quinta-feira, 3 de julho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Transformações (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Transformações 
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continuando...

     Vinham os pensionistas – assim perguntava – para se dedicar aos esportes de inverno, ou como enfermos, como pacientes? Por que cargas-d'água precisavam de neve, de neve gelada? Desfavorável a temporada de degelo? Era, pelo contrário, a mais favorável de todas. Comprovadamente o número de doentes acamados era menor nessa época do ano, em todo o vale, do que em qualquer outra estação. No mundo inteiro as condições climáticas para tuberculosos eram piores do que ali, no momento. Quem tivesse um pingo de juízo deveria persistir e aproveitar o efeito fortalecedor dessa fase do clima alpino. Depois, estariam imunizados contra todos os golpes e ataques do tempo, blindados contra qualquer clima do mundo, contanto que esperassem a realização da cura completa, etc. No entanto, o conselheiro falava em vão. A animosidade contra o degelo achava-se arraigada nas cabeças. A frequência da estação de cura diminuía. Pode ser que a aproximação da primavera agitasse o coração da gente e tornasse irrequietas e ávidas de mudanças até pessoas sedentárias. Em todo caso aumentava de forma inquietante o número das partidas arbitrárias, das partidas “em falso”, e isso também do Berghof. A Srª. Salomon, de Amsterdam, por exemplo, apesar do prazer que lhe causavam os exames médicos e a subsequente ostentação de roupa interior de rendas finas, partiu “em falso”, de um modo totalmente arbitrário, sem a mínima autorização, e não porque se sentisse melhor, senão por andar cada vez pior. O início da sua permanência ali fora muito anterior à chegada de Hans Castorp, Fazia mais de um ano que ela chegara, com uma afecção muito leve, em virtude da qual lhe tinham receitado uma temporada de três meses. Depois de quatro meses fora-lhe assegurado que estaria “boa daqui a quatro semanas”; mas, seis semanas após, já não se falava em cura. Era preciso – assim se dissera – que ela permanecesse no mínimo outros quatro meses. E dessa forma o tempo continuara a escoar-se – afinal de contas, isso não era nenhum calabouço nem uma mina siberiana. A Srª. Salomon ficara e exibira a sua mais fina roupa de baixo. Como, porém, depois do último exame, e na iminência do degelo, lhe houvessem falado de um novo acréscimo de cinco meses, por causa de síbilos à esquerda, em cima, e indiscutíveis anomalias do ruído respiratório abaixo da axila esquerda, perdera a paciência. Sob protesto, invectivando a “aldeia” e Davos-Platz, o famoso ar das montanhas, o Sanatório Internacional Berghof e os médicos, partira para o seu lar em Amsterdam, cidade úmida, cheia de correntes de ar.
     Era isso razoável? O Dr. Behrens encolheu os ombros e levantou os braços, deixando-os, em seguida, cair ruidosamente sobre as coxas. O mais tardar no outono – disse – a Srª. Salomon estaria de volta, e então seria para sempre. Teria ele razão? Já o veremos, uma vez que ainda nos acharemos por algum tempo desta terra ligados ao nosso oásis de prazeres. O caso Salomon não era, porém, o único da sua espécie. O tempo trazia consigo transformações; sempre fora assim, mas em geral isso se produzira de uma forma mais paulatina, menos escandalosa. A sala de refeições mostrava grandes lacunas, em todas as sete mesas, na dos “russos distintos” como na dos “ordinários”, nas longitudinais tanto como nas transversais. Não se podia, contudo, tirar disso uma conclusão certa a respeito do número de pensionistas da casa. Houvera também chegadas, como sempre as havia. Os quartos, talvez, continuassem ocupados, mas então se trataria de pacientes cujo estado final lhes restringia a liberdade de escolher o domicílio. Na sala de refeições, como já verificamos, faltavam muitos, que ainda não tinham