sexta-feira, 4 de julho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mais alguém (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Mais alguém 
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     Dias longos – os mais longos, objetivamente falando, com referência ao número das suas horas de sol; pois a extensão astronômica era incapaz de influir sobre a pouca duração do dia avulso tanto como dos dias em geral, na sua fuga monótona. O equinócio da primavera já se passara havia três meses. Chegara o solstício de verão. Mas o ano natural ali em cima seguia o calendário com certa relutância. Somente nesses dias a primavera começara a impor-se definitivamente, uma primavera ainda livre de todo o peso do verão, aromática, transparente e leve, com um azul de esplendor argentino e com uma abundância infantil de cores na floração dos prados. 
    Nas encostas, Hans Castorp encontrava as mesmas flores das quais Joachim, na sua amabilidade, lhe pusera no quarto alguns exemplares, então os últimos, para lhe dar as boas vindas: aquilégias e campânulas. Isto significava que o ciclo do ano estava a ponto de se fechar sobre si. Mas quantas variedades da vida orgânica não tinha brotado do solo, por entre a nova esmeraldina das vertentes e das pradarias: estrelas, cálices, campanas e outras formas menos regulares, enchendo com o seu perfume seco o ar abrasado pelo sol! Assomavam lícnides alpinas e amores-perfeitos selvagens em enormes quantidades, bem-me-queres, margaridas, prímulas amarelas e vermelhas – tudo muito maior e mais lindo do que Hans Castorp conhecia da planície, se é que ali prestara atenção à flora. Também se viam soldanelas balouçando as campanazinhas providas de pestanas, soldanelas azuis, purpúreas e rosadas, especialidade da região.
     O jovem ia colhendo essas flores graciosas; levava ramalhetes ao sanatório, e isso numa intenção muito séria; não o fazia apenas para adornar o quarto, senão para se dedicar, como se propusera, a estudos rigorosamente científicos. Adquirira alguns apetrechos florísticos, um manual de botânica geral, uma pazinha de tamanho adequado para desenterrar as plantas, um herbário e uma lupa forte. Com isso se punha a trabalhar na sacada, já em trajes de verão, num dos ternos que trouxera consigo quando da sua chegada, o que também evidenciava que o ano em breve completaria o giro.
     Havia flores frescas em diversos jarros sobre tudo que era mesa no interior do quarto, bem como na mesinha com a lâmpada, que se achava ao lado da excelente espreguiçadeira. Flores meio murchas, já um tanto débeis, mas ainda cheias de seiva, encontravam-se espalhadas pelo parapeito e pelo chão da sacada, enquanto outras, cuidadosamente desdobradas, iam sendo comprimidas por grandes pedras colocadas sobre duas folhas de mata-borrão, que lhes absorviam a umidade, para que Hans Castorp pudesse classificar os preparados ressequidos e achatados no seu álbum, onde os fixava com tiras de papel gomado. O jovem estava deitado, com os joelhos erguidos, uma perna sobre a outra, enquanto o manual aberto lhe repousava sobre o peito, com o dorso para cima, formando uma espécie de cumeeira. Mantinha o vidro espesso e polido da lupa entre os ingênuos olhos azuis e uma flor, cuja corola removera parcialmente com o canivete, a fim de poder melhor examinar o tálamo. Grandemente aumentado pela lente, o objeto parecia intumescer, assumindo extravagantes formas carnosas. Ali estavam as anteras a derramar da extremidade dos filamentos o pólen amarelo! Sobre o ovário eriçava-se o estilete canelado, e por meio de um corte longitudinal era possível ver o canalzinho por onde os grãos e os utrículos do pólen, boiando numa secreção açucarada, eram arrastados até a cavidade do gineceu. Hans Castorp contava, conferia e comparava; fazia estudos a respeito da estrutura e da posição das pétalas do cálice e da corola, tanto dos órgãos masculinos como femininos; confrontava aquilo que via com gravuras científicas e esquemáticas; verificava com satisfação a exatidão científica na estrutura das plantas que conhecia; passava, então, a determinar, com a ajuda de Lineu, aquelas cujos nomes ignorava, quanto à seção, ao grupo, à ordem, à série, à família e à espécie. Como dispusesse de muito tempo, conseguiu realizar alguns progressos na sistemática botânica, à base da morfologia comparativa. Abaixo da planta seca colada na página do herbário, escrevia numa bela caligrafia o nome latino que a ciência humanística galantemente lhe outorgara; a seguir acrescentava as peculiaridades características. Por fim mostrou tudo ao honrado Joachim, que ficou surpreso.
