terça-feira, 8 de julho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mais alguém (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Mais alguém 
.
continuando...

     Os quatro andavam numa fila irregular, lado a lado, onde o caminho o permitia; mas quando se encontravam com outros transeuntes, Settembrini, que formava a ala direita, tinha de descer da calçada, e às vezes se interrompia por um instante o alinhamento, porque um ou outro dentre eles ficava atrás ou dava um passo para o lado ora Hans Castorp, que caminhava entre o humanista e Joachim, ora Naphta, na extremidade esquerda. Naphta soltou uma breve risada, com voz sobre a qual o resfriado exercia um efeito de surdina, e que ao falar recordava o som de um prato rachado em que se bate com o nó do dedo. Apontando com a cabeça para o italiano, disse com um sotaque arrastado: 

– Ouçam só o voltairiano, o racionalista. Elogia a natureza, porque mesmo nas condições mais fecundas ela não nos perturba com brumas místicas, mas conserva uma secura clássica. Como se diz umidade em latim?  
– O humor – exclamou Settembrini por cima do ombro esquerdo –, o humor na concepção que o nosso professor tem da natureza, consiste no seguinte: à maneira de Santa Catarina de Siena, ele pensa nas chagas de Cristo, ao ver prímulas vermelhas. 

     Naphta retrucou: 

– Isto seria antes engenhoso do que humorístico. Mas, pelo menos assim se confere espírito à natureza, e ela carece dele. 
– A natureza – tornou Settembrini, em voz abafada, já não falando por cima do ombro, senão em direção ao chão – absolutamente não necessita de espírito. Ela própria é espírito. 
– O senhor não se aborrece com o seu monismo? 
– Ah, então confessa que é por amor à distração que o senhor divide o mundo em dois campos adversários e separa Deus e a natureza? 
– Acho interessante que o senhor fale de amor à distração para designar aquilo que tenho em mente, quando digo “paixão” e “espírito”. 
– Imaginem que o mesmo homem que usa palavras tão retumbantes para necessidades tão frívolas, às vezes me censura a retórica. 
– O senhor insiste em afirmar que o espírito significa frivolidade. Mas ele não tem culpa de ser dualista por natureza. O dualismo, a antítese, é o princípio motor, o princípio passional, dialético e espirituoso. Ver o mundo dividido em dois campos adversários isto é espírito. Todo monismo é fastidioso. Solet Aristoteles quaerere pugnam
– Aristóteles? Aristóteles transferiu a realidade das idéias gerais para dentro dos indivíduos. Isso é panteísmo. 
– Errado! Se o senhor concede caráter substancial aos indivíduos, se procura distanciar do geral a essência das coisas e dar a ela um lugar no fenômeno individual como os bons aristotélicos Tomás e Boaventura então dissolve toda união entre o mundo e a ideia suprema; ele ficará fora do divino, e Deus é transcendental. Isto, meu senhor, é Idade Média clássica. 
– Idade Média clássica! Acho deliciosa essa combinação de palavras. 
– O senhor me desculpe, mas admito o conceito do clássico onde ele cabe, que dizer: cada vez que uma ideia alcança o seu ponto culminante. A Antiguidade nem sempre era clássica. Verifico no senhor uma antipatia contra... o movimento livre das categorias, contra o absoluto. Também não quer o espírito absoluto. O que quer é que o espírito seja sinônimo de progresso democrático. 
– Espero que estejamos de acordo quanto à convicção de que o espírito, por mais absoluto que seja, nunca deve tornar-se o advogado da reação. 
– Ele é, porém, sempre o advogado da liberdade. 
– Por que disse “porém”? A liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e a maldade. 
– Que evidentemente lhe causam medo. 

