Simone de Beauvoir
02. A Experiência Vivida
O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR
SlMONE DE BEAUVOIR
SEGUNDA PARTE
SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A MULHER CASADA
O caso de Tolstoi é por certo excepcional; há numerosas uniões em que tudo "funciona bem", isto é, em que os esposos chegam a um entendimento; vivem um ao lado do outro sem muito se disputar, sem muito se mentir. Mas há uma maldição a que escapam raramente: o tédio. Que o marido consiga fazer da mulher um eco de si mesmo, ou que cada qual se entrincheire em seu universo, ao fim de alguns meses ou de alguns anos nada mais têm a se comunicar. O casal é uma comunidade cujos membros perderam sua autonomia sem se livrar da solidão; estão esteticamente assimilados um ao outro, ao invés de sustentar um com o outro uma relação dinâmica e viva; eis por que, no terreno espiritual como no terreno erótico, nada podem dar-se, nada podem trocar. Em uma de suas melhores novelas, Too bad!, Dorothy Parker resumiu o triste romance de muitas vidas conjugais; é noite e Mr. Welton volta para casa:
Mrs. Welton abriu a porta ao toque da campainha.
— Então! — disse alegremente.
Sorriam-se animados.
— Alô! — disse ele. — Ficaste em casa?
Beijaram-se ligeiramente. Com um interesse cortês, ela olhou-o
pendurar o sobretudo, o chapéu, tirar os jornais do bolso e oferecer-
-lhe um.
— Trouxeste os jornais! — disse ela, pegando-o.
— Então? Que fizeste durante o dia inteiro? — perguntou ele.
Ela esperara a pergunta; imaginara antes da chegada dele como
lhe contaria todos os pequenos incidentes do dia. . . Mas agora aquilo
se lhe afigurava uma longa e insípida história.
— Oh, nada — disse com um risinho alegre. — Tiveste uma
boa tarde?
— Bem, começou ele. . . — Mas seu interesse dissipou-se antes
que começasse a falar. . . Demais, ela estava ocupada com arrancar
um fio de uma franja de lã de uma das almofadas.
— Foi mais ou menos bem — disse ele.
...El a sabia falar bastante bem com as outras pessoas... Ernest
também era bastante loquaz em sociedade... Ela tentou lembrar-se
do que falavam antes do casamento, durante o noivado. Nunca tinham
tido grande coisa a dizer-se. Mas ela não se inquietara com isso...
Houvera os beijos e coisas que ocupam o espírito. Mas não se pode
contar com os beijos e o resto para passar as noites ao fim de
sete anos.
Poder-se-ia acreditar que a gente se habitua em sete anos, que
se dá conta de que é assim e se resigna. Não. Acaba dando nos
nervos. Não é um desses silêncios macios que caem por vezes entre
as pessoas. Dá a impressão de que há algo a fazer e que a gente
não está cumprindo seu dever. Como uma dona de casa quando a
recepção não vai bem. . . Ernest leria laboriosamente e, mais ou
menos na metade do jornal, começaria a bocejar. Alguma coisa se
passava dentro de Mrs. Welton quando ele fazia isso. Murmuraria que tinha de falar com Delia e precipitar-se-ia para a cozinha. Aí ficaria
durante um longo momento, olhando vagamente os postes, verificando
o rol da lavanderia e quando voltasse ele estaria fazendo sua toilette
noturna.
Em um ano, trezentas de suas noites assim se passavam. Sete
vezes trezentas eram mais de duas mil.
Pretende-se por vezes que o próprio silêncio é sinal de uma
intimidade mais profunda do que qualquer palavra; e por certo
ninguém pensa em negar que a vida conjugai crie uma intimidade: é o que ocorre com todas as relações de família, que nem
por isso deixam de cobrir ódios, ciúmes, rancores. Jouhandeau
acentua fortemente a diferença entre essa intimidade e uma fraternidade humana verdadeira quando escreve:
Elise é minha mulher; sem dúvida nenhum de meus amigos,
nenhum dos membros de minha família, nenhum de meus próprios
membros é mais íntimo de mim do que ela, mas, por mais próximo
de mim que seja o lugar que ela conquistou, que eu lhe dei em
meu universo mais privado, por enraigada que esteja ao inextricável tecido de minha carne e de minha alma (e esse é todo o mistério e todo o drama de nossa indissolúvel união), o desconhecido
que passa neste momento na rua e que eu mal percebo de minha
janela, qualquer que seja, é menos estranho a mim do que ela.
