sábado, 28 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Transformações (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Transformações 
.
continuando...

     Ambos os médicos, ora um, ora outro, ministravam o remédio, mas o conselheiro fazia-o com perícia, de um só golpe, esvaziando a seringa no próprio momento da picada. De resto não se preocupava com o lugar em que picava, de maneira que às vezes resultava uma dor infernal, e o ponto acometido permanecia por muito tempo duro e ardente. Além disso a injeção atacava fortemente o organismo em geral, abalando o sistema nervoso à maneira de um violento esforço desportivo. Isso e também a elevação momentânea da temperatura, que o remédio produzia, atestavam-lhe o poder que possuía. Era o que o conselheiro predissera e o que acontecia, segundo a regra e sem que o fenômeno anunciado desse motivo para queixas. A história toda levava apenas um instante, quando, finalmente, chegava a vez da pessoa; num ápice recebia-se o contra veneno sob a pele da coxa ou do braço. Mas, em certas ocasiões, quando o Dr. Behrens se achava bem disposto e não entristecido pelo tabaco, era possível entabular, durante a injeção, uma rápida palestra com ele, que Hans Castorp procurava dirigir, pouco mais ou menos, do seguinte modo: 

– Lembro-me com o maior prazer daquela agradável hora de café que passamos na sua casa, senhor conselheiro, no outono do ano passado. Ainda ontem, ou talvez um pouco antes, falei com meu primo a esse respeito... 
– Gaffky 7 – disse o médico. – É o último resultado. O rapaz decididamente não faz menção de se desintoxicar. E contudo nunca me suplicou tanto como agora, nunca insistiu tanto comigo em ir-se embora, para brandir o sabre. Esse criançola! Anda choramingando por causa dos seus quinze meses, como se fossem séculos que ele desperdiça aqui! Quer partir de qualquer maneira. Então já lhe disse a mesma coisa? O senhor deveria falar-lhe da sua parte, seriamente e com firmeza. Esse sujeito vai se arruinar totalmente, ao engolir antes do tempo a poética cerração de vocês, com aquilo que ele tem à direita, em cima. Um ferrabrás como ele não precisa de muita massa cinzenta, mas o senhor, como homem mais circunspecto e como civil de formação burguesa, tem a obrigação de fazê-lo entrar no juízo, antes que ele cometa alguma loucura. 
– É o que faço, senhor conselheiro – respondeu Hans Castorp, sem deixar de dirigir o rumo da conversa. – Faço isso muitas vezes, quando ele procura rebelar-se, e eu acho que Joachim voltará à razão. Mas os exemplos que a gente tem diante dos olhos nem sempre são os melhores. É isso o que está ruim. A cada instante há alguém que parte; partem para a planície, por iniciativa própria, sem verdadeira autorização, e no entanto com uma alegria festiva, como se a partida fosse justificada. Isso exerce uma certa sedução sobre caracteres fracos. Faz pouco tempo, por exemplo... deixe ver quem partiu recentemente... Uma senhora, da mesa dos “russos distintos”, Mme. Chauchat. Ouvi dizer que ela viajou para Daghestan. Bem, Daghestan, eu não conheço o clima daquela região. Pode ser que seja menos desfavorável do que o nosso ar da praia. Mas em todo caso é um país plano, do nosso ponto de vista, embora geograficamente talvez seja montanhoso; não sou muito forte nessas coisas. Como é possível viver lá embaixo sem estar curado, num país onde faltam os conceitos