Simone de Beauvoir
02. A Experiência Vivida
O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR
SlMONE DE BEAUVOIR
SEGUNDA PARTE
SITUAÇÃO
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CAPÍTULO II
A MÃE
É PELA MATERNIDADE que a mulher realiza integralmente seu destino fisiológico; é a maternidade sua vocação "natural", porquanto todo o seu organismo se acha voltado para a perpetuação da espécie. Mas já se disse que a sociedade humana nunca é abandonada à natureza. E, particularmente, há um século, mais ou menos, a função reprodutora não é mais comandada pelo simples acaso biológico: é controlada pela vontade [1]. Certos países adotaram oficialmente métodos precisos de birth-control; nas nações submetidas à influência do catolicismo, esse controle realiza-se clandestinamente: ou o homem pratica o coitus interruptus ou a mulher expulsa os espermatozoides do corpo após o ato amoroso. Isso constitui, amiúde, uma fonte de conflitos e rancores entre amantes ou esposos; o homem irrita-se com ter de vigiar seu prazer; a mulher detesta a tarefa da lavagem; ele se ressente com a fecundidade do ventre da mulher; ela receia esses germes de vida que ele arrisca depositar nela. E é uma consternação para ambos quando, apesar das precauções, ela "pega" um filho. O caso é frequente nos países em que os métodos anticoncepcionais são rudimentares. Então o anti-phisis assume uma forma particularmente grave: o aborto. Igualmente proibido nos países que autorizam o birth-control, tem muito menor número de oportunidades de se propor. Mas na França é uma operação a que numerosas mulheres se veem obrigadas a recorrer e que obsidia a vida amorosa da maioria delas.
Há poucos assuntos a cujo respeito a sociedade burguesa demonstre maior hipocrisia: o aborto é um crime repugnante a que é indecente aludir. Que um escritor descreva as alegrias e os
sofrimentos de uma parturiente, é perfeito; que fale de uma abortante e logo o acusarão de chafurdar na imundície e de descrever a
humanidade sob um aspecto abjeto: ora, há na França anualmente
número igual de abortos e de nascimentos. É um fenômeno tão
expandido que cumpre considerá-lo como um dos riscos normalmente implicados na condição feminina. O código obstina-se
entretanto a fazer dele um delito: exige que essa operação delicada seja executada clandestinamente. Nada mais absurdo do
que os argumentos invocados contra a legislação do aborto. Pretende-se que se trata de uma intervenção perigosa. Mas os médicos honestos reconhecem, como o Dr. Magnus Hirschfeld,
que "o aborto feito pela mão de um médico especialista, numa
clínica e com as medidas preventivas necessárias, não comporta esses graves perigos cuja existência a lei afirma". É, ao contrário, em sua forma atual que ele faz a mulher correr grandes riscos. A falta de competência das "fazedoras de anjos",
as condições em que operam, engendram muitos acidentes, por
vezes mortais. A maternidade forçada leva a deitar no mundo
crianças doentias, que os pais serão incapazes de alimentar,
que se tornarão vítimas da Assistência Pública, ou crianças
mártires. Cabe observar, ademais, que a sociedade tão encarniçada na defesa dos direitos do embrião se desinteressa da
criança a partir do nascimento; perseguem as praticantes do
aborto ao invés de procurarem reformar essa escandalosa instituição que chamam Assistência Pública; deixam em liberdade os
responsáveis que entregam os pupilos a verdugos; fecham os
olhos à horrível tirania que exercem "em casas de educação"
ou em residências privadas os carrascos de crianças; e, se recusam
admitir que o feto pertence à mulher que o traz no ventre, asseguram por outro lado que o filho é coisa dos pais; acabamos
de ver na mesma semana um cirurgião condenado por práticas
abortivas suicidar-se e um pai, que batera no filho até quase
mata-lo, ser condenado a apenas três meses de prisão com sursis.
recentemente, um pai deixou o filho morrer de difteria por falta
de cuidados; uma mãe recusou chamar um médico para a filha,
em nome de seu abandono incondicionado à vontade divina:
crianças jogaram-lhe pedras no cemitério, mas com a indignação
de alguns jornalistas, uma corte de pessoas de bem protestou declarando que os filhos pertenciam aos pais, que qualquer controle
estranho era inaceitável. Há hoje "um milhão de crianças em
perigo" diz o jornal Ce Soir; e o France-Soir imprime que "quinhentas mil crianças se encontram em perigo físico ou moral".
Na África do Norte, a mulher árabe não tem a possibilidade de
provocar voluntariamente o aborto: em cada dez filhos que concebe, sete ou oito morrem e ninguém se incomoda com as
penosas e difíceis maternidades matarem o sentimento materno.
Se a moral se satisfaz com isso, que pensar de tal moral?
É preciso acrescentar que os homens que mais respeitam a vida
embrionária são também os que se mostram mais diligentes
quando se trata de condenar adultos a uma morte militar.
As razões práticas invocadas contra o aborto legal não têm
nenhum peso; quanto às razões morais, reduzem-se ao velho
argumento católico: o feto possui uma alma a que se veda o
paraíso, suprimindo-o antes do batismo.