perdido essa liberdade; algumas lacunas, entretanto, estavam abertas de um modo particularmente incisivo e vazio, como, por exemplo, a que deixara o Dr. Blumenkohl, que acabava de falecer. Seu rosto fora assumindo cada vez mais intensamente aquela expressão de quem tem na boca qualquer coisa de sabor repugnante; depois acamara-se definitivamente e afinal morrera – ninguém sabia precisar quando. O assunto fora tratado com a costumeira discrição. Uma lacuna! A Srª. Stöhr tinha o lugar pegado a essa lacuna e horrorizava-se disso. Por esse motivo, mudou-se para o outro lado do jovem Ziemssen, ocupando a cadeira de Miss Robinson, que recebera alta como curada, ao passo que, à sua frente, a professora, vizinha esquerda de Hans Castorp, permanecia firme em seu posto. No momento achava-se sozinha naquele lado da mesa, pois os outros três lugares estavam vagos. O estudante Rasmussen, que dia a dia se tornara mais obtuso e mais sonolento, achava-se de cama e era considerado moribundo. A tia-avó, com sua sobrinha e com Marusja, a moça dos seios opulentos, estavam em viagem – servimo-nos do termo “viagem”, como todos o faziam, uma vez que a sua volta próxima passava por fato indubitável. No outono já estariam de regresso – podia se chamar àquilo de “partida”? Muito depressa chegaria o solstício de verão, logo após o Pentecostes, que estava iminente, e, uma vez alcançado o dia mais longo, viria a rápida descida, rumo ao inverno. Numa palavra, a tia-avó e Marusja quase estavam de volta, e era melhor assim, já que a risonha Marusja absolutamente não ficaria curada e desintoxicada. A professora ouvira falar de blastomas tuberculosos que a Marusja dos olhos castanhos trazia no peito exuberante, e que já tinham sido operados diversas vezes. Quando a Srª. Engelhart mencionou isso, Hans Castorp lançou um rápido olhar a Joachim, que inclinava para o prato o rosto subitamente cheio de manchas terrosas.
     A alegre tia-avó dera aos comensais – isto é, aos primos, à Srª. Stöhr e à professora – um jantar de despedida no restaurante, uma comezaina com caviar, champanha e licores, durante a qual Joachim se conservara taciturno, proferindo só poucas palavras numa voz quase surda. Tanto assim que a tia-avó, com o seu espírito afetuoso, procurara confortá-lo, chegando até a tratá-lo por “tu”, em completo abandono das conveniências civilizadas. – Não há de ser nada, paizinho. Não te importes, mas come, bebe e conversa! Daqui a pouco a gente voltará – dissera ela. – Vamos todos comer, beber e falar, e não nos entregar à tristeza. Deus mandará o outono antes do que esperamos. Como vês, não há motivos para mágoas. – Na manhã do dia seguinte distribuíra, como lembrança, vistosas caixinhas de confeitos a quase todas as pessoas presentes na sala de refeições. A seguir, empreendera a viagem, em companhia das duas moças.
     E Joachim? Como se achava ele? Sentia-se aliviado e livre desde aquele dia, ou sofria a sua alma severas privações em face dos lugares vazios à mesa? Sua impaciência insólita e insubmissa, sua ameaça de partir sem autorização, caso continuassem a lográ-lo – tinham elas, porventura, a sua origem na ausência de Marusja? Ou explicava-se, pelo contrário, o fato de ele, por enquanto, não se ir embora e aquiescer aos elogios do degelo que o conselheiro lhe prodigalizava – explicava-se esse fato pelo outro, de que Marusja, a moça dos seios opulentos, não partira seriamente, mas sim para fazer uma simples viagenzinha, da qual estaria de regresso dentro de cinco das menores unidades de tempo que se conheciam ali em cima? Ai dele! Havia na sua conduta um pouco de tudo isso, e todas essas razões influíam igualmente sobre ela. Hans Castorp percebia-o, sem que jamais falasse com Joachim a esse respeito. Abstinha-se estritamente de mencionar o assunto, assim como Joachim evitava pronunciar o nome de outra pessoa que também se ausentara numa viagenzinha.
