quarta-feira, 2 de julho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - Parêntesis / VIII - Fé a lei

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sétimo — Parêntesis

VIII - Fé a lei
     
     Mais algumas palavras.
     Nós censuramos a igreja quando a intriga a satura; desprezamos o espiritual, áspero para com o temporal; porém em toda a parte respeitamos o homem que se entrega à meditação, em toda a parte saudamos o que vemos de joelhos.
     A fé é uma necessidade para o homem. Infeliz do que nada crê!
     Não se segue que, por qualquer estar absorvido, esteja ocioso. Há o labor visível e o labor invisível.
     Contemplar é laborar; pensar é obrar. Trabalha-se de braços cruzados, faz-se serviço de mãos erguidas.
     Olhar para o céu é uma obra. 
     Tales esteve quatro anos imóvel e foi o fundador da filosofia. 
     Para nós nem os cenobitas são ociosos, nem os solitários vadios. 
     Pensar na treva é uma coisa séria.
     Sem nada invalidar do que atrás dissemos, julgamos que aos vivos convém uma perpétua lembrança do túmulo. Neste ponto estão de acordo o padre e o filósofo. É necessário morrer. A Horácio serve de réplica o abade da Trapa.
     Entremear a vida de certa presença do sepulcro é a lei do asceta. A este respeito, sábio e asceta, ambos convergem.
     Gostamos do engrandecimento moral, assim como queremos o aumento material. 
     Dizem os espíritos irrefletidos e rápidos:

— De que servem e que fazem essas figuras imóveis da parte do mistério?

     Ah! Em presença da escuridão que nos cerca e nos espera, sem sabermos o que de nós fará a dispersão imensa, respondemos:

— Não há obra, talvez, mais sublime do que aquela em que se empregam essas almas. — E acrescentamos: — Talvez não haja trabalho mais útil.

     Bem precisos são aos que nunca rezam os que estão sempre a rezar. 
     Para nós toda a questão está na quantidade de pensamento que se mistura com a oração. 
     É grande ver Leibnitz orando; belo ver Voltaire adorando. Deo erexit Voltaire. 
     Somos pela religião contra as religiões. 
     Somos dos que creem na miséria dos discursos e na sublimidade da oração.
     Neste instante, porém, que vamos atravessando, instante que, felizmente, não deixará ao século XIX a sua figura, a esta hora em que tantos homens andam de fronte curvada e trazem a alma tão pouco elevada, entre tantos vivos, cuja moral é gozar, e que só se ocupam com as coisas breves e disformes da matéria, parece-nos venerável todo o que se exila. O mosteiro é uma renúncia. O sacrifício em falso nem por isso é menos sacrifício. Há tal ou qual grandeza em tomar por dever um erro severo.
     Tomado em si e idealmente (para girarmos em roda da verdade até à revista imparcial de todos os aspectos), o mosteiro, e especialmente o convento de freiras, pois na nossa sociedade a mulher é a que mais sofre, e esse exílio do claustro é um como protesto, o convento de freiras, dizemos, tem incontestavelmente certa majestade.
     Essa existência claustral, tão austera e melancólica, de que atrás indicámos alguns lineamentos, não é a vida, porque não é a liberdade; não é o túmulo, porque não é a plenitude; é o estranho lugar de onde, como do pináculo de uma elevada montanha, se descobre de um lado o abismo em que estamos, do outro o abismo em que havemos de estar; é uma fronteira estreita enevoada que separa dois mundos, por ambos alumiada e escurecida ao mesmo tempo, e em que o enfraquecido raio da vida se mistura com o raio vago da morte; é a penumbra do túmulo.
     Quanto a nós, que não cremos o que creem essas mulheres, mas que, como elas, vivemos pela fé, nunca pudemos considerar sem uma espécie de terror religioso e terno, sem uma espécie de piedade cheia de inveja, essas criaturas dedicadas, trémulas e crentes, essas almas humildes e augustas que ousam viver mesmo à beira do mistério, esperando entre o mundo que se fechou e o céu que não se abre, voltadas para a claridade, que se não vê, só com a ventura de julgarem que sabem onde ela está, aspirando ao abismo e ao incógnito com os olhos fixos na escuridão imóvel, ajoelhadas, desvairadas, estupefatas, assustadas, soerguidas a certas horas pelos sopros profundos da eternidade.

continua na página 397...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - VIII - Fé a lei
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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