Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
8.
continuando...
- Eis-me forçado a mudar de opinião outra vez embora continue a citar o nome
de Gavríl Ardaliónovitch. Acreditaria o senhor se eu lhe declarasse que também
tive uma entrevista marcada para hoje no banco verde? Não quero pregar uma
mentira. Quem insistiu nesse encontro fui eu. Solicitei-o sob a promessa de
revelar um segredo. Não sei se cheguei cedo demais. (Creio que sim.) Mal me
tinha eu sentado ao lado de Agláia Ivánovna, Gavríl Ardaliónovitch e Varvára
Ardaliónovna se aproximaram de braço, como se estivessem a passear. Verem-me foi-lhes tão inesperado que ficaram perplexos. Agláia ficou muito vermelha.
Se quiser acreditar, bem, se não... Ficou embaraçada, ou porque eles me vissem
com ela, ou por eu os vir chegar. Bem sabe que beleza ela é, mas a verdade é
que mudou, ficou vermelha, instantaneamente, de um modo até incrível.
Levantando-se, respondeu ao cumprimento de Gavríl Ardaliónovitch e ao
insinuante sorriso de Varvára, mas logo se foi explicando - “Vim, apenas, para
lhes exprimir, pessoalmente, a minha gratidão ante os seus sinceros e amistosos
sentimentos, e se eles me vierem a ser necessários, acreditem que...” Depois
voltou para o banco. E os dois prosseguiram, com um ar que não sei se era de
patetas ou de triunfantes. O de Gánia, pelo menos, era de pateta. Ele nem sequer
articulou uma palavra e ficou tão vermelho como uma lagosta. (É extraordinário
como a cara dele pode mudar de uma hora para outra.)
Mas Varvára Ardaliónovna compreendeu que deviam raspar-se o mais depressa
possível, e que Agláia Ivánovna, da sua parte, já dissera o suficiente; e arrastou
o irmão dali; ela é mais esperta do que ele, e não tenho dúvida de que está toda
triunfante agora. Eu, porém, se estava ali, era porque tinha vindo de completar as
providências para um encontro com Nastássia Filíppovna.
- Com Nastássia
Filíppovna? - não pôde deixar de gritar o príncipe - Arre! Afinal começa o
senhor a perder o seu ar de indiferença. Pelo menos já ficou surpreendido!
Alegra-me verificar que, finalmente, está ficando
um ser humano. Congratulo-me com o amigo. Eis, porém, o que advém de a
gente querer servir uma rapariga de alma meiga. Recebi dela um tapa na cara.
- Simbolicamente falando? - Míchkin não pôde deixar de perguntar.
- Sim,
moralmente, e não fisicamente; mesmo porque não creio que alguém levantasse
a mão contra uma criatura no meu estado; agora, já nem mesmo mulher me
bate! Nem o próprio Gavríl me bateria! Verdade é, porém, que ontem, uma vez,
pelo menos, parece que ele quis voar sobre mim... Aposto o que quiser como sei
o que o senhor está pensando agora. Está pensando: “Ele está nas últimas,
naturalmente, mas mereceria, pelo menos, ser sufocado com um travesseiro, ou
um esfregão molhado, durante o sono. Olá se merecia...” Está escrito em sua
testa que está pensando isto, neste segundo.
Com evidente desagrado, o príncipe
respondeu: - Sabe muito bem que sou incapaz de pensar tal coisa...
- Não sei;
sonhei na noite passada que estava sendo sufocado com um pano úmido por... um
homem!... Vou dizer-lhe por quem: Rogójin! Que acha? Um pano molhado pode
sufocar um homem?
- Não sei.
- Já ouvi dizer que isso é possível. Está bem, ponhamos isso de lado. Escute, tenho
cara de caluniador? Por que me acusou ela hoje de caluniador? E, repare bem,
só me deu tal epíteto depois de me escutar, palavra por palavra, e depois de me
fazer as perguntas que lhe convinham. Mas isso é próprio de mulher. Apenas no
interesse dela me pus em contato com Rogójin, aliás pessoa interessante. Apenas
no interesse dela lhe arranjei uma entrevista com Nastássia Filíppovna. Seria
porque feri o amor-próprio dessa jovem insinuando ocasionalmente que estaria
se contentando com as “sobras” da outra? Sim, tentei fazer-lhe ver isso em seu
próprio interesse, não nego. Escrevi-lhe duas cartas só com tal finalidade e hoje,
por uma terceira vez, na entrevista, insisti no assunto... Fiz-lhe ver que isso era
humilhante para ela. Não que a palavra “sobras” fosse minha. É de outra pessoa.
Pelo menos em casa de Gánia todo o mundo a emprega e até ela própria a
repetiu. Como então me chama de caluniador? Já sei, já sei, é muito divertido
pôr- se a olhar para mim deste jeito!