     À noite, Hans Castorp contemplava os astros. Apossara-se dele o interesse pelo transcurso do ano, posto que já tivesse assistido na terra a mais de vinte voltas em torno do sol, sem nunca se importar com essas coisas. Se nós mesmos involuntariamente nos servimos de termos como “equinócio da primavera”, fizemo-lo em conformidade com a maneira de pensar do nosso herói, levando em conta as suas ocupações presentes. Pois dessa espécie eram os termini que nos últimos tempos ele gostava de empregar, novamente pasmando o primo pelos seus conhecimentos especializados. 

– Agora o Sol se acha a ponto de entrar no signo de Câncer – disse, por exemplo, durante um passeio. – Você sabia disso? É o primeiro signo de verão do zodíaco; compreende? Depois, o Sol passará por Leão e por Virgem, em direção ao ponto do outono, um dos pontos equinociais, aonde chegará em fins de setembro, quando a sua posição voltará a coincidir com o equador do céu, como ocorreu recentemente em março, com a entrada do Sol no signo de Áries. 
– Isso me escapou – respondeu Joachim, um tanto carrancudo. – Que sabedoria é essa? Signo de Áries? Zodíaco? 
– Sim, senhor, o zodíaco, o círculo dos signos. As velhíssimas constelações: Escorpião, Sagitário, Capricórnio, etc. Não é possível não se interessar por isso. Há doze signos, como até você deve saber. Três para cada estação, os ascendentes e os descendentes, a órbita das constelações que o Sol perfaz. Acho isso grandioso! Imagine que os encontraram pintados no teto de um templo egípcio; era até um templo de Afrodite, nas proximidades de Tebas. Os caldeus também os conheciam; os caldeus, sabe? Aquele velho povo de magos, de origem árabe e semítica, sumamente versado em astrologia e em profecias. Também eles já estudaram o cinturão celeste, por onde se movimentam os planetas, e subdividiram-no nesses doze signos, os dodecatemoria, tais como nos foram transmitidos. É notável! Isso é a humanidade! 
– Agora você já diz “humanidade”, como Settembrini. 
– Sim, como ele, ou talvez de modo um pouco diferente. A gente deve aceitá-la assim como ela é, e de qualquer maneira trata-se de uma coisa impressionante. Penso nos caldeus com grande simpatia, quando fico deitado, olhando os planetas que eles também já conheciam. Verdade é que não conheciam todos. Urano foi descoberto só recentemente, por meio do telescópio, faz cento e vinte anos. 
– Recentemente? 
– Pois, sim, é o que chamo “recentemente”, em comparação com os três mil anos decorridos desde a época deles. Mas quando estou na minha cadeira, contemplando os planetas, esses três mil anos, por sua vez, transformam-se em “recentemente”, e eu me recordo intimamente dos caldeus, que também os viram e pensaram à sua maneira a respeito deles. E isso é a humanidade. 
– Muito bem. Você está revolvendo ideias grandiosas no seu cérebro. 
– Você diz “grandiosas” e eu as chamo “íntimas”. Depende do ponto de vista... Mas, quando o Sol entrar no signo de Libra, daqui a três meses, aproximadamente, os dias voltarão a ser mais curtos, de forma que o dia e a noite serão iguais. E mais tarde continuarão diminuindo, até a época do Natal, como você sabe. Mas não se esqueça de que os dias aumentarão novamente, enquanto o Sol passar pelos signos de inverno, Capricórnio, Aquário, Peixes, pois o ponto da primavera torna então a aproximar-se, como já o fez três mil vezes desde os tempos dos caldeus, e os dias prosseguirão aumentando, até daqui a um ano, quando chegar de novo o princípio do verão. 
– Claro! 