     Nesse meio-tempo, fora ocupado o lugar de Settembrini à mesa. Quem era que ali se encontrava, ao lado de uns pensionistas holandeses de apetite tão estupendo que cada um deles costumava pedir três ovos fritos, ainda antes da sopa que formava o início dos cinco pratos do jantar normal? Era Anton Karlovitch Ferge, aquele que experimentara a infernal aventura do choque pleural. Sim, o Sr. Ferge abandonara o leito; mesmo sem o pneumotórax, seu estado melhorara de tal maneira que lhe permitia passar levantado a maior parte do dia e participar das refeições, com seu bigode hirsuto e bonachão, e o grande pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial. De vez em quando, os primos conversavam com ele na sala ou no vestíbulo, e faziam também alguns dos passeios regulamentares em sua companhia, quando o acaso os associava. Sentiam uma certa simpatia por esse sofredor ingênuo, que declarava nada entender de assuntos sublimes, mas, feita essa confissão, sabia contar agradavelmente histórias relativas à fabricação de galochas e falar de regiões longínquas do Império Russo, de Samara e da Geórgia, enquanto chafurdavam, no meio da cerração, através da massa aguda de neve derretida.
     A essa época, os caminhos eram realmente impraticáveis; achavam-se em plena dissolução, e a bruma pairava por cima deles. Verdade é que o conselheiro afirmava não se tratar de neblina, senão de nuvens; mas isso era simples questão de palavras, segundo a opinião de Hans Castorp. A primavera ia travando uma violenta luta, que, com inúmeras recaídas no rigor do inverno, se prolongou através de meses inteiros até meados de junho. Já em março, quando brilhava o sol, mal se podia suportar o calor na sacada e na espreguiçadeira, apesar das roupas ligeiríssimas e do guarda-sol. Certas senhoras acreditavam na chegada do verão e apareciam ao café da manhã com vestidos de musselina. O seu procedimento era até perdoável em face das peculiaridades do clima alpino, que favorecia o equívoco pela confusão meteorológica das estações. Mas também havia na sua precipitação uma boa parte de visão curta e de falta de imaginação, próprias da estupidez de seres que só vivem do momento para o momento, incapazes de pensar em mudanças da situação atual; além do mais expressava-se nisso a avidez de variação e a impaciência com que devoravam o tempo. O calendário dizia: março, o que significava primavera e equivalia a verão. Por isso, os vestidos de musselina eram tirados da mala, para serem exibidos antes da entrada do outono. E de fato sobreveio uma espécie de outono. O mês de abril trouxe consigo dias sombrios, de um frio úmido, cuja chuva incessante se transformou aos poucos em neve que caía turbilhonando. Os dedos enregelavam-se na loggia; os dois cobertores de lã de camelo voltaram a prestar serviços, e pouco faltou para que se recorresse novamente ao saco de peles. A “administração” decidiu-se a reacender a calefação, e todos se queixavam de se ver esbulhados da primavera. Pelo fim do mês tudo estava oculto sob uma espessa camada de neve, mas logo surgiu o Föhn [1], previsto, pressagiado pelos pensionistas mais experientes e mais sensíveis. A Srª. Stöhr, bem como a Srta. Levi, a da pele de marfim, e também a viúva Hessenfeld eram unânimes em afirmar que já o tinham pressentido, antes que se mostrasse a menor nuvem por cima dos cumes da formação de granito, lá ao sul. Em seguida, a Srª. Hessenfeld começou a demonstrar uma propensão para crises de choro, a Levi acamou-se, e a Srª. Stöhr, exibindo obstinadamente a dentadura de lebre, exteriorizava de hora em hora o supersticioso receio de uma hemoptise, em vista da crença de que o Föhn causava ou favorecia tais acidentes. Reinava um calor incrível. Desligaram a calefação. Durante a noite deixava-se aberta a porta da sacada, e, não obstante, o termômetro marcava pela manhã 11 graus no interior do quarto. Derretiam-se enormes quantidades de neve, que ia assumindo uma cor de gelo e se tornava porosa e esburacada. Os montões desfaziam-se, como se quisessem esconder-se debaixo do sol. Tudo ressumbrava, gotejava, marulhava; nos bosques se ouvia o ruído de pingos que caíam e de massas de neve que deslizavam dos galhos; as barreiras acumuladas ao longo dos trilhos, os pálidos tapetes que cobriam os prados, sumiam-se, ainda que a neve fosse por demais abundante para desaparecer depressa. Produziram-se