Diz alhures:
Percebemos que somos vítimas de um veneno, mas ao qual nos
habituamos. Como renunciar a ele, desde então, sem renunciar a
nós mesmos?
E ainda:
Quando penso nela, sinto que o amor conjugal não tem nenhuma
relação nem com a simpatia nem com a sensualidade, nem. com a
paixão, nem com a amizade, nem com o amor. Adequado a si só,
não redutível a nenhum desses diversos sentimentos, tem sua natureza
própria, sua essência particular e seu modo único, segundo o casal
que reúne.
Os advogados do amor conjugal[1] comprazem-se em dizer
que não é um amor e é exatamente isso que lhe dá um caráter
maravilhoso. Porque a burguesia inventou nestes últimos anos um
estilo épico: a rotina assume aspecto de aventura, a fidelidade o de uma loucura sublime, e tédio torna-se sabedoria e os ódios
familiares são a forma mais profunda do amor. Em verdade, que
dois indivíduos se detestem sem poder, entretanto, prescindir um
do outro, não é, de todas as relações humanas, a mais verdadeira,
a mais comovente: é a mais lamentável. 0 "ideal seria, ao contrário, que dois seres humanos, cada um deles se bastando a si próprio perfeitamente, se amarrassem um a outro por espontânea vontade. Tolstoi admira que o laço que une Natacha e Pierre seja
algo "indefinível, mas firme, sólido, como a união de sua própria
alma a seu corpo". Se se aceita a hipótese dualista, o corpo só
representa para a alma uma simples facticidade; assim, na união
conjugai, cada um teria para o outro o inelutável peso do dado
contingente; é enquanto presença absurda e não escolhida, condição necessária e matéria mesma da existência que seria preciso
assumi-lo e amá-lo. Estabelece-se uma confusão voluntária entre
essas duas palavras e é daí que nasce a mistificação: o que se
assume não se ama. Assume-se o corpo, o passado, a situação
presente: mas o amor é movimento para um outro, para uma existência separada da própria, para um fim, um futuro; a maneira
de assumir um fardo, uma tirania, não consiste em amá-lo e sim
em se revoltar. Uma relação humana não tem valor enquanto é
suportada no imediato; as relações dos filhos com os pais, por
exemplo, só adquirem valor quando se refletem numa consciência;
não se pode admirar nas relações conjugais que recaiam no imediato e que neste os cônjuges enterrem sua liberdade. Essa mistura complexa de apego, rancor, ódio, normas, resignação, preguiça, hipocrisia, que se chama amor conjugai, só o pretendem
respeitar porque serve de álibi. Mas a amizade é como o amor
físico, para que seja autêntica é preciso primeiramente que seja
livre. Liberdade não quer dizer capricho: um sentimento é um
compromisso que ultrapassa o instante; mas só ao indivíduo cabe
confrontar sua vontade geral e suas condutas particulares de modo
a manter sua decisão ou, ao contrário, quebrá-la; o sentimento
é livre quando não depende de nenhuma palavra de ordem exterior, quando é vivido sem medo em uma sinceridade. A palavra
de ordem do "amor conjugal" incita, ao contrário, a todos os
recalques, a todas as mentiras. Antes de tudo, impede que os esposos se conheçam realmente. A intimidade quotidiana não cria
compreensão nem simpatia. O marido respeita demais a mulher
para se interessar pelos avatares da vida psicológica que ela vive;
seria reconhecer-lhe uma autonomia secreta que poderia evidenciar-se incômoda, perigosa; tem ela realmente prazer na cama?
