quinta-feira, 10 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (8b) - Eis-me forçado a mudar

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

8.

continuando...

- Eis-me forçado a mudar de opinião outra vez embora continue a citar o nome de Gavríl Ardaliónovitch. Acreditaria o senhor se eu lhe declarasse que também tive uma entrevista marcada para hoje no banco verde? Não quero pregar uma mentira. Quem insistiu nesse encontro fui eu. Solicitei-o sob a promessa de revelar um segredo. Não sei se cheguei cedo demais. (Creio que sim.) Mal me tinha eu sentado ao lado de Agláia Ivánovna, Gavríl Ardaliónovitch e Varvára Ardaliónovna se aproximaram de braço, como se estivessem a passear. Verem-me foi-lhes tão inesperado que ficaram perplexos. Agláia ficou muito vermelha. Se quiser acreditar, bem, se não... Ficou embaraçada, ou porque eles me vissem com ela, ou por eu os vir chegar. Bem sabe que beleza ela é, mas a verdade é que mudou, ficou vermelha, instantaneamente, de um modo até incrível. Levantando-se, respondeu ao cumprimento de Gavríl Ardaliónovitch e ao insinuante sorriso de Varvára, mas logo se foi explicando - “Vim, apenas, para lhes exprimir, pessoalmente, a minha gratidão ante os seus sinceros e amistosos sentimentos, e se eles me vierem a ser necessários, acreditem que...” Depois voltou para o banco. E os dois prosseguiram, com um ar que não sei se era de patetas ou de triunfantes. O de Gánia, pelo menos, era de pateta. Ele nem sequer articulou uma palavra e ficou tão vermelho como uma lagosta. (É extraordinário como a cara dele pode mudar de uma hora para outra.) Mas Varvára Ardaliónovna compreendeu que deviam raspar-se o mais depressa possível, e que Agláia Ivánovna, da sua parte, já dissera o suficiente; e arrastou o irmão dali; ela é mais esperta do que ele, e não tenho dúvida de que está toda triunfante agora. Eu, porém, se estava ali, era porque tinha vindo de completar as providências para um encontro com Nastássia Filíppovna. 
- Com Nastássia Filíppovna? - não pôde deixar de gritar o príncipe - Arre! Afinal começa o senhor a perder o seu ar de indiferença. Pelo menos já ficou surpreendido! Alegra-me verificar que, finalmente, está ficando um ser humano. Congratulo-me com o amigo. Eis, porém, o que advém de a gente querer servir uma rapariga de alma meiga. Recebi dela um tapa na cara.
- Simbolicamente falando? - Míchkin não pôde deixar de perguntar.
- Sim, moralmente, e não fisicamente; mesmo porque não creio que alguém levantasse a mão contra uma criatura no meu estado; agora, já nem mesmo mulher me bate! Nem o próprio Gavríl me bateria! Verdade é, porém, que ontem, uma vez, pelo menos, parece que ele quis voar sobre mim... Aposto o que quiser como sei o que o senhor está pensando agora. Está pensando: “Ele está nas últimas, naturalmente, mas mereceria, pelo menos, ser sufocado com um travesseiro, ou um esfregão molhado, durante o sono. Olá se merecia...” Está escrito em sua testa que está pensando isto, neste segundo.

     Com evidente desagrado, o príncipe respondeu: - Sabe muito bem que sou incapaz de pensar tal coisa...

- Não sei; sonhei na noite passada que estava sendo sufocado com um pano úmido por... um homem!... Vou dizer-lhe por quem: Rogójin! Que acha? Um pano molhado pode sufocar um homem? 
- Não sei.
- Já ouvi dizer que isso é possível. Está bem, ponhamos isso de lado. Escute, tenho cara de caluniador? Por que me acusou ela hoje de caluniador? E, repare bem, só me deu tal epíteto depois de me escutar, palavra por palavra, e depois de me fazer as perguntas que lhe convinham. Mas isso é próprio de mulher. Apenas no interesse dela me pus em contato com Rogójin, aliás pessoa interessante. Apenas no interesse dela lhe arranjei uma entrevista com Nastássia Filíppovna. Seria porque feri o amor-próprio dessa jovem insinuando ocasionalmente que estaria se contentando com as “sobras” da outra? Sim, tentei fazer-lhe ver isso em seu próprio interesse, não nego. Escrevi-lhe duas cartas só com tal finalidade e hoje, por uma terceira vez, na entrevista, insisti no assunto... Fiz-lhe ver que isso era humilhante para ela. Não que a palavra “sobras” fosse minha. É de outra pessoa. Pelo menos em casa de Gánia todo o mundo a emprega e até ela própria a repetiu. Como então me chama de caluniador? Já sei, já sei, é muito divertido pôr- se a olhar para mim deste jeito! Aposto como me está aplicando aqueles versos: 

Mas no crepúsculo do seu declínio 
Teve um brilho de amor em despedida... 