básicos e ninguém tem uma ideia das nossas regras nem sabe quando se deve observar o repouso ou tomar a temperatura? Aliás, ela tenciona voltar de qualquer jeito, como me disse ocasionalmente... Mas, afinal, por que chegamos a falar dela?... Pois é, aquele dia encontramos o senhor no jardim; não é, doutor? Lembra-se ainda? Quer dizer, o senhor nos encontrou a nós, quando estávamos sentados num banco – sei ainda qual foi – e fumávamos. Ou melhor, quem fumava era eu, pois meu primo não fuma, inexplicavelmente. E o senhor também estava fumando. Então oferecemos um ao outro as nossas marcas preferidas; lembro-me perfeitamente. O seu Brasil me agradou muitíssimo, embora seja preciso tratá-lo como a um potro, com prudência; senão, acontece alguma coisa como aquela que se passou com o senhor depois dos dois pequenos Havanas, quando esteve a ponto de dançar a sua última dança. A gente pode gracejar sobre aquilo, porque tudo terminou bem... Recentemente encomendei em Bremen mais algumas centenas de Maria Mancini. Estou muito acostumado a essa marca, que me é simpática sob todos os aspectos. É verdade que o frete e a alfândega a encarecem sensivelmente, e se o senhor me aumentar de novo o prazo da minha permanência, sou capaz de me converter ao fumo daqui. Nas vitrines se veem charutos muito bonitos... E depois tivemos oportunidade de ver os seus quadros; lembro-me como se fosse hoje. Gostei sumamente dos seus trabalhos. Fiquei mesmo surpreendido ao ver quanta coisa o senhor consegue fazer com tintas a óleo. Eu nunca me atreveria a tanto. Foi nessa ocasião que vimos também o retrato de Mme. Chauchat, com a pele magistralmente reproduzida. Francamente, senti-me entusiasmado. Naquela época ainda não conhecia o modelo, ou apenas de vista e de nome. Depois, pouco antes da sua partida, cheguei a conhecê-la pessoalmente. 
– Não diga! – respondeu o conselheiro áulico. Era a mesma resposta que dera – o leitor nos permita esse retrospecto – quando Hans Castorp, antes do primeiro exame médico, lhe comunicara que tinha um pouco de febre. E não disse mais nada. 
– Sim, senhor, conheci-a pessoalmente – confirmou Hans Castorp. – Sei por experiência que não é fácil entabular relações com pessoas estranhas aqui em cima, mas entre Mme. Chauchat e eu a coisa arranjou-se, casualmente, à última hora. Saiu uma palestra que... – Hans Castorp acabava de receber a injeção, e aspirando o ar por entre os dentes, deu um chiado de dor. – Fff! Dessa vez tenho certeza, doutor, que o senhor acertou num nervo importantíssimo. Ah! sim, está doendo barbaramente. Muito obrigado, um pouquinho de massagem faz bem... Pois é, saiu uma palestra que fez com que nos conhecêssemos melhor. 
– Sim? E então? – perguntou o conselheiro, sacudindo a cabeça, com cara de quem espera uma resposta cheia de elogios e põe na pergunta, de antemão, a confirmação dos esperados elogios, baseada na experiência própria.
– Acho que o meu francês claudicou bastante – esquivou-se Hans Castorp. – Afinal de contas, donde saberia eu falar melhor? Mas, no momento preciso, as palavras estão à mão, de maneira que conseguimos entender-nos mais ou menos bem. 
– Não duvido. E então? – voltou o Conselheiro a indagar, acrescentando por sua conta: – Bonitinha, não é? 

     Hans Castorp, abotoando o colarinho, achava-se de pé, com as pernas e os cotovelos escancarados, e com o rosto levantado para o teto. 

