para ver o cadáver. Fernanda não a deixou passar da porta. 
— Ponha-se no meu lugar — suplicou Petra Cotes. Imagine o quanto eu o amei para aguentar esta humilhação. 
— Não há humilhação que uma concubina não mereça — replicou Fernanda. — De maneira que pode esperar morra outro dos tantos para calçar-lhe estas botinas. 

     Em cumprimento da sua promessa, Santa Sofía de la Piedad degolou com uma faca de cozinha o cadáver de José Arcadio Segundo para se assegurar de que não o enterrassem vivo. Os corpos foram colocados em ataúdes idênticos e ali se viu que tornavam a ser idênticos na morte como tinham até a adolescência. Os velhos companheiros de farra de Aureliano Segundo puseram sobre o caixão uma coroa que tinha uma fita roxa com um letreiro: Afastem-se, vacas, que a vida é curta. Fernanda se indignou tanto com a irreverência mandou jogar a coroa no lixo. No tumulto da última hora os bêbados tristes que o tiraram de casa confundiram os ataúdes e os enterraram em túmulos trocados.

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Cem Anos de Solidão (15.2) - enterrados em túmulos trocados
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