– Nada de claro! Em realidade, isso não passa de uma ilusão. Durante o inverno, aumentam os dias, e quando chega o mais longo, em 21 de junho, com o início do verão, já começa a descida, voltam a diminuir, enquanto nos encaminhamos para o inverno. Isso lhe pareceu “claro”, mas quem faz abstração dessa tal “clareza” passa por momentos de angústia e pavor e sente necessidade de agarrar-se em qualquer coisa firme. É como se algum espírito brincalhão tivesse disposto o mundo de tal forma que ao princípio do inverno começasse em realidade a primavera, e ao início do verão, o outono... Você tem a impressão de que lhe pregam uma peça, de que o fazem girar, mostrando-lhe a perspectiva de um ponto onde se dará meia volta. Falar-se em voltas, quando se anda num círculo! Ora, o círculo consta de um sem-número de pontos em que se muda de direção. As voltas não podem ser medidas. Não há rumo que persista, e a eternidade não é uma linha reta, mas um carrossel. 
– Pare com isso! 
– Festejos de solstício! – exclamou Hans Castorp. – Solstício de verão! Fogueiras acesas nas montanhas e cirandas dançadas de mãos dadas ao redor das labaredas erguidas! Nunca vi isso, mas ouvi dizer que é assim que fazem os homens primitivos, quando celebram a primeira noite de verão, com a qual se inicia o outono, essa hora meridiana e esse ponto culminante do ano, donde, então, parte a descida. Dançam, giram e exultam. De que exultam, na sua primitividade? Você é capaz de compreendê-los? Por que sentem essa alegria desenfreada? Será porque o caminho começa a descer, em direção às trevas, ou talvez porque subiram até esse momento e agora se acham em cima, no ponto da inflexão inevitável, que é a noite da plenitude do verão, o apogeu, mesclado de depressão e altivez? Chamo as coisas pelo seu nome, com as palavras que me ocorrem. É uma presunção melancólica ou uma melancolia presumida o que faz os homens primitivos exultar e dançar em torno das chamas. Agem assim por puro desespero, se você me permite essa expressão, em homenagem ao círculo falaz e à eternidade sem rumo duradouro, na qual tudo se repete. 
– Não permito nada – resmungou Joachim. – Por favor, não me meta nessa história! São assuntos meio estrambólicos esses com que você se ocupa à noite, durante o repouso. 
– Pois é. Não quero negar que você emprega o seu tempo de um modo mais vantajoso, quando estuda a sua gramática russa. Em breve dominará perfeitamente esse idioma. Olhe, rapaz, isso será muito útil para você, se um dia houver uma guerra, o que queira Deus não aconteça! 
– Queira Deus não aconteça? Você fala como um civil. A guerra é necessária. Sem guerras, o mundo apodreceria dentro de pouco tempo, como disse Moltke. 
– Bem, parece que ele tem tendência para isso – replicou Hans Castorp. Estava a ponto de falar novamente dos caldeus, que também haviam feito guerras e conquistado a Babilônia, se bem que fossem semitas e quase judeus. Mas, nesse momento, os primos repararam em dois senhores que, caminhando à sua frente, tinham sido interrompidos na sua conversa pelo som da voz de Hans Castorp e se voltavam para olhá-los.

     Passou-se isso na rua principal, entre a estância balneária e o Hotel Belvedere, durante o caminho de regresso à “aldeia”. O vale estendia-se engalanado, num vestido de cores suaves, claras e alegres. O ar era delicioso. Uma sinfonia de prazenteiros aromas de flores campestres enchia a atmosfera pura, seca, impregnada de um sol luzidio.
     Reconheceram Lodovico Settembrini, ao lado de um desconhecido. Parecia, porém, que o italiano, por sua vez, não os avistara ou não desejava encontrar-se com eles, pois desviou rapidamente o olhar e, gesticulando, absorveu-se na palestra com o companheiro; até se esforçou por avançar mais depressa. Mas, quando os primos, passando à direita dele, o saudaram com uma mesura humorística, fingiu surpresa enorme e extremamente agradável, exclamando “Sapristi!” e “Vejam só!”. No entanto, procurou dessa vez retardar o passo, para que os primos pudessem passar e distanciar-se, o que eles não compreenderam, ou melhor: não notaram, porque não viram nenhuma razão para isso. Sinceramente satisfeitos pelo reencontro depois de uma longa separação, detiveram-se a seu lado e apertaram-lhe a mão, informando-se sobre o seu estado de saúde e olhando, numa expectativa cortês, para o companheiro dele. Assim o forçaram a fazer o que, evidentemente, preferia evitar, mas o que se afigurava aos jovens a coisa mais natural e mais indicada do mundo, isto é, apresentá-los ao estranho. Fê-lo, finalmente, com uns gestos amáveis e com palavras joviais, quando o grupo já estava a ponto de se pôr em movimento, de maneira que os apertos de mão cruzaram-se diante do seu peito.