fenômenos maravilhosos, surpresas primaveris durante os passeios obrigatórios pelo vale, espetáculos deslumbrantes, nunca vistos. Desdobrava-se um campo plano; o fundo era formado pelo cume cônico do Schwarzhorn, ainda envolto em neve, e a cuja direita se erguia, bem próxima, a geleira de Scaletta, também coberta de neve profunda. A pradaria, com um monte de feno no meio, igualmente se achava sob a neve, embora a camada já aparecesse mais fininha e mais rala, interrompida, aqui e ali, por elevações escuras de terra e perfurada em toda parte pela grama seca. Mas os andarilhos notaram a natureza irregular da camada de neve que revestia esse prado: ao longe, em direção, às encostas arborizadas, era mais espessa; à sua frente, porém, diante dos seus olhos, o capim desbotado, ressequido pelo inverno, estava apenas salpicado, pintalgado, floreado de manchas brancas... Olharam-nas mais de perto; pasmados, inclinaram-se por cima delas e verificaram que não era neve, mas flores, flores de neve, neve de flores, pequenos cálices sobre curtas hastes, alvos ou de um azul esbranquiçado; eram crocos, deveras, que haviam brotado aos milhões do solo do campo encharcado, em tal quantidade que facilmente podiam ser tomados por neve, com a qual de fato se confundiam a alguma distância.
     Os passeantes riam-se do seu equívoco, exultavam de alegria diante desse milagre que se realizava à vista deles, dessa adaptação imitadora, desse mimetismo graciosamente tímido por meio do qual a vida orgânica se atrevia a ressurgir. Colhiam flores, contemplavam e examinavam as delicadas formas dos cálices, enfeitavam as lapelas, levavam um ramalhete para casa e colocavam-no num copo d'água, nos seus quartos. Pois a rigidez inorgânica do vale durara muito tempo – muito tempo, embora parecesse pouco.
     Mas a neve de flores foi recoberta por neve autêntica, e as soldanelas azuis bem como as prímulas amarelas e vermelhas, que a substituíam, não tinham melhor sorte. Como era difícil para a primavera abrir caminho e triunfar do inverno! Dez vezes vira-se obrigada a recuar antes que se pudesse firmar nessas alturas – até a próxima irrupção do inverno, com o torvelinho branco, o vento glacial e a calefação acesa. Em princípios de maio – enquanto falávamos das flores de neve, chegou o mês de maio – era uma verdadeira tortura escrever na sacada um simples cartão-postal destinado à planície, pois os dedos ressentiam-se da umidade própria de um novembro rigoroso. As cinco ou seis árvores frondosas que existiam na região estavam despidas como as da planície em janeiro. Chovia dias a fio; durante uma semana inteira abatiam-se as águas, e sem as qualidades reconfortantes das espreguiçadeiras do tipo usado ali em cima, teria sido extremamente duro passar numerosas horas de repouso ao ar livre, em meio ao vapor das nuvens, e com o rosto molhado, enrijecido. No fundo, porém, tratava-se de uma chuva de primavera, e quanto mais durava mais se dava a conhecer como tal. Quase toda a neve fundia-se sob o seu efeito. Já não se via branco, só aqui e ali um cinzento gelado de aspecto sujo. E agora, finalmente, os campos começavam a reverdecer.
     Que bênção para os olhos esse verde dos prados, após o branco sem fim! Havia, além disso, ainda um outro verde cuja delicadeza e suavidade graciosa ultrapassavam de longe as da grama fresca. Eram os feixes de agulhas novas dos lariços. Hans Castorp, nos seus passeios regulamentares, raramente deixava de acariciá-los com a mão ou de roçar a face de encontro a eles, tão irresistível era o encanto da sua maciez e da sua frescura. – Sinto vontade de me tornar botânico – disse o jovem a seu companheiro. – Realmente, essa ciência me tenta, só pelo prazer que experimento diante desse despertar da natureza, depois do inverno que passamos aqui em cima. Olhe aí, rapaz, há gencianas na encosta, e isto aqui é uma espécie de violeta amarela que eu não conhecia. E vejo também ranúnculos do mesmo tipo que cresce lá embaixo. São duplos e pertencem à família das ranunculáceas. É uma planta especialmente bonita e híbrida, sabe? Veja como ela dispõe de uma porção de estames e de grande número de ovários, um androceu e um gineceu, se me lembro bem. Acho que acabarei comprando uma ou outra obra botânica, para me instruir um pouco melhor nesse campo da vida e da ciência. Como o mundo se torna colorido, agora! 