Aposto como me está aplicando aqueles versos:
Mas no crepúsculo do seu declínioTeve um brilho de amor em despedida...
O
príncipe continuou calado por muito tempo, aniquilado pelo espanto. Finalmente
murmurou:
- Vai haver, disse você, uma entrevista com Nastássia Filíppovna?
- Ai, mau!
Tem dúvida de que Agláia Ivánovna se vá encontrar hoje com Nastássia
Filíppovna? Para esse fim foi ela trazida de Petersburgo por Parfión a instâncias
minhas, mediante convite de Agláia Ivánovna. Lá está ela onde esteve antes, em
casa de... Dária Aleksiéievna... uma mulher duvidosa, sua amiga. Perto de onde o
senhor mora. Nessa casa suspeita Agláia Ivánovna se encontrará hoje com
Nastássia Fílíppovna para ambas decidirem vários problemas. Vão ocupar-se
com aritmética. Não sabia? E se eu lhe der minha palavra de honra?
- Isso é inacreditável!
- Lá que seja inacreditável talvez seja! Será? Não será? Muito embora isto aqui
não passe de um lugarejo onde se uma mosca zunir toda gente sabe! Mas já que
o estou avisando venha de lá com a sua gratidão, homem! Bem, até à vista..,
decerto no outro mundo! Ah! Uma coisa, ainda: apesar de ter sido grosseiro com
o senhor, e saber os motivos muito bem.., por que hei de acabar sendo o vencido?
Podia me responder com toda a amabilidade? Perco eu para ganhar o senhor,
hein? Dediquei a ela a minha “Confissão”. (Não sabia o senhor disso?) E de que
forma ela a recebeu, ainda por cima! Ah! Ah! Mas a verdade é que com ela não
agi grosseiramente, feito canalha, não lhe causei dano nenhum! Ela em paga me
vilipendiou, me amesquinhou, a mim que nem mesmo ao senhor fiz qualquer
mal. Se me referi a “sobras” e outras coisas no gênero, no entanto, aqui vim lhe
avisar o dia, a hora e o local do encontro. Verdade é que se estou desvendando
todo o jogo, o faço por mero ressentimento e não por generosidade. Vou-me
embora; adeus. Falei mais do que um gago ou um tísico! Tome agora suas
providências, se quer ser chamado homem! A entrevista se dará hoje; esta
noite. Ora, aí está.
Ippolít dirigiu-se para a porta; mas como Míchkin o chamasse, parou na soleira.
- De acordo com o que veio me dizer, Agláía Ivánovna vai a uma entrevista hoje
na casa de Nastássia Filíppovna? - e ao perguntar, manchas vermelhas lhe
apareceram nas faces e na testa.
- Não posso garantir mas é mais que provável - respondeu Ippolít. - Aliás, onde haveria de ser? Nastássía Filíppovna não haveria de ir à casa da
outra. Muito menos, na casa de Gánia, cujo pai está em coma. Não sabe que o general
entrou em agonia?
- Tudo prova a impossibilidade de um tal encontro - aventurou
o príncipe - Como haveria ela de sair, mesmo que quisesse? Não sabe os hábitos
daquela casa? Sair sozinha para ir ver Nastássia Filíppovna lhe seria impossível.
Isso é um absurdo!
- Olhe aqui, príncipe; ninguém pula pela janela. Mas quando lavra incêndio em
casa, o cavalheiro mais fino, ou a mais elegante das damas saltam pela janela.
Se não há outro recurso, por que não pular mesmo que seja alto demais? E a sua
gentil dama irá mesmo se encontrar com Nastássia Filíppovna. Com que então os
Epantchín não permitem que as moças saiam sozinhas para onde queiram, hein?
- Não, eu não disse isso...
- Pois então ela tem mesmo de descer lá das suas alturas e ir diretamente até à
casa da outra. E conforme o caso nem precisa voltar para o lar. Casos há em que
se incendeiam os navios para não se regressar. A vida não Consiste apenas em
almoços e jantares, e em Príncipes Chtch... e não sei mais quê! Estou a ver que o
senhor considera Agláia Ivánovna uma meninota, ou uma colegial! Espere,
então, até às sete ou oito horas. Se eu fosse o senhor, mandava Kólia, por
exemplo. Por sua causa ele de bom grado se prestará a ser espião. Penso eu.
Tudo é relativo, neste mundo. Ah! Ah!...
Ippolít foi-se. O príncipe era incapaz de
mandar alguém espiar e nem achou que havia motivos para isso.
Estava agora mais do que explicado o pedido feito por Agláia: não sair de casa...
Mas, quem sabe se ela desejava vir vê-lo? Ou queria evitar que ele fosse à sua
casa? Podia ser isso, esse pedido de que permanecesse em casa. A cabeça de
Míchkin estava em um redemoinho. O quarto inteiro rodava... Estirou-se no sofá
e fechou os olhos.