     O desconhecido, que tinha aproximadamente a idade de Settembrini, era, como ficaram sabendo, o vizinho dele, o outro inquilino do alfaiate Lukacek. Segundo entenderam os jovens, chamava-se Naphta. Era um homem pequeno, magro, escanhoado e de uma fealdade tão chocante que quase merecia ser qualificada de corrosiva; causou espanto aos primos. Tudo nele parecia cortante: o nariz adunco que dominava o rosto, a boca de lábios, finos e comprimidos, as grossas lentes dos óculos de aros leves, atrás dos quais apontavam os olhos de um cinzento claro, até mesmo o silêncio que o homem guardava, e que fazia supor que também a sua maneira de falar seria incisiva e lógica. Não usava chapéu, como era costume ali, e andava sem sobretudo; suas roupas eram, aliás, muito bem-feitas: um terno de flanela azul-escuro com listras brancas, de corte elegante, não exageradamente moderno, como verificaram os relances críticos e mundanos dos primos, que se encontraram com um olhar do pequeno Sr. Naphta, igualmente examinador, mas mais rápido e mais penetrante, que lhes deslizou pelos corpos. Não soubesse Lodovico Settembrini usar com tanta graça e dignidade o paletó hirsuto e as calças de tecido xadrez, sua pessoa teria destoado desfavoravelmente da aparência distinta dos seus companheiros. Tal não se dava, porém, de maneira alguma, porque as calças tinham sido passadas havia pouco, de modo que à primeira vista pareciam quase novas – obra de seu senhorio, como supuseram os primos. Se o feioso Naphta, pela qualidade e pela elegância mundana das suas roupas, achava-se mais próximo dos primos do que de seu vizinho, aproximavam-no deste e distanciavam-no dos jovens não somente a sua idade mais avançada, como também outra coisa que facilmente se deduzia da tez dos quatro homens: a dos primos era avermelhada e trigueira pelo efeito do sol, ao passo que a de Settembrini e de Naphta era pálida. No decorrer do inverno, o bronze do rosto de Joachim assumira um matiz ainda mais escuro, e o semblante de Hans Castorp luzia, rosado, sob a cabeleira loura. A ação dos raios, entretanto, não exercera efeito algum sobre a palidez latina do Sr. Settembrini, que formava um conjunto nobre com o bigode negro. E a pele do seu companheiro, embora de cabelos louros – eram de um louro cinzento, metálico e desbotado, e ele usava-os penteados para trás, alisados, desnudando a testa fugidia –, mostrava igualmente o tom baço e esbranquiçado das raças morenas. Dois dos quatro levavam bengala: Hans Castorp e Settembrini; Joachim não a apreciava, por razões militares, e Naphta, depois de apresentado, voltara imediatamente ajuntar as mãos atrás das costas. Eram mãos pequenas e delicadas, tais quais os pés, em harmonia com a sua estrutura. O fato de ele estar constipado e o modo débil, ineficaz como tossia, não causavam espécie.
     Aquele ligeiro quê de perplexidade ou de agastamento que Settembrini mostrara ao ver os jovens foi vencido por ele com grande elegância. O italiano exibiu um humor radiante e acompanhou a apresentação de toda sorte de chistes. Designou, por exemplo, o Sr. Naphta como princeps scholasticorum. Afirmou que a alegria “campeava magnificamente na sala do seu peito”, como dizia Aretino; e isso era devido à primavera, a primavera que lhe enchia o coração. Os senhores sabiam – continuou – que ele tinha muita coisa que objetar ao mundo dali de cima e que já desabafara frequentemente. Mas, glória a essa primavera alpina, que pelo menos passageiramente o reconciliava com todos os horrores dessa esfera! Nela não havia nada de tudo quanto a primavera da planície tinha de perturbador e de excitante. Nada de efervescência nas profundidades, nada de brumas carregadas de eletricidade! Só clareza, secura, aprazimento e graça austera! Isso harmonizava com seu gosto, era superbe.
 
continua pág 243...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Mais alguém (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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