– Em junho haverá mais cores ainda – disse Joachim. – A floração destes prados é célebre. Mas creio que não esperarei até lá... Será que o seu desejo de estudar botânica se deve à influência de Krokowski?

     De Krokowski? Que significava isso? Ah sim, era porque o Dr. Krokowski, numa das suas últimas conferências, entrara na botânica. Estaria redondamente enganado quem supusesse que as transformações acarretadas pelo tempo pudessem fazer o Dr. Krokowski desistir das suas conferências. Continuava a realizá-las de quinze em quinze dias, de sobrecasaca, embora não de sandálias, que só calçava durante o verão e portanto voltaria a calçar em breve. Discorria ainda uma segunda-feira sim, outra não, na sala de refeições, como naquele dia em que o novato Hans Castorp, manchado de sangue, chegara atrasado. Durante nove meses, o analista tratara do amor e da doença, nunca em demasia, mas em doses pequenas, palestras de meia hora e quarenta e cinco minutos; assim desdobrara ante o seu público os tesouros da sua sabedoria e das suas ideias. Todos tinham a impressão de que nunca se veria obrigado a parar com essas conferências e que isso continuaria assim interminavelmente. Era uma espécie de Mil e uma noites bimensal, prolongando-se à vontade, de preleção em preleção, e sumamente apropriada a satisfazer, à maneira dos contos de Xerazade, a curiosidade de um príncipe e a dissuadi-lo de atos violentos. Na sua abundância ilimitada, o tema do Dr. Krokowski fazia pensar na empresa em que colaborava Settembrini, a Enciclopédia dos males. Podia-se julgar a variabilidade do assunto pelo fato de que o conferencista recentemente até se ocupara da botânica, ou mais precisamente: de cogumelos... Por outro lado, parecia ter dado um novo rumo às suas palestras: falava de preferência do amor e da morte, o que dava lugar a numerosas observações de cunho ora delicadamente poético, ora inexoravelmente científico. Nessa urdem de ideias, o sábio, com o seu sotaque arrastado à maneira oriental e com o seu “r” carregado, chegara a tratar da botânica, isto é, dos cogumelos, essas criaturas da sombra, luxuriantes e fantásticas, oriundas da vida orgânica, de natureza carnal, e muito afins com o reino dos animais. Na sua estrutura entravam produtos do metabolismo animal, albumina e glicogênio. E o Dr. Krokowski citara certo cogumelo famoso desde a Antiguidade clássica, devido à sua forma e às capacidades que se lhe atribuíam, um fungo cujo nome latino continha o epíteto impudicus, e cujo aspecto recordava o amor, ao passo que o odor relembrava a morte. Era evidentemente um cheiro cadavérico, o que se desprendia do impudicus, quando destilava da sua cabeça campanular aquele muco viscoso, esverdeado, que a recobria e era o portador dos espórios. Entre as pessoas ignorantes esse cogumelo continuava sendo considerado um afrodisíaco.