Gosta realmente do marido? Sente-se realmente feliz em lhe obedecer? Ele prefere não se interrogar a esse respeito; tais problemas parecem-lhe até chocantes. Desposou uma "mulher honesta",
que é por essência virtuosa, devotada, fiel, pura, feliz e que pensa
o que se deve pensar. Um doente, depois de ter agradecido seus
amigos, seus parentes, suas enfermeiras, disse a sua jovem mulher
que durante seis meses não saíra de sua cabeceira: "A ti não
agradeço, cumpriste apenas teu dever". O marido não atribui
nenhum mérito a nenhuma das qualidades da mulher; são garantidas pela sociedade, estão implícitas na própria instituição
do casamento; ele não percebe que a mulher não sai de um livro
de Bonald, que é um indivíduo de carne e osso; encara como
dada a fidelidade dela às normas que ela se impõe: que tenha de
vencer tentações, que talvez fraqueje, que em todo caso sua paciência, sua castidade, sua decência sejam conquistas difíceis, não
o leva em conta; ignora mais radicalmente ainda os sonhos dela,
seus fantasmas, suas nostalgias, o clima afetivo em que vive seus
dias. Chardonne mostra-nos em Eve um marido que durante
anos escreve um diário de sua vida conjugal: fala da mulher
com matizes delicados, mas somente da mulher tal qual a vê, tal
qual é para ele, sem nunca lhe restituir sua dimensão de indivíduo livre: é fulminado quando vem a saber de repente que ela
não o ama, que o abandona. Falou-se amiúde da desilusão do
homem ingênuo e leal diante da perfídia feminina; é escandalizados que os maridos de Bernstein descobrem que a companheira
de sua existência é ladra, má, adúltera; recebem o golpe com uma
coragem viril mas nem por isso deixa o autor de malograr em
apresentá-los como generosos e fortes; eles se nos afiguram principalmente uns estúpidos isentos de sensibilidade e de boa vontade; o homem condena a dissimulação nas mulheres, mas é preciso muita complacência para se deixar ludibriar com tanta constância. A mulher está votada à imoralidade porque a moral consiste para ela em encarnar uma entidade inumana: a mulher forte,
a mãe admirável, a mulher de bem etc. Desde que pense, que
sonhe, que deseje, que respire sem palavra de ordem, está traindo
o ideal masculino. É por isso que tantas mulheres só se permitem "ser autênticas" na ausência do marido. Reciprocamente, a mulher
não conhece o marido; crê perceber-lhe a fisionomia verdadeira
porquê o apreende em sua contingência quotidiana: mas o homem
é antes de mais nada o que faz no mundo, entre outros homens.
Recusar compreender o movimento de sua transcendência é desnaturá-lo. "A gente casa com um poeta, diz Elise, e, quando se é
mulher dele, o que se observa primeiramente é que esquece de
puxar o cordão da privada" (cf. Jouhandeau, Chroniques maritales). Nem por isso é ele menos poeta e a mulher que não se interessa pelas suas obras conhece-o menos do que um leitor qualquer. Muitas vezes, a mulher não tem culpa de que essa cumplicidade lhe seja proibida: ela não pode pôr-se a par dos negócios
do marido, não tem a experiência, a cultura necessária para "segui-lo": malogra em se unir a ele através dos projetos bem mais
essenciais para ele do que a repetição monótona dos dias. Em
certos casos privilegiados, a mulher pode conseguir tornar-se uma
verdadeira companheira para o marido: discute-lhe os projetos,
aconselha-o, participa dos trabalhos dele. Mas embala-se com
ilusões se acredita realizar assim uma obra pessoal: ele continua
sendo a única liberdade atuante e responsável. É preciso que
ela o ame para encontrar alegria em servi-lo; sem amor só terá
despeito porque se sentirá frustrada do produto de seus esforços.
Os homens — fiéis ao conselho de Balzac, de tratar a mulher
como escrava embora a persuadindo de que é rainha — exageram
propositadamente a importância da influência exercida pelas mulheres; no fundo sabem muito bem que mentem. Georgette Leblanc foi vítima dessa mistificação quando reclamou de Maeterlinck que inscrevesse os nomes de ambos no livro que ela acreditava terem escrito juntos. No prefácio dos Souvenirs da
cantora, Grasset explica-lhe sem cerimônia que todo homem concorda em saudar, na mulher com quem partilha a vida, uma associada, uma inspiradora, mas não encara menos por isso seu trabalho como lhe pertencendo pessoalmente; e com razão. Em toda
ação, em toda obra é o momento da escolha e da decisão que
conta. A mulher desempenha geralmente o papel da bola de cristal que os videntes consultam: qualquer uma serviria. E a prova está em que muitas vezes o homem acolhe com a mesma
confiança outra conselheira, outra colaboradora. Sofia Tolstoi
copiava os manuscritos do marido, passava-os a limpo: mais tarde
ele encarregou uma das filhas do trabalho; Sofia compreendeu
então que nem o seu zelo a tornara indispensável. Só um trabalho autônomo pode assegurar à mulher uma autonomia autêntica [2].