– No fundo é uma velha história – disse. – Acontece nas estações de cura que duas pessoas ou até duas famílias vivam durante semanas sob o mesmo teto e contudo completamente distanciadas. Um dia travam conhecimento, apreciam-se sinceramente, e ao mesmo tempo ficam sabendo que uma delas está a ponto de partir. Imagino que tais ocorrências deploráveis se passem frequentemente. Num caso desses, a gente gostaria de conservar, pelo menos, um certo contato, ter notícias um do outro, quero dizer, por correspondência. Mas Mme. Chauchat... 
– Ué... ela não quer? – riu-se o conselheiro jovialmente. 
– Isso mesmo. Ela não quis saber disso. Será que ela também não escreve ao senhor, assim de vez em quando? 
– Que idéia! – respondeu Behrens. – Ela nem pensa nisso. Primeiramente por preguiça, e além disso, em que língua escreveria? Eu não sei ler russo. Arranho-o um pouco, em caso de necessidade, mas não leio nem uma palavra. E o senhor tampouco, não é? Bem, e quanto ao francês ou ao alemão, nossa gatinha sabe miá-los com muita graça, mas para escrever se veria em apuros. Não se esqueça da ortografia, meu amigo! Sim, senhor, com isso temos de nos conformar. Mas ela volta de vez em quando. É uma questão de técnica ou de temperamento, como eu já lhe disse. Uns partem às vezes e precisam voltar mais dia menos dia, enquanto outros ficam logo o tempo suficiente para nunca mais terem necessidade de voltar. Se o seu primo partir agora – não deixe de lhe dizer isso bem claramente – é possível que o senhor ainda esteja aqui para assistir às solenidades do regresso dele. 
– Mas, doutor, quanto tempo acha o senhor que eu... 
– Que o senhor? Que ele! Acho que ele ficará menos tempo lá embaixo do que passou aqui em cima. Esta é a opinião da minha humilde pessoa, e seria muita amabilidade sua se a transmitisse a ele.

     Era aproximadamente nesses termos que se desenrolava esse tipo de conversa, dirigidas com astúcia por Hans Castorp, embora com um resultado entre nulo e ambíguo. Quanto ao tempo que era preciso permanecer ali para presenciar a volta de um enfermo partido prematuramente, a resposta fora equívoca, e, no que se refere a certa pessoa desaparecida, fora até nula. Hans Castorp nada ouviria dela, enquanto os separasse o mistério do espaço e do tempo; ela não lhe escreveria, e ele tampouco encontraria uma oportunidade para fazê-lo... Mas, refletindo bem, como poderia ser de outra forma? Não fora uma ideia muito pedante e burguesa da sua parte essa de sugerir uma troca de cartas, ao passo que outrora considerara desnecessário e nem sequer desejável que se falassem? E lhe “falara” ele realmente, no sentido que o Ocidente culto dá a essa palavra? Falara-lhe naquela noite em que estivera a seu lado? Não se expressara apenas numa língua estrangeira, como que num sonho, e de modo pouco civilizado? Para que então escrever em papel de carta ou cartões-postais, como os dirigia de vez em quando ao pessoal lá de casa, na planície, a fim de relatar as vicissitudes dos resultados dos exames médicos? Não tinha Clávdia razão de se sentir desobrigada de escrever, devido à liberdade que a doença lhe outorgava? Falar, escrever – deveras um assunto eminentemente humanista e republicano, um assunto para o mestre Brunetto Latini, que redigira aquele livro sobre as virtudes e os vícios, doutrinara os florentinos e lhes ensinara a discursar e a governar a sua república em conformidade com as regras da política...
     Com isso, os pensamentos de Hans Castorp começaram a rumar para Lodovico Settembrini, e ele corou, assim como fizera certa vez quando o escritor entrara de súbito no seu quarto de doente, acendendo repentinamente as luzes. Sem dúvida, Hans Castorp poderia ter dirigido ao italiano também as suas perguntas relativas aos enigmas transcendentais, fosse apenas para provocá-lo ou para resmonear, sem a esperança de receber uma resposta do humanista, que só se preocupava com os interesses terrestres da vida. Mas, desde o baile de carnaval e a cena emocionada com que Settembrini saíra da saleta de música, as relações entre Hans Castorp e ele haviam-se entibiado até certo ponto, o que se explicava pela consciência pesada de um e pelo profundo agastamento pedagógico do outro. A conseqüência era que se evitavam mutuamente e, durante semanas inteiras, não trocaram palavra alguma. Continuava Hans Castorp a ser um “filho enfermiço da vida” aos olhos do Sr. Settembrini? Não, provavelmente o desenganara este homem que procurava a moral na virtude e na razão... E Hans Castorp punha-se a recalcitrar com relação ao Sr. Settembrini; cerrava o cenho e franzia os lábios cada vez que se encontravam, enquanto o olhar negro e brilhante do italiano pousava nele numa reprovação silenciosa. Não obstante, essa birra se desfez imediatamente, quando o literato, semanas após, voltou a lhe dirigir a palavra, se bem que o fizesse apenas de passagem e sob a forma de alusões mitológicas, cuja compreensão requeria certa cultura ocidental. Foi depois da refeição; encontraram-se perto da porta envidraçada que já não se fechava com estrondo. Ao passar pelo jovem, e na intenção de não se demorar junto dele, Settembrini disse: 

– Pois então, engenheiro, gostou da romã?

     Hans Castorp sorriu, satisfeito, mas um tanto acanhado. 

– Como?... Que é que o senhor quer dizer, Sr. Settembrini? Uma romã? Mas não nos serviram romãs! Nunca na vida comi... Isto é, um dia, sim, bebi xarope de romã com soda. Achei muito doce.

     O italiano, que já se achava a alguma distância, virou a cabeça e retrucou: 

– Aconteceu algumas vezes que os deuses ou os mortais visitaram o reino das sombras e encontraram o caminho de volta. Mas os habitantes do Inferno sabem que quem comeu dos frutos desse reino lhes pertence para sempre. 

     E prosseguiu no caminho, com as suas eternas calças claras de tecido xadrez, deixando atrás Hans Castorp, que deveria sentir-se “trespassado” por essas palavras cheias de significação. E, com efeito, o jovem se ressentiu até certo ponto, posto que, entre irritado e divertido em virtude de tamanha pretensão, murmurasse de si para si: 

– Latini, Carducci, spaghetti, deixe-me em paz! Mesmo assim, essas primeiras palavras que lhe haviam sido concedidas, tornaram-no muito feliz. Pois, apesar do troféu, da macabra lembrança que ele levava sobre o coração, afeiçoara-se ao Sr. Settembrini, a cuja presença ligava grande importância, e a idéia de se ver para sempre rejeitado e abandonado pelo italiano indubitavelmente lhe pesaria na alma de modo mais opressivo e mais cruel do que os sentimentos de um aluno que rodasse nos exames e gozasse das vantagens da ignomínia, à maneira do Sr. Albin... Contudo, não se atreveu a entabular, da sua parte, uma conversa com o seu mentor, e este deixou passar outras semanas inteiras antes de entrar novamente em contato com seu discípulo enfermiço.

     Isso sucedeu quando as ondas marinhas do tempo, rolando no seu ritmo eternamente invariável, haviam trazido a Páscoa, que foi celebrada no Berghof, assim como eram observadas escrupulosamente todas as etapas e todos os marcos miliários, para se evitar a monotonia confusa. Na hora do café da manhã cada pensionista encontrou ao lado do talher um tufo de violetas; no segundo café da manhã, todos receberam ovos coloridos, é a mesa festiva do almoço estava enfeitada de coelhinhos de açúcar e chocolate. 

– Já fez alguma vez uma viagem por mar, tenente, ou o senhor, engenheiro? – perguntou o Sr. Settembrini, quando, depois da refeição, com o palito entre os dentes, se aproximou da mesinha dos primos, no vestíbulo. Como a maioria dos pensionistas, tinham abreviado, nesse dia, de um quarto de hora o repouso principal, para instalar-se diante de uma xícara de café e de um cálice de conhaque. – Esses coelhinhos e esses ovos coloridos relembram-me a vida num vapor grande, diante de um horizonte vazio há semanas, no deserto salino. Tal vida se passa sob condições cujo perfeito conforto não consegue fazer esquecer, senão superficialmente, a sua natureza monstruosa, ao passo que nas zonas mais profundas da alma a consciência dela continua doendo em forma de um secreto horror... Reencontro aqui o espírito com que, a bordo de uma arca dessas, as festas da terra ferma são piedosamente observadas. Refletem-se nisso as reminiscências de pessoas que vivem fora do mundo, recordações sentimentais do calendário... Na terra firme seria hoje a Páscoa, não é? Na terra firme celebram hoje o aniversário do rei – e nós também o fazemos, o melhor que podemos. Nós também somos criaturas humanas... Não tenho razão?

     Os primos concordaram com ele. Realmente, era assim. Hans Castorp, comovido pelo fato de o italiano ter falado com ele, e instigado pelo remorso, elogiou a observação em altos brados. Achou-a espirituosa, magnífica, literária, e fez tudo para lisonjear o Sr. Settembrini. Indiscutivelmente, era apenas de um modo superficial – assim como o Sr. Settembrini acabava de expressar-se com tanta plasticidade – que o conforto de um transatlântico fazia olvidar as circunstâncias e o seu caráter perigoso. Se ele podia tomar a liberdade de desenvolver algumas ideias por sua conta – havia nesse conforto perfeito até uma certa provocação, algo semelhante àquilo que os antigos chamavam hybris (para agradar ao seu interlocutor, chegou a citar os próprios antigos!) Mencionou também a altivez do Rei Baltasar e outras coisas nefandas. Por outro lado, porém, o luxo a bordo envolvia – usou mesmo o verbo “envolver” – um grande triunfo do espírito humano e da honra humana. O homem, ao transferir esse luxo e esse conforto para as águas coroadas de espuma salgada e ao mantê-lo ali, audaciosamente, plantava, por assim dizer, o pé na cerviz dos elementos, das potências bravias, e isso envolvia a vitória da civilização humana sobre o caos, se lhe era permitido servir-se dessa expressão...

     O Sr. Settembrini escutou-o atentamente, com os pés e os braços cruzados, enquanto, num gesto gracioso, cofiava com o palito o bigode sinuoso. 

– É interessante – disse. – O homem não pode fazer observações gerais de certa extensão, a respeito de qualquer assunto que seja, sem se trair inteiramente, sem depositar nelas, malgrado seu, toda a sua personalidade, sem representar, de alguma forma parabólica, o tema fundamental e o problema primitivo da sua vida. É isso o que acaba de lhe acontecer, engenheiro. Aquilo que o senhor disse agora brotou de fato do fundo de seu Eu e expressou também, de um modo poético, o estado momentâneo desse Eu: continha a fase experimental... 
Placet experiri – riu-se Hans Castorp, pronunciando o “c” à italiana e sacudindo a cabeça afirmativamente. 
Sicuro, se se trata, no caso em apreço, da paixão respeitável de explorar o mundo e não de mera licenciosidade. O senhor mencionou a hybris. Serviu-se desse termo. Mas a hybris da razão em face das potências tenebrosas é a mais alta humanidade, e quando atrai sobre si a vingança de divindades ciumentas, per esempio, quando a arca de luxo vai a pique, achamo-nos sempre à frente de um fim honroso. Também a façanha de Prometeu era hybris, e as torturas que ele padeceu no penedo da Cítia são consideradas por nós o mais sagrado dos martírios. Mas que se deve dizer daquela outra hybris, da perdição na experiência libidinosa, feita com as potências contrárias s à razão e hostis ao gênero humano? Há honra nelas? Pode haver honra em tal conduta? Si o no?

     Hans Castorp mexia a colher na xícara, se bem que esta não contivesse mais nada. 

– Engenheiro, engenheiro! – prosseguiu o italiano, meneando a cabeça, e a mirada dos olhos negros fixou-se pensativamente no espaço. – Não teme o senhor o furacão do segundo círculo do Inferno, o furacão que agita e sacode os pecadores da carne, os infelizes que sacrificaram a razão à volúpia? Gran Dio! Quando tenho a visão do senhor varrido pelo vendaval, voando de cá para lá, de cabeça para baixo, sinto-me com vontade de cair ao chão, de tanto pesar, assim como cai um cadáver...

     Riram-se, contentes de ouvi-lo gracejar e dizer coisas poéticas. Settembrini, porém, acrescentou: 

– O senhor vai se lembrar, engenheiro, como na noite de carnaval, bebendo vinho, se despediu em certo sentido de mim. Sim, senhor, foi uma espécie de despedida. Bem, hoje é a minha vez. Tal como os senhores me veem agora, estou a ponto de lhes dizer adeus. Vou sair desta casa.