     Ora, essa palestra não deixara de ser um tanto forte para as senhoras, conforme opinou o Promotor Paravant, que, graças ao apoio moral da propaganda do conselheiro, perseverara firme no sanatório, apesar do degelo. E também a Srª. Stöhr, que igualmente demonstrava bastante força de caráter para não arredar pé e resistia à sedução de uma partida “em falso”, observou à mesa que o Dr. Krokowski fora um pouco “obscuro” ao referir-se àquele cogumelo clássico. “Obscuro”, disse a desgraçada, profanando a sua doença por esse lapso inominável. Mas Hans Castorp estranhou, antes de tudo, o fato de ter Joachim aludido ao Dr. Krokowski e à sua botânica, porque em outras ocasiões nunca haviam falado do analista, como tampouco das pessoas de Clávdia Chauchat ou de Marusja. Não o mencionavam; preferiam passar em silêncio a sua existência e atividade. Dessa vez, porém, Joachim se referira ao assistente num tom mal humorado, como, aliás, a observação de não querer aguardar a floração dos prados revelara o mesmo mau humor. O bom Joachim parecia perder aos poucos o equilíbrio. Sua voz vibrava de irritação, e ele já não se mostrava tão brando e tão comedido como antes. Fazia-lhe falta o perfume de flor de laranjeira? Levavam-no ao desespero as peças que lhe pregava a escala de Gaffky? Sentia-se ele incapaz de resolver se era melhor esperar o outono ali em cima ou arriscar uma partida não autorizada?
     Na realidade existia ainda outra coisa à qual se devia a vibração agastada da voz de Joachim, e que o fazia mencionar num tom quase sarcástico a conferência botânica de poucos dias atrás. Era esse um fato que Hans Castorp ignorava, ou melhor: ele não sabia que Joachim o notara. Pois ele próprio, o espírito propenso a aventuras, o filho enfermiço da vida e da pedagogia, estava muito bem a par do assunto. Numa palavra, Joachim descobrira certas façanhas do primo, surpreendera-o, de inopino, numa traição semelhante àquela que Hans Castorp cometera na terça-feira de carnaval. Tratava-se de uma nova deslealdade, agravada pela circunstância indubitável de ter chegado a ser um hábito.
     O ritmo constante e monótono do curso do tempo, a organização minuciosa e prefixada do dia normal, que era sempre o mesmo, idêntico a si próprio, repetindo-se a ponto de criar confusão, a eternidade parada que tornava difícil compreender por que tinha a faculdade de acarretar transformações – essa ordem inabalável do programa diário incluía, como todos se recordam, a ronda do Dr. Krokowski entre três e meia e quatro horas da tarde. A essa hora, o assistente passava por todos os quartos, de sacada em sacada, de uma espreguiçadeira à outra. Quantas vezes já se repetira o dia normal do Berghof, desde aquele momento em que Hans Castorp, na sua posição horizontal, se melindrara ao perceber que o assistente dava uma volta em torno dele e não o levava em conta! Desde muito tempo o visitante de outrora convertera-se num “camarada”. Frequentemente o Dr. Krokowski servia-se mesmo dessa palavra, quando se dirigia a ele; e essa palavra um tanto militar, cujo “r” o médico pronunciava de modo exótico mediante um só estalo da língua na região anterior do palato, soava horrivelmente na sua boca, como Hans Castorp fizera notar a Joachim. Sem embargo, estava até certo ponto em harmonia com o seu jeito enérgico, alegre e jovial, que parecia convidar à confiança alegre, mas era em parte desmentido pela palidez e pela negrura do médico – o que causava aquela aura de equívoco que sempre pairava em volta dele. 

– Pois então, camarada, como vai a coisa? – dizia o Dr. Krokowski, cada vez que, vindo do casal de bárbaros russos, se aproximava da cabeceira da cadeira de Hans Castorp. E sempre que ouvia essa alocução animada, o enfermo, com as mãos sobre o peito, esboçava o mesmo sorriso forçado e amável, contemplando os dentes amarelos do assistente, que apontavam no meio da barba preta. – Descansou bem? – costumava prosseguir o Dr. Krokowski. – Sua curva desceu? Ah, subiu hoje? Não faz mal. Isso se arranja até o dia do casamento. Bom proveito! – E com essas palavras de som igualmente horroroso, devido ao “r” carregado, já continuava o seu caminho, passando para o compartimento de Joachim. Afinal de contas, só se tratava de uma ronda destinada a verificar se tudo estava em ordem.