Um ou outro caso era provável. Por que haveria de tomar Agláia como
meninota, ou como colegial?
Entendeu agora que se antes já estava inquieto era porque desconfiara de
qualquer coisa. Mas, ir ver a outra, por quê? Os arrepios o fizeram certificar-se
de que estava, novamente, com febre. Não, não a considerava uma criançola!
Verdade é que certos modos e certos pontos de vista manifestados por ela, o
vinham, ultimamente, horrorizando. De fato, às vezes ficava reservada demais,
vigiava-se muito, alvoroçando-o.
Bem que experimentara não pensar nisso,
afugentar certas ideias que o oprimiam. Mas, que se esconderia naquela alma?
Esse mistério o aborrecera muitas vezes, embora tivesse fé naquela alma. Tinha
havido, porém, uma combinação, tudo viera à luz, agora. Que horrível
pensamento! E, de novo, aquela mulher! Bem lhe parecera, sempre, que aquela
mulher apareceria no último momento para arrebentar, como a uma linha podre,
o seu destino! Sempre pressentira isso, podia jurar, agora, mesmo estando quase
em delírio.
Bem que experimentara, ultimamente, esquecê-la... mas isso não
fora senão medo dela! Amava ou odiava aquela mulher? Como é que esta
pergunta nunca lhe viera antes? O seu coração a este respeito tinha certeza: sabia
que amava! O seu medo não era tanto pelo encontro das duas, nem pela
estranheza e pelo motivo desconhecido de tal encontro! E nem mesmo por aquilo
que disso adviria! Adviesse o que adviesse. O seu medo era... de Nastássia
Filíppovna. (Lembrou-se, alguns dias depois, que bem através daquelas horas
febris, os seus olhos, a sua expressão, tinham estado diante dele e que as suas
palavras tinham soado em seus ouvidos; estranhas palavras, embora delas pouco
tivesse ficado depois que aquelas horas febris de miséria se tinham desfeito.)
Muito mal se lembrava de que Vera lhe tinha trazido o jantar, que o havia comido
mas não sabia se depois disso dormira ou não. O que acabou por ficar sabendo
foi que as coisas só começaram a se clarear quando, aquela noite, Agláia
inesperadamente apareceu, subindo a varanda. Saltando do sofá, ele precipitou
se para ela. Eram sete e um quarto. Agláia viera sozinha, vestida simplesmente,
com um albornoz claro. Parecia apressada. Sua face estava tão pálida quanto de
manhã e os seus olhos cintilavam com uma luz viva e fria. Nunca lhe vira tal
expressão nos olhos. Olhou de maneira atenta e observou com aparente
tranquilidade:
- Está preparado. Vestido e com o chapéu na mão. Quer dizer que foi avisado.
E já sei por quem: Ippolít.
- Sim, ele me disse - murmurou o príncipe mais morto do que vivo.
- Então, vem.
É lógico que me deve acompanhar até lá. Já está bastante forte, pode sair?
- Já estou bom. Mas é isso possível?
Calou-se repentinamente e não houve meios de dizer mais nada. Foi a única
tentativa feita para conter a rapariga louca. Depois do quê, a seguiu como um
escravo. Por mais baralhadas que estivessem suas ideias, compreendeu todavia
que, mesmo sem ele, ela iria até lá. Por conseguinte, devia acompanhá-la de qualquer forma. Não era preciso adivinhar a resolução dela. E ninguém
lhe impediria esse impulso selvagem.
Caminharam todo o tempo calados, só no fim pronunciando uma ou outra
palavra. Notou que ela sabia bem o caminho. E quando, em certo momento, lhe
sugeriu que fossem por um caminho mais longo mas com a vantagem de ser
mais deserto. ela fez um ar de reflexão demorada e acabou respondendo: - Dá
no mesmo...
Quando já tinham quase atingido a residência de Dária Alekséievna (uma grande
casa velha de madeira), descia de lá uma senhora vestida espalhafatosamente,
com uma menina. Entraram ambas em uma elegante carruagem que estava
parada rente aos degraus, acomodaram-se conversando e rindo. Parece que não
notaram o par que se aproximava, pois nem o olharam sequer. Logo que a
carruagem partiu, a porta se abriu e Rogójin, que estava do lado de dentro, fez
Míchkin e Agláia entrarem, fechando depois a porta.
- Em toda a casa não há
ninguém, senão nós quatro - observou, ruidosamente olhando o príncipe de modo
estranho.
Logo na primeira sala para onde passaram, deram com Nastássia
Filíppovna que os esperava.
continua página 510...
_____________________
Leia também:
_____________________
Leia também:
Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (8b) - Eis-me forçado a mudar
___________________
___________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário