Elias Canetti
A MALTA
A Malta de Lamentação
A descrição mais impressionante que conheço de uma malta de
lamentação provém dos warramungas da Austrália Central.
Antes ainda que o moribundo houvesse dado seu último suspiro, começaram os lamentos e as auto flagelações. Tão logo se soube que o m estava próximo, os homens todos correram velozmente para o local. Algumas das mulheres, que se haviam reunido provindas de todas as partes, jaziam prostradas sobre o corpo do moribundo, enquanto outras se encontravam de pé ou ajoelhadas ao redor, e cravavam as extremidades pontiagudas de seus cajados na própria cabeça: o sangue escorria-lhes pelo rosto, ao mesmo tempo que se podia ouvir-lhes o choro e o lamento ininterruptos. Muitos dos homens que acorreram ao local lançavam-se em grande confusão sobre aquele que ali jazia; as mulheres levantaram-se para lhes dar lugar, até que, por m, nada mais se podia ver senão uma tumultuada massa de corpos nus. De súbito, gritando estridentemente, chegou correndo um homem brandindo uma faca de pedra. Ao chegar ao local, ele subitamente enfiou a faca nas próprias coxas, atravessando os músculos, de modo que, não conseguindo mais ficar em pé, caiu sobre a tumultuada massa de corpos. Sua mãe, suas mulheres e suas irmãs retiraram-no daquele tumulto e puseram a boca em suas feridas abertas, enquanto ele, exausto e desamparado, jazia no chão. Pouco a pouco, a massa de corpos escuros foi se desenredando, permitindo a visão do desafortunado moribundo que era o objeto — ou, antes, a vítima — dessa bem-intencionada demonstração de afeto e aflição. Se, antes, já estava doente, agora, com a partida dos amigos, piorara ainda mais; estava claro que não viveria por muito tempo. O choro e a lamentação persistiram. O sol se pôs e a escuridão se fez no acampamento. Naquela mesma noite o homem morreu. A choradeira fez-se, então, ainda mais alta do que antes. Como que desvairados de aflição, homens e mulheres lançavam-se de um lado para o outro, ferindo-se a si próprios com facas e lanças pontiagudas, ao passo que as mulheres golpeavam-se na cabeça com tacapes; ninguém se defendia dos cortes ou dos golpes.
Uma hora mais tarde, iluminado por tochas, um cortejo fúnebre pôs-se a caminho em meio à escuridão. Carregaram o corpo para um bosque, distante cerca de uma milha, e, sobre uma plataforma de galhos, depositaram-no no interior de uma seringueira baixa. Quando clareou, na manhã seguinte, não mais se percebia nenhum vestígio de assentamento humano no acampamento em que o homem havia morrido. Todos haviam deslocado suas miseráveis cabanas para mais longe, deixando para trás, em total abandono, o local de sua morte, pois ninguém queria deparar com o fantasma do falecido, que certamente vagava nas redondezas; menos ainda desejavam encontrar o espírito do homem que, ainda vivo, provocara aquela morte valendo-se de algum feitiço maligno, espírito este que, com certeza, sob a forma de um animal, retornaria ao local do crime a m de desfrutar de seu triunfo.
Por toda parte, no novo acampamento, havia homens estirados no chão com as feridas abertas nas coxas, feridas que, com as próprias mãos, se haviam infligido. Tinham cumprido sua obrigação para com o morto e carregariam até o m da vida as profundas cicatrizes nas coxas, como sinais de sua honra. Em um deles podiam-se contar não menos que 23 marcas de feridas, as quais ele se havia infligido ao longo do tempo. — Enquanto isso, as mulheres haviam retomado a lamentação, conforme era seu dever. Com os braços entrelaçados, quarenta ou cinquenta delas, distribuídas em grupos de cinco ou seis, choravam e gritavam numa espécie de desvario, enquanto algumas, tidas por parentes mais próximas, golpeavam a própria cabeça com lanças pontiagudas, e as viúvas iam ainda além, chamuscando as feridas na cabeça com pedaços de pau em brasa.
De imediato, essa descrição, à qual se poderiam somar muitas outras
semelhantes, deixa clara uma coisa: o importante é a excitação em si.
Vários propósitos imiscuem-se no fato descrito, demandando que sejam
analisados. O essencial, porém, é a excitação como tal — um estado no
qual todos têm, juntos, algo a lamentar. A selvageria da lamentação; sua
duração; sua retomada na manhã seguinte, no novo acampamento; o
ritmo espantoso no qual ela se intensifica e recomeça, a despeito mesmo
da fadiga total — todos esses fatores bastariam para provar que o
importante aí é, acima de tudo, a excitação da lamentação conjunta.
Tendo-se conhecido apenas esse único caso, característico dos
aborígines australianos, compreender-se-á por que razão tal excitação é
qualificada como a de uma malta, e por que se afigura indispensável
criar para esta a designação especial de malta de lamentação.
Tudo principia com a notícia de que a morte está próxima. Os
homens acorrem a toda a pressa para o local, onde já se encontram as
mulheres. Dentre estas, as parentes mais próximas jazem amontoadas
sobre o doente. É importante que a lamentação não tenha início apenas
depois da morte, mas tão logo não mais existam esperanças de que o
doente se recupere. Acreditando-se já que ele vai morrer, não mais se é
capaz de conter a lamentação. A malta irrompe; estava à espreita de sua
oportunidade e não mais permite que a vítima lhe escape. A força
gigantesca com a qual ela se lança sobre seu objeto sela-lhe o destino.