     Às vezes, porém, o Dr. Krokowski demorava-se um pouco mais ao lado de Hans Castorp. Então o homem espadaúdo, com o infalível sorriso másculo, conversava com o camarada sobre isto e aquilo. Falava do clima, de partidas e chegadas, da disposição do paciente, do seu bom ou mau humor, e também da sua situação pessoal, da sua origem e do seu futuro, antes de dizer “Bom proveito” e de prosseguir na ronda. E Hans Castorp que, para variar, tinha as mãos entrelaçadas na nuca, respondia-lhe, igualmente sorrindo, a todas as perguntas – com uma sensação penetrante de repulsa, sim, mas, não obstante, respondia. Abafavam a voz. Se bem que a divisão de vidro separasse os compartimentos apenas incompletamente, Joachim não podia escutar a conversa do outro lado, para o que, de resto, não fazia a menor tentativa. Ouvia até como o primo se levantava da cadeira e entrava no quarto, acompanhado do Dr. Krokowski, provavelmente para lhe mostrar a papeleta de temperatura. E ali continuava o colóquio por algum tempo ainda, a julgar pelo atraso com que o assistente, vindo do corredor, entrava no aposento de Joachim.
     De que falavam os camaradas? Joachim não perguntava, mas se um dentre os leitores não lhe seguisse o exemplo e ventilasse a questão, faríamos notar, de forma generalizada, que existem muitos assuntos e muitas razões para o intercâmbio espiritual entre homens e camaradas, cujos conceitos fundamentais têm o cunho do idealismo, e dos quais um foi levado, pelo seu caminho formativo, a considerar a matéria como o pecado original do espírito, ou como uma perigosa excrescência dele, ao passo que o outro, o médico, se acostumou a ensinar o caráter secundário da enfermidade orgânica. Somos da opinião que eles terão que discutir e trocar numerosas ideias com respeito à matéria como degeneração desonrosa do imaterial, à vida como impudicícia da matéria, e à doença como forma depravada da vida. Talvez palestrassem, baseados no tema de conferências em curso, sobre o amor como fator patogênico, sobre a natureza metafísica dos indícios, sobre focos “antigos” e “recentes”, sobre venenos solúveis e filtros de amor, sobre a iluminação – do inconsciente, a bênção da análise das almas e a reversão dos sintomas. Que sabemos nós dos assuntos por eles tratados, uma vez que tudo isso não passa de conjetura e suposições feitas em resposta à hipotética pergunta: “De que falavam o Dr. Krokowski e o jovem Hans Castorp?”
     Por outro lado, agora já não conversavam mais. Aquelas palestras pertenciam ao passado, tinham-se estendido por poucas semanas apenas. Presentemente, o Dr. Krokowski não se demorava com esse doente mais do que com qualquer outro. “Pois então, camarada?” e “Bom proveito!” – a isso as suas visitas haviam voltado a limitar-se, na maioria das vezes. Em compensação, porém, fizera Joachim outra descoberta, justamente a que ele julgava uma traição da parte de Hans Castorp. Fizera-a totalmente sem querer, sem se ter dado o trabalho de espionar o primo, o que se afastaria da sua retidão militar. Sucedeu simplesmente, numa quarta-feira, que lhe interromperam o repouso e o chamaram ao subsolo, para que o massagista o pesasse. Foi então que recebeu a surpresa. Descia pela escada, a escada limpinha, coberta de linóleo, donde se abria a vista sobre a porta da sala de consultas, a cujos lados havia os dois gabinetes de “radioscopia”, à direita o do organismo, e à esquerda, dobrando o corredor, o da alma, sito um degrau mais abaixo, com o cartão do Dr. Krokowski pregado à porta. A meia altura da escada, Joachim estacou, pois Hans Castorp, que vinha da injeção, acabava de sair da sala de consultas. Com ambas as mãos fechou a porta que atravessara depressa e, sem olhar em torno de si, voltou se para a direita, rumo à outra, na qual o cartão se achava fixo por meio de percevejos. Alcançou a com poucos passos silenciosos e cadenciados. Bateu nela, inclinando-se e avizinhando o ouvido do dedo que batia. E quando ressoou do calabouço o barítono do dono do gabinete, dizendo “Entre!”, com um estalo exótico do “r” e com um som desfigurado das vogais, Joachim viu como o primo desaparecia na penumbra da caverna analítica do Dr. Krokowski.

continua pág 239...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Transformações (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] Vento do sul. (N. do E.)

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