     Settembrini levantou a mão acima da cabeça. A discussão ficou em suspenso. Os olhos de Joachim passaram, perplexos, de um para outro interlocutor, ao passo que Hans Castorp, com as sobrancelhas alçadas, cravava o olhar no chão. Naphta falara de um modo cortante e apodítico, se bem que fosse ele quem se empenhara em prol da liberdade mais ampla. A sua maneira de contradizer, com os lábios crispados, e de comprimir imediatamente depois a boca, era sobremodo desagradável. Settembrini ora lhe resistira com respostas joviais, ora pronunciara as suas réplicas com um belo fervor, por exemplo quando exigira a unidade de certas concepções básicas. Agora, enquanto Naphta permanecia calado, começou o italiano a dar aos primos explicações a respeito da existência desse desconhecido, compreendendo a necessidade de alguns esclarecimentos que eles deviam experimentar depois de toda aquela disputa com Naphta. Este o deixou falar sem ligar importância ao assunto. O Sr. Naphta – explicou Settembrini, realçando, à maneira italiana, com a maior ênfase, a situação da pessoa por ele apresentada – era professor de línguas antigas nos últimos anos dos cursos do Fredericianum. Fazia cinco anos que seu estado de saúde o obrigara a morar ali e a convencer-se de que ele necessitava de uma permanência muito prolongada. Por isso abandonara o sanatório e estabelecera-se numa residência particular, justamente na casa do alfaiate Lukacek. O ensino secundário do lugar fora bastante inteligente para assegurar-se o concurso desse exímio latinista, ex-aluno de um seminário, como Settembrini se expressava um tanto vagamente. E o Sr. Naphta conferia grande brilho a esse estabelecimento... Numa palavra, o humanista elogiava muito o feioso Naphta, posto que este acabasse de travar com ele uma espécie de contenda abstrata e que essa discussão rixenta estivesse a ponto de reiniciar-se. 
     Com efeito, Settembrini passou nesse momento a dar ao Sr. Naphta explicações acerca dos primos. Nisso lembrou-se de que já antes lhe falara a respeito deles. Aquele era, pois, o jovem engenheiro “das três semanas”, no qual o Dr. Behrens encontrara um lugar úmido – disse ele – e ali se achava a esperança da organização do exército prussiano, o Tenente Ziemssen. Falou então da impaciência de Joachim e dos seus projetos de partida, acrescentando que, indubitavelmente, se julgaria mal o engenheiro se não se lhe atribuísse o mesmo desejo ardente de voltar ao seu trabalho. Naphta fez uma careta e disse: 

– Os senhores têm um patrono eloquente. Longe de mim pôr em dúvida a fidelidade da interpretação que ele acaba de dar aos seus pensamentos e desejos. Trabalho, sempre o trabalho! Esperem um pouco, logo começará a me tratar de inimigo da humanidade, “inimicus humanae naturae”, se eu me atrever a evocar tempos em que aquela clarinada não teria produzido o costumeiro efeito. Houve épocas em que o oposto do seu ideal era infinitamente mais estimado. Bernardo de Clairvaux, por exemplo, ensinava uma hierarquia da perfeição bem diferente daquela com que sonha o Sr. Lodovico. Querem conhecê-la? A categoria mais baixa achava-se no “moinho”; a segunda, no “campo”, e a terceira, a mais louvável – tape os ouvidos, Settembrini! – no “leito do repouso”. O moinho é o símbolo da vida terrena, e me parece bem escolhido como tal. O campo designa a alma do homem leigo, que é amanhada pelo sacerdote e pelo diretor espiritual. Essa categoria já é mais digna. No leito, porém... 
– Basta! Já sabemos disso! – gritou Settembrini. – meus senhores, agora ele vai lhes explicar as finalidades e o uso da cama. 
– Eu ignorava que o senhor era tão inocente, Sr. Lodovico. Quem viu como pisca o olho às moças... Onde está a sua ingenuidade pagã? A cama é o lugar da coabitação do amante com a amada, e como símbolo significa o isolamento contemplativo do mundo e da criatura, para os efeitos da união com Deus. – Arre! Andate, andate! – exclamou o italiano, quase chorando. Todos se riram. Mas Settembrini acrescentou com gravidade: 
– Ah, não, senhor! Eu sou europeu, sou do Ocidente. A sua hierarquia é puramente oriental. O Oriente abomina toda espécie de atividade. Lao-tsé ensina que o ócio é mais proveitoso do que qualquer outra coisa existente entre o céu e a terra. Se todos os homens cessassem de agir, haveria na terra a mais perfeita calma e felicidade. É essa a união de que fala o senhor. 
– Não diga! E a mística ocidental? E o quietismo que conta com Fénelon entre os seus adeptos e doutrina que toda ação representa um erro, já que a veleidade de ser ativo ofende a Deus, o único que deve agir? Cito as proposições de Molinos. Tenho a impressão de que a possibilidade espiritual de encontrar a salvação no repouso se acha universalmente difundida entre os homens. 