Dificilmente pode-se supor que o doente grave submetido a esse
tratamento venha a se recuperar dele. Sob a gritaria desvairada dos
homens, ele quase sufoca; é de se supor que, por vezes, o doente
realmente morra sufocado; em todo caso, sua morte é apressada. A
exigência, usual entre nós, de que se deixe a pessoa morrer em paz soaria
totalmente incompreensível a essa gente, interessada na própria
excitação.
O que significa esse amontoado que se forma sobre o moribundo, essa
confusão de corpos que, evidentemente, lutam por aproximar-se o mais
possível dele? Afirma-se que as mulheres, as primeiras a chegar, se
levantam para dar lugar aos homens, como se também estes — ou, de
todo modo, alguns deles — tivessem um direito à maior proximidade
possível com o doente. Quaisquer que sejam as interpretações que os
nativos deem para a formação desse aglomerado de gente, o que
efetivamente ocorre é que o amontoado de corpos mais uma vez
absorve integralmente o moribundo.
A proximidade física de todos quantos pertencem à malta — sua
densidade — não poderia ser levada mais além. Juntamente com o
moribundo, eles formam um amontoado. O doente ainda lhes pertence,
e eles o retêm consigo. Não podendo levantar-se, juntar-se a eles, eles é
que se deitam com o moribundo. Quem quer que acredite possuir algum
direito sobre ele luta para participar daquele amontoado que tem nele o
seu centro. É como se desejassem morrer com ele: as feridas que se
infligem, o lançar-se sobre o amontoado ou sobre o que quer que seja, o
sucumbir dos que se auto flagelaram — tudo isso tem por função
demonstrar a seriedade com que agem. Talvez fosse correto dizer ainda
que desejam igualar-se ao moribundo. Mas não pretendem realmente
matar-se. O que deve persistir é o amontoado ao qual pertence o doente,
e é isso que eles pretendem com sua conduta. A essência da malta de
lamentação consiste nessa equiparação ao moribundo, anteriormente à
chegada da morte.
Contudo, é próprio também dessa malta repelir o morto, tão logo ele
morra. A verdadeira tensão da malta de lamentação constitui-se da
transformação dessa desvairada retenção e detenção do moribundo
numa amedrontada expulsão e isolamento do morto. Ainda durante a
noite, desaparece-se com ele às pressas. Destroem-se todos os vestígios
de sua existência — seus apetrechos, sua cabana e o que mais lhe tenha
pertencido; até mesmo o acampamento no qual ele vivia juntamente
com os outros é exterminado e queimado. De súbito, todos se voltam
duramente contra ele, que, tendo se afastado dos demais, tornou-se
perigoso. É possível que ele passe a invejar os vivos, deles vingando-se
pelo fato de estar morto. Todos os sinais de afeto não foram capazes de
retê-lo, nem mesmo a densidade dos corpos amontoados. O
ressentimento do morto torna-o um inimigo; valendo-se de centenas de
ardis e maldades, ele pode imiscuir-se furtivamente entre os vivos, que,
por sua vez, necessitarão de idêntica profusão de meios para dele
defender-se.
No novo acampamento, dá-se prosseguimento à lamentação. Não se
abre mão de imediato da excitação que emprestou ao grupo o forte
sentimento de sua unidade. A necessidade desse sentimento faz-se agora
maior do que nunca, pois está-se em perigo. As pessoas exibem sua dor
na medida em que seguem ferindo-se a si próprias. É como numa
guerra; aquilo, porém, que o inimigo poderia impingir-lhes, elas
mesmas se impingem. O homem que ostenta em seu corpo 23 cicatrizes
de ferimentos encara-as como condecorações, como se as tivesse
conquistado em expedições militares.
Temos de nos perguntar se esse é o único sentido dos perigosos
ferimentos que os homens se impingem nessas ocasiões. Aparentemente,
as mulheres vão ainda mais longe que os homens nessa prática. Em todo
caso, sua lamentação é mais persistente. Há muita raiva nessa
automutilação — a raiva da impotência diante da morte —, e é como se
as pessoas se punissem pela morte. Poder-se-ia pensar também que, com
a perda que impinge ao próprio corpo, o indivíduo deseja manifestar o
dano causado à totalidade do grupo. A destruição, entretanto, volta-se
também contra a própria moradia — mesmo sendo ela miserável —, e,
nesse sentido, lembra a ânsia de destruição da massa, conforme a
conhecemos e elucidamos anteriormente. Mediante a destruição das
coisas isoladas, destruição esta na qual a malta se completa, ela dura
mais; e mais agudo faz-se seu apartar-se do tempo em que conheceu e
sofreu o infortúnio ameaçador. Tudo começa de novo, e começa
precisamente no vigoroso estado da excitação coletiva.
É importante, para concluir, fixar ambos os movimentos essenciais no
desenvolvimento da malta de lamentação. O primeiro é o movimento
impetuoso rumo ao moribundo e a formação ao seu redor de um
amontoado ambíguo, a meio caminho entre a vida e a morte. O
segundo é a fuga amedrontada para longe do morto — dele e de tudo
quanto ele possa ter tocado.
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Leia também:
Massa e Poder - A Malta: A Malta de Lamentação
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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