A vida conjugal assume, segundo os casos, aspectos diferentes. Para numerosas mulheres o dia desenrola-se da mesma
maneira mais ou menos. Pela manhã, o marido deixa a esposa
apressadamente: é com prazer que ela ouve a porta fechar-se
atrás dele; gosta de reencontrar-se livre, sem ordens, soberana em
sua casa. Os filhos partem por sua vez para a escola: ela ficará
sozinha durante o dia todo; o bebê que se agita no berço ou
brinca no parque não é uma companhia. Ela dedica um tempo
mais ou menos demorado à toilette, à casa; se tem criada, dá-lhe
ordens, mexe um pouco na cozinha tagarelando; ou dá um giro
na feira, troca algumas palavras sobre o custo de vida com as
vizinhas ou os fornecedores. Se o marido e os filhos voltam
para almoçar, ela não aproveita muito a presença deles; tem mais
que fazer, preparar a refeição, servir, tirar a mesa; o mais das vezes eles não voltam. De qualquer maneira tem diante de si uma
tarde longa e vazia. Leva os filhos mais novos ao jardim público,
faz tricô ou cose enquanto os vigia; ou sentada à janela, em casa,
conserta roupa; suas mãos trabalham, seu espírito não; remói
preocupações, esboça projetos; devaneia, aborrece-se; nenhuma de
suas ocupações se basta a si mesma; seu pensamento está voltado
para o marido, para os filhos que usarão as camisas consertadas,
que comerão a comida que ela prepara; vive só para eles; em que
lhe são eles gratos? Pouco a pouco seu tédio vira impaciência,
ela começa a esperar com ansiedade a volta deles. Os filhos
chegam da escola, ela beija-os, interroga-os, mas eles precisam
fazer suas lições, têm vontade de brincar, escapam, não são uma
distração. Depois, tiveram notas más, perderam um lenço, fazem
barulho, desordem, brigam; é sempre mais ou menos preciso ralhar com eles; a presença deles cansa mais a mãe do que a acalma. Ela espera cada vez mais imperiosamente o marido. Que
estará fazendo? Por que não voltou ainda? Ele trabalhou, viu
gente, conversou, não pensou nela; põe-se a ruminar com nervosismo que é tola por lhe sacrificar a mocidade, não lhe será grato.
O marido, a caminho da casa onde a mulher se encerrou, sente
que é vagamente culpado; nos primeiros tempos de casado, trazia
umas flores, um presentezinho; mas esse rito logo carece de sentido ; agora ele chega de mãos abanando e tem tanto menos pressa
em chegar quanto apreende o acolhimento quotidiano. Com efeito, muitas vezes a mulher vinga-se do tédio com uma cena, vinga-
-se da espera do dia; com isso previne-se também contra a decepção que não satisfará as esperanças da espera. Mesmo se
cala suas queixas, o marido desilude-se por sua vez. Não se divertiu no escritório, está cansado; tem um desejo contraditório
de excitação e repouso. A fisionomia demasiado familiar da
mulher não o arranca de si mesmo; sente que ela gostaria que
ele partilhasse as preocupações dela, que espera também distração e relaxamento: sua presença pesa-lhe sem lhe dar satisfação
ou descanso verdadeiro. Os filhos não trazem tampouco divertimento ou paz: refeição e noite decorrem em meio a um vago
mau humor; lendo, ouvindo o rádio, conversando molemente.
Sob a intimidade aparente, continuarão sós. Entretanto, a mulher
pergunta-se com uma esperança ansiosa — ou uma apreensão
não menos ansiosa — se nessa noite (finalmente! ainda!) alguma coisa acontecerá. Adormece, desiludida, irritada ou aliviada;
é com prazer que ouvirá a porta bater amanhã cedo. A sorte
das mulheres é tanto mais dura quanto mais pobres e sobrecarregadas de trabalho; melhora quando têm lazeres e distrações ao
mesmo tempo. Mas este esquema — tédio, espera, decepção — se
encontra em muitos casos.
Certas evasões[3] apresentam-se à mulher; mas na prática
não são permitidas a todas. Na província particularmente, as
cadeias do matrimônio são pesadas; é preciso que a mulher encontre uma maneira de assumir uma situação a que não pode fugir.
Algumas há, já o vimos, que se enchem de importância e tornam-
-se matronas tirânicas, megeras. Outras comprazem-se no papel de vítimas, fazem-se escravas infelizes do marido, dos filhos,
e tiram disso uma alegria masoquista. Outras perpetuam as condutas narcisistas que descrevemos a propósito da jovem; sofrem,
elas também, de não se realizar em nenhuma empresa e de, não
se "fazendo ser nada", não serem nada. Indefinidas, sentem-se
ilimitadas e se imaginam menosprezadas; rendem-se a si mesmas um culto melancólico; refugiam-se em sonhos, em comédias, doenças, manias, cenas; criam dramas em torno de si ou se encerram
em um mundo imaginário; a "sorridente Mme Beudet" que Amiel
pintou, é dessa espécie. Encerrada na monotonia de uma vida
provinciana, ao lado de um marido grosseiro, não tendo oportunidade de agir nem de amar, é corroída pelo sentimento do
vazio e da inutilidade de sua vida; tenta encontrar uma compensação em devaneios romanescos, nas flores de que se cerca,
nos vestidos, em sua personagem: até esses jogos o marido perturba. Ela acaba tentando matá-lo. As condutas simbólicas
com que a mulher se evade podem acarretar perversões, suas
obsessões levar ao crime. Há crimes conjugais que são ditados
menos por interesse do que por puro ódio. Assim é que Mauriac
nos mostra Thérèse Desqueyroux tentando envenenar o marido
como o fez outrora Mme Lafarge. Absolveu-se ultimamente uma
mulher de 40 anos que durante vinte suportara um marido odioso e que um dia, friamente, o estrangulara com a ajuda do filho
mais velho. Não havia para ela outro meio de se libertar de
uma situação intolerável.
A uma mulher que intenta viver sua situação com lucidez e
autenticidade não sobra muitas vezes senão o recorrer a um orgulho estoico. Como depende de tudo e de todos, só pode conhecer uma liberdade toda interior, logo abstrata; recusa os princípios e os valores convencionais, julga, interroga e assim escapa
da escravidão conjugai; mas sua reserva altiva, sua adesão à
fórmula "suporta e abstém-te" não constituem senão uma atitude negativa. Retesada na renúncia, no cinismo, carece de
um emprego positivo de suas forças; enquanto é entusiasta, viva,
esforça-se engenhosamente por utilizá-las: auxilia os outros, consola, protege, dá, multiplica suas ocupações; mas sofre por não
encontrar nenhuma tarefa que realmente a solicite, por não consagrar sua atividade a nenhum fim. Corroída, muitas vezes, pela
solidão e pela esterilidade, acaba por se renegar, se destruir. Exemplo notável de um tal destino é-nos dado por Mme de Charrière.
No atraente livro que lhe dedicou (O Retrato de Zélida), Geoffrey Scott não a apresenta com "traços de fogo, fronte de gelo".
Mas não foi a razão que apagou nela essa chama de vida que,
no dizer de Hermenches teria "aquecido um coração de lapão";
foi o casamento que lentamente assassinou a deslumbrante Bela
de Zuylen; fez de sua resignação razão: fora preciso heroísmo
ou gênio para inventar outra saída. Que suas grandes e raras
qualidades não tenham bastado para salvá-la, é uma das mais irrecusáveis condenações da instituição conjugal que se nos deparam na história.
continua página 240...
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Leia também:
O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (13)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (14)
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Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
"O que é uma mulher?"
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[1] Pode haver amor dentro do casamento; mas então não se fala
amor conjugal"; quando se pronunciam estas palavras, o amor está ausente; do mesmo modo quando se diz de um homem que ele é
"muito comunista" já se está dizendo que não é um comunista; um
"homem muito honesto" é um homem que não pertence à simples categoria dos homens honestos etc.
[2] Há, por vezes, uma colaboração verdadeira entre o homem e a mulher, colaboração em que os dois são igualmente autônomos: como, por exemplo, no caso do casal Joliot-Curie. Mas então a mulher, tão competente quanto o marido, larga o papel de esposa; as relações entre ambos não são mais de ordem conjugal. Há também mulheres que se valem do marido para atingir objetivos mais pessoais; escapam assim à condição de mulher casada.
[2] Há, por vezes, uma colaboração verdadeira entre o homem e a mulher, colaboração em que os dois são igualmente autônomos: como, por exemplo, no caso do casal Joliot-Curie. Mas então a mulher, tão competente quanto o marido, larga o papel de esposa; as relações entre ambos não são mais de ordem conjugal. Há também mulheres que se valem do marido para atingir objetivos mais pessoais; escapam assim à condição de mulher casada.
[3] Cf. cap. VII.
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