- Ah! Ah! Ah! - sufocou-o um acesso de riso convulsivo. Depois, disse através de um ataque violento de tosse: - Repare que espécie de sujeito é Gánia. Fala em “sobras” e todavia ele próprio se esforça para obter vantagens, agora!

     O príncipe continuou calado por muito tempo, aniquilado pelo espanto. Finalmente murmurou:

- Vai haver, disse você, uma entrevista com Nastássia Filíppovna?
- Ai, mau! Tem dúvida de que Agláia Ivánovna se vá encontrar hoje com Nastássia Filíppovna? Para esse fim foi ela trazida de Petersburgo por Parfión a instâncias minhas, mediante convite de Agláia Ivánovna. Lá está ela onde esteve antes, em casa de... Dária Aleksiéievna... uma mulher duvidosa, sua amiga. Perto de onde o senhor mora. Nessa casa suspeita Agláia Ivánovna se encontrará hoje com Nastássia Fílíppovna para ambas decidirem vários problemas. Vão ocupar-se com aritmética. Não sabia? E se eu lhe der minha palavra de honra? 
- Isso é inacreditável!
- Lá que seja inacreditável talvez seja! Será? Não será? Muito embora isto aqui não passe de um lugarejo onde se uma mosca zunir toda gente sabe! Mas já que o estou avisando venha de lá com a sua gratidão, homem! Bem, até à vista.., decerto no outro mundo! Ah! Uma coisa, ainda: apesar de ter sido grosseiro com o senhor, e saber os motivos muito bem.., por que hei de acabar sendo o vencido? Podia me responder com toda a amabilidade? Perco eu para ganhar o senhor, hein? Dediquei a ela a minha “Confissão”. (Não sabia o senhor disso?) E de que forma ela a recebeu, ainda por cima! Ah! Ah! Mas a verdade é que com ela não agi grosseiramente, feito canalha, não lhe causei dano nenhum! Ela em paga me vilipendiou, me amesquinhou, a mim que nem mesmo ao senhor fiz qualquer mal. Se me referi a “sobras” e outras coisas no gênero, no entanto, aqui vim lhe avisar o dia, a hora e o local do encontro. Verdade é que se estou desvendando todo o jogo, o faço por mero ressentimento e não por generosidade. Vou-me embora; adeus. Falei mais do que um gago ou um tísico! Tome agora suas providências, se quer ser chamado homem! A entrevista se dará hoje; esta noite. Ora, aí está.  

     Ippolít dirigiu-se para a porta; mas como Míchkin o chamasse, parou na soleira.

- De acordo com o que veio me dizer, Agláía Ivánovna vai a uma entrevista hoje na casa de Nastássia Filíppovna? - e ao perguntar, manchas vermelhas lhe apareceram nas faces e na testa.
- Não posso garantir mas é mais que provável - respondeu Ippolít. - Aliás, onde haveria de ser? Nastássía Filíppovna não haveria de ir à casa da outra. Muito menos, na casa de Gánia, cujo pai está em coma. Não sabe que o general entrou em agonia?
- Tudo prova a impossibilidade de um tal encontro - aventurou o príncipe - Como haveria ela de sair, mesmo que quisesse? Não sabe os hábitos daquela casa? Sair sozinha para ir ver Nastássia Filíppovna lhe seria impossível. Isso é um absurdo!
- Olhe aqui, príncipe; ninguém pula pela janela. Mas quando lavra incêndio em casa, o cavalheiro mais fino, ou a mais elegante das damas saltam pela janela. Se não há outro recurso, por que não pular mesmo que seja alto demais? E a sua gentil dama irá mesmo se encontrar com Nastássia Filíppovna. Com que então os Epantchín não permitem que as moças saiam sozinhas para onde queiram, hein? 
- Não, eu não disse isso...
- Pois então ela tem mesmo de descer lá das suas alturas e ir diretamente até à casa da outra. E conforme o caso nem precisa voltar para o lar. Casos há em que se incendeiam os navios para não se regressar. A vida não Consiste apenas em almoços e jantares, e em Príncipes Chtch... e não sei mais quê! Estou a ver que o senhor considera Agláia Ivánovna uma meninota, ou uma colegial! Espere, então, até às sete ou oito horas. Se eu fosse o senhor, mandava Kólia, por exemplo. Por sua causa ele de bom grado se prestará a ser espião. Penso eu. Tudo é relativo, neste mundo. Ah! Ah!... 