     Nesse ponto, Hans Castorp interveio. Com a coragem que confere a singeleza, intrometeu-se na discussão, dizendo, enquanto seus olhos fitavam o vazio: 

– Contemplação, isolamento. Essas coisas têm o seu valor. Tudo isso soa razoável. Nós, aqui em cima, vivemos num isolamento bastante intenso, indiscutivelmente. A cinco mil pés de altura, achamo-nos deitados nas nossas espreguiçadeiras extraordinariamente cômodas; os nossos olhares abaixam-se sobre o mundo e as criaturas, e então nos ocorre toda espécie de ideias. A dizer verdade, e pensando bem, a cama, ou melhor, a espreguiçadeira me fez progredir bastante nos últimos dez meses e me proporcionou mais ideias do que o moinho, na planície, no curso de todos os anos passados. Isso não se pode negar.

     Settembrini encarou-o com os olhos negros onde assomava um brilho melancólico. – Engenheiro! – disse em voz opressa. – Engenheiro! – E pegando Hans Castorp pelo braço reteve-o um momento, como se quisesse falar com ele em particular, nas costas dos outros. 

– Quantas vezes não lhe disse que uma pessoa deve saber quem é e pensar do modo que lhe convém? Não obstante todas as proposições, cabem ao homem ocidental a razão, a análise, a ação e o progresso, não a cama onde se espreguiça o monge.

     Naphta, que ouvira as palavras do italiano, disse, voltando-se para trás: 

– O monge! Aos monges deve-se a cultura do solo europeu. Graças a eles, a Alemanha, a França e a Itália deixaram de estar cobertas de mato virgem e de pântanos e nos fornecem trigo, frutas e vinho. Os monges, meu caro senhor, trabalharam, e trabalharam bastante... 
Ebbè, pois então! 
– Perdão! O trabalho do religioso não tinha a sua finalidade em si, quer dizer, não era nenhum narcótico, nem tampouco se empenhava em fazer progredir o mundo ou em obter vantagens comerciais. Era um exercício puramente ascético, uma parte de disciplina expiatória, um meio para conseguir a salvação. Proporcionava uma proteção contra a carne e servia para exterminar a sensualidade. Seu caráter – permita que eu saliente isso – absolutamente não era social. Era o mais imaculado egoísmo religioso. 
– Fico-lhe muito grato pelos esclarecimentos que me deu e folgo em ver que a bênção do trabalho se impõe até contra a vontade do homem.
 – Sim, senhor, contra a intenção dele. Nesse ponto, descobrimos nada menos que a diferença entre o útil e o humano. 
– Descubro antes de tudo, e com indignação, que o senhor volta a dividir o mundo em dois princípios. 
– Lastimo ter incorrido no seu desagrado, mas é preciso separar e classificar as coisas e manter a ideia do Homo Dei livre de elementos impuros. Os bancos e o ofício dos cambistas são uma invenção de vocês, os italianos; que Deus lhes perdoe! Mas os ingleses inventaram a sociologia econômica, e isso o gênio do homem nunca lhes poderá perdoar. 
– Ora, o gênio da humanidade inspirou também os grandes economistas daquelas ilhas... O senhor queria dizer alguma coisa, engenheiro?

     Hans Castorp afirmou que não, mas pôs-se a falar, sem embargo, e tanto Naphta como Settembrini escutaram-no com certa curiosidade. 