     Os primos ficaram pasmados. 

– Não é possível. Está apenas brincando! – exclamou Hans Castorp, como o fizera numa ocasião semelhante. Estava quase tão assustado como naquele outro dia. Mas também Settembrini replicou: 
– Nem um pouquinho. É como digo. Além disso, o senhor já andava preparado para ouvir essa notícia. Avisei-o de que estava decidido a levantar as minhas tendas e a estabelecer-me definitivamente em qualquer parte da “aldeia”, logo que se mostrasse insustentável a minha esperança de poder voltar, dentro de um prazo mais ou menos previsível, ao mundo do trabalho. Que quer o senhor que eu faça? Esse momento chegou. É coisa certa que não me posso curar. Posso prolongar a minha vida, mas só aqui. A sentença, o veredicto final é “prisão perpétua”. O Dr. Behrens acaba de pronunciá-lo com o seu peculiar bom humor. Muito bem, tiro as consequências. Aluguei uma habitação. Estou tratando do transporte dos meus modestos bens terrenos e dos utensílios do meu ofício literário... Não fica longe daqui, na “aldeia”. Nós nos veremos seguidamente, não há dúvida. Não perderei o senhor de vista, mas, como habitante da mesma casa, tenho a honra de me despedir.

     Era essa a comunicação que Settembrini lhes fizera no domingo de Páscoa. Os primos se haviam mostrado extraordinariamente comovidos. Demorada e repetidamente falavam com o literato sobre a sua decisão e as modalidades que lhe permitiriam observar o regime também na sua morada particular; tratavam do modo de levar adiante aqueles vastos trabalhos enciclopédicos que tomara a si, a sinopse de todas as obras-primas das belas-letras sob o ponto de vista dos conflitos originados pelo sofrimento e do seu extermínio; finalmente se informaram também a respeito dos futuros aposentos do Sr. Settembrini, que se achavam na casa de um “merceeiro”, como se expressava o italiano. Esse merceeiro alugara o andar superior da sua casa a um alfaiate natural da Boêmia, que por sua vez sublocava cômodos... Essas conversas, conforme explicamos, já pertenciam ao passado. O tempo ia avançando, e desde então já trouxera consigo mais de uma transformação. Settembrini realmente deixara de morar no Sanatório Internacional Berghof, e passara-se para a casa de Lukacek, alfaiate de senhoras, onde morava fazia semanas. Sua mudança não se realizara num trenó, senão a pé. Saíra ele envolto num curto sobretudo amarelo, de mangas e gola de peles. Acompanhara-o um homem, transportando, num carrinho de mão, a bagagem literária e terrena do escritor, que fora visto afastar-se, brandindo a bengala, após ter beliscado, com o dorso de dois dedos, as faces de uma das criadas, postada junto ao portão do edifício... Como já ficou dito, o mês de abril achava-se relegado quase inteiramente – mais de três quartas partes – à sombra do passado. Verdade é que ainda reinava pleno inverno. Pela manhã, a temperatura atingia uns escassos 6 graus acima de zero, nos quartos, ao passo que fora fazia 9 abaixo. Quando se deixava o tinteiro na sacada, durante a noite, a tinta congelava-se, formando um pedaço de gelo parecido com hulha. Mas era coisa sabida que a primavera vinha se aproximando. De dia, quando brilhava o sol, já se sentia pairando no ar um suave e delicado pressentimento. O período do degelo estava iminente, e a isso estavam ligadas as transformações que, irresistivelmente, se realizavam no Berghof. Nem sequer a autoridade e a palavra viva do conselheiro eram capazes de deter-lhe a progressão, posto que combatesse o preconceito popular contra o degelo, em toda parte, nos quartos e na sala, por ocasião de exames, visitas e refeições.

continua pág 233...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Transformações (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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