      Ippolít foi-se. O príncipe era incapaz de mandar alguém espiar e nem achou que havia motivos para isso. Estava agora mais do que explicado o pedido feito por Agláia: não sair de casa... Mas, quem sabe se ela desejava vir vê-lo? Ou queria evitar que ele fosse à sua casa? Podia ser isso, esse pedido de que permanecesse em casa. A cabeça de Míchkin estava em um redemoinho. O quarto inteiro rodava... Estirou-se no sofá e fechou os olhos.
     Um ou outro caso era provável. Por que haveria de tomar Agláia como meninota, ou como colegial? Entendeu agora que se antes já estava inquieto era porque desconfiara de qualquer coisa. Mas, ir ver a outra, por quê? Os arrepios o fizeram certificar-se de que estava, novamente, com febre. Não, não a considerava uma criançola! Verdade é que certos modos e certos pontos de vista manifestados por ela, o vinham, ultimamente, horrorizando. De fato, às vezes ficava reservada demais, vigiava-se muito, alvoroçando-o.
     Bem que experimentara não pensar nisso, afugentar certas ideias que o oprimiam. Mas, que se esconderia naquela alma? Esse mistério o aborrecera muitas vezes, embora tivesse fé naquela alma. Tinha havido, porém, uma combinação, tudo viera à luz, agora. Que horrível pensamento! E, de novo, aquela mulher! Bem lhe parecera, sempre, que aquela mulher apareceria no último momento para arrebentar, como a uma linha podre, o seu destino! Sempre pressentira isso, podia jurar, agora, mesmo estando quase em delírio.
     Bem que experimentara, ultimamente, esquecê-la... mas isso não fora senão medo dela! Amava ou odiava aquela mulher? Como é que esta pergunta nunca lhe viera antes? O seu coração a este respeito tinha certeza: sabia que amava! O seu medo não era tanto pelo encontro das duas, nem pela estranheza e pelo motivo desconhecido de tal encontro! E nem mesmo por aquilo que disso adviria! Adviesse o que adviesse. O seu medo era... de Nastássia Filíppovna. (Lembrou-se, alguns dias depois, que bem através daquelas horas febris, os seus olhos, a sua expressão, tinham estado diante dele e que as suas palavras tinham soado em seus ouvidos; estranhas palavras, embora delas pouco tivesse ficado depois que aquelas horas febris de miséria se tinham desfeito.)
     Muito mal se lembrava de que Vera lhe tinha trazido o jantar, que o havia comido mas não sabia se depois disso dormira ou não. O que acabou por ficar sabendo foi que as coisas só começaram a se clarear quando, aquela noite, Agláia inesperadamente apareceu, subindo a varanda. Saltando do sofá, ele precipitou se para ela. Eram sete e um quarto. Agláia viera sozinha, vestida simplesmente, com um albornoz claro. Parecia apressada. Sua face estava tão pálida quanto de manhã e os seus olhos cintilavam com uma luz viva e fria. Nunca lhe vira tal expressão nos olhos. Olhou de maneira atenta e observou com aparente tranquilidade:

- Está preparado. Vestido e com o chapéu na mão. Quer dizer que foi avisado. E já sei por quem: Ippolít. 
- Sim, ele me disse - murmurou o príncipe mais morto do que vivo.
- Então, vem. É lógico que me deve acompanhar até lá. Já está bastante forte, pode sair? 
- Já estou bom. Mas é isso possível? 

     Calou-se repentinamente e não houve meios de dizer mais nada. Foi a única tentativa feita para conter a rapariga louca. Depois do quê, a seguiu como um escravo. Por mais baralhadas que estivessem suas ideias, compreendeu todavia que, mesmo sem ele, ela iria até lá. Por conseguinte, devia acompanhá-la de qualquer forma. Não era preciso adivinhar a resolução dela. E ninguém lhe impediria esse impulso selvagem. 
     Caminharam todo o tempo calados, só no fim pronunciando uma ou outra palavra. Notou que ela sabia bem o caminho. E quando, em certo momento, lhe sugeriu que fossem por um caminho mais longo mas com a vantagem de ser mais deserto. ela fez um ar de reflexão demorada e acabou respondendo: - Dá no mesmo...
     Quando já tinham quase atingido a residência de Dária Alekséievna (uma grande casa velha de madeira), descia de lá uma senhora vestida espalhafatosamente, com uma menina. Entraram ambas em uma elegante carruagem que estava parada rente aos degraus, acomodaram-se conversando e rindo. Parece que não notaram o par que se aproximava, pois nem o olharam sequer. Logo que a carruagem partiu, a porta se abriu e Rogójin, que estava do lado de dentro, fez Míchkin e Agláia entrarem, fechando depois a porta.

- Em toda a casa não há ninguém, senão nós quatro - observou, ruidosamente olhando o príncipe de modo estranho.

     Logo na primeira sala para onde passaram, deram com Nastássia Filíppovna que os esperava. 
     
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (8b) - Eis-me forçado a mudar
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