– Acho, Sr. Naphta, que o senhor deve simpatizar com a profissão do meu primo e aprovar a pressa que ele tem de exercê-la novamente... Quanto a mim, sou civil cem por cento, e meu primo censura-me isso frequentemente. Nem sequer fiz o serviço militar e sou inteiramente adepto da paz. De vez em quando tenho até chegado a pensar que eu poderia facilmente tornar me sacerdote. Pergunte a meu primo se não lhe falei às vezes nesse sentido. Mas, abstraindo minhas inclinações pessoais – talvez nem seja precisamente necessário abstrai-las por completo –, tenho muita compreensão e simpatia pela classe militar. Esse ofício tem de fato um lado barbaramente sério, um lado “ascético”, com a sua licença – o senhor empregou esse termo há poucos instantes –, e o soldado deve sempre estar preparado para entrar em contato com a morte... com a qual, em última análise, também o sacerdócio tem que lidar; de que mais se ocupariam senão disso? Daí provém a bienséance da classe militar, e a hierarquia, a obediência, e o pundonor espanhol, se me permitem essa .expressão. Nesse caso é indiferente se alguém usa o colarinho engomado da farda ou uma golilha. Isso vem a dar no mesmo, no “ascetismo”, como o senhor o definiu com tanta precisão... Não sei se consegui formular as idéias que... 
– Como não – confirmou Naphta, lançando um olhar em direção a Settembrini, que fazia girar a bengala e contemplava o céu. 
– E por isso penso eu – continuou Hans Castorp – que as inclinações de meu primo Ziemssen deveriam ser simpáticas ao senhor, segundo tudo quanto acaba de dizer. Não me refiro “ao trono e ao altar” e a outros binômios desse gênero, por meio dos quais certa gente, pessoas exclusivamente ordeiras, bem-intencionadas e nada mais, costumam justificar a solidariedade. Mas quero dizer que o trabalho da classe militar, isto é, o serviço – “serviço” é bem o termo adequado nesse caso –, é realizado sem nenhum interesse em vantagens comerciais e não tem nenhuma relação com a “sociologia econômica”, da qual falou o senhor. Por isso, os ingleses têm muito poucos soldados, alguns para a Índia, alguns em casa, para os desfiles... 
– Não adianta continuar, engenheiro – interrompeu-o Settembrini. – A existência militar – digo isto sem a mínima intenção de contrariar o nosso amigo, o tenente – é insustentável do ponto de vista espiritual, por ser meramente formal, sem conteúdo próprio. O protótipo do soldado é o lansquenete, o mercenário que se alista tanto por esta como por aquela causa. Numa palavra, houve os soldados da Contra-Reforma espanhola, os soldados dos exércitos da Grande Revolução, os napoleônicos, os garibaldinos, os prussianos. Vamos falar novamente no soldado quando eu souber por que causa ele se bate. 
– Mas o fato de que se bate – replicou Naphta – permanece uma peculiaridade evidente da sua classe. Nisso temos que concordar. É possível que ela não seja suficiente para tornar essa classe “sustentável do ponto de vista espiritual”, no sentido que o senhor dá a essas palavras, mas coloca-a numa esfera que escapa por completo à concepção positiva que o burguês tem da vida. 
– Aquilo que o senhor acha por bem qualificar de “concepção positiva do burguês” – retrucou o Sr. Settembrini, da borda dos lábios, entesando as comissuras da boca sob o bigode ondulante, enquanto o pescoço fazia um estranho movimento de parafuso, como para escapar oblíqua e bruscamente do colarinho –, o que o senhor assim qualifica estará sempre disposto a defender de todas as formas possíveis as ideias da razão e da moral e a sua influência legítima sobre as almas jovens e vacilantes.

     Fez-se silêncio. Os jovens olhavam diante de si, perplexos. Depois de ter dado alguns passos, disse Settembrini, cuja cabeça e pescoço tinham voltado à posição normal: 

– Não se admirem. Esse senhor e eu temos frequentes discussões, mas tudo se passa amigavelmente e sobre o fundamento de muitas ideias comuns.

     Fazia bem ouvir isso. Era um modo de falar cavalheiresco e humano, da parte do Sr. Settembrini. Mas Joachim, igualmente cheio de boas intenções e empenhado em dar à conversa um cunho inofensivo, disse como que coagido por alguma coisa mais forte do que a sua vontade: 

– Falávamos casualmente da guerra, meu primo e eu, enquanto íamos atrás dos senhores. 
– Foi o que ouvi – respondeu Naphta. – Apanhei essa palavra e me voltei. Estavam tratando de política? Examinavam a situação mundial? 
– Qual nada! – riu-se Hans Castorp. – Como chegaríamos a fazer isso? A profissão de meu primo impede-o de se preocupar com a política, e eu renuncio espontaneamente a discuti-la, porque nada entendo dela. Desde que estou aqui não abri um único jornal...

continua pág 247...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Mais alguém (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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