É de observar que
a Igreja autoriza ocasionalmente a morte de homens feitos: nas
guerras ou quando se trata de condenados à morte; reserva porém para o feto um humanitarismo intransigente. Não é ele
resgatado pelo batismo, mas, na época das guerras santas contra
os infiéis, estes não o eram tampouco e o massacre deles era
fortemente encorajado. As vítimas da Inquisição não se achavam
sem dúvida todas em estado de graça, como hoje o criminoso
que é guilhotinado ou os soldados que morrem no campo de batalha. Em todos esses casos, a Igreja confia a decisão a Deus;
ela admite que o homem não passa de um instrumento na mão
dele e que a salvação de uma alma se resolve entre essa alma
e Deus. Por que proibir então a Deus que acolha uma alma
embrionária em seu Céu? Se um concilio lhe autorizasse, ele não
protestaria como não o fez na bela época do piedoso massacre
dos índios. Em verdade, chocamo-nos aqui contra uma velha tradição obstinada que nada tem com a moral. É preciso contar
também com esse sadismo masculino de que já tive a oportunidade de falar. O livro que o Dr. Roy dedicou a Pétain em
1943 é um exemplo edificante; é um monumento de má-fé. Insiste ele, paternalmente, nos perigos do aborto, mas nada lhe parece mais higiênico do que uma cesariana. Ele quer que o aborto
seja considerado um crime e não um delito; deseja que seja
proibido mesmo em sua forma terapêutica, isto é, quando a
gravidez põe em perigo a vida ou a saúde da mãe: é imoral
escolher entre uma vida e outra, declara, e apoiando-se nesse
argumento aconselha sacrificar a mãe. Declara que o feto não
pertence à mãe, que é um ser autônomo. Entretanto, quando
esses mesmos médicos bem pensantes exaltam a maternidade, afirmam que o feto faz parte do corpo materno, que não é um parasito alimentando-se a expensas dele. Vê-se a que ponto o
antifeminismo é ainda vivo pela obstinação de certos homens
em recusar tudo o que pode libertar a mulher.
Demais, a lei, que condena à morte, à esterilidade, à doença
muitas jovens mulheres, é totalmente impotente em assegurar um
aumento da natalidade. Um ponto acerca do qual concordam
partidários e inimigos do aborto legal, é o malogro radical da
repressão.
Segundo os professores Doléris, Bathazard, Lacassaane, teria havido na França 500.000 abortos por ano, por volta
de 1933; uma estatística (citada pelo Dr. Roy), de 1938, calculava
o número em um milhão. Em 1941, o Dr. Aubertin, de Bordéus,
hesitava entre 800.000 e um milhão. Esta última cifra parece
a mais próxima da verdade. Em um artigo de Combat, datado
de março de 1948, o Dr. Desplas escreve:
O aborto entrou nos costumes... A repressão praticamente malogrou... No Seine, em 1943, 1.300 inquéritos acarretaram 750 inculpações com 360 mulheres detidas, 513 condenações de menos de um ano a mais de cinco, o que é pouco em relação aos 15.000 abortos presumidos no departamento. Em todo o território contam-se 10.000 processos.
E acrescenta:
O aborto dito criminoso é tão familiar a todas as classes sociais quanto as políticas anticoncepcionais aceitas pela nossa sociedade hipócrita. Dois terços das abortadas são mulheres casadas... Pode-se estimar aproximativamente que há na França o mesmo número de abortos que de nascimentos.Em consequência de ser a operação praticada em condições amiúde desastrosas, muitos abortos terminam com a morte da abortada.Dois cadáveres de mulheres abortadas chegam por semana ao instituto médico-legal de Paris; muitos abortos provocam doenças definitivas.
Disseram às vezes que o aborto era um "crime de classe" e é em grande parte verdade. As práticas anticoncepcionais são muito mais espalhadas na burguesia; a existência do banheiro torna sua aplicação mais fácil do que entre os operários e camponeses privados de água corrente; as moças da burguesia são mais prudentes do que as outras; os filhos representam um fardo menos pesado para o casal: a pobreza, a crise de habitação, a necessidade para a mulher de trabalhar fora de casa figuram entre as causas mais frequentes do aborto. Parece que é muitas vezes depois de duas maternidades que o casal resolve restringir os nascimentos; de modo que a abortada de traços horríveis é também a mãe magnífica que embala nos braços dois anjos lou ros: a mesma mulher. Em um documento publicado em Temps Modernes de outubro de 1945, sob o título de "Sala Comum", Mme Geneviève Sarreau descreve uma sala de hospital em que teve a oportunidade de ficar algum tempo e onde muitas das doentes acabavam de sofrer raspagens: 15 em 18 tinham tido abortos, sendo que mais da metade provocados. O número 9 era mulher de um carregador do mercado; de dois casamentos tivera 10 filhos vivos, de que restavam 3, e sete abortos sendo cinco provocados; empregava de bom grado a técnica do "gancho", que expunha com complacência, e também comprimidos que indicava às companheiras. O número 16, com 16 anos, casada, tivera aventuras e sofria de uma salpingite em consequência de um aborto. O número 7, de 35 anos, explicava: "Faz quinze anos que estou casada, nunca o amei; durante vinte anos conduzi-me decentemente. Há três meses foi que tive um amante. Uma só vez num quarto de hotel. Fiquei grávida.... Então foi preciso, não é? Pus para fora. Ninguém sabe, nem meu marido, nem. .. ele. Agora acabou, nunca mais recomeçarei. Sofre-se demais... Não me refiro à raspagem. . . Não, não, é outra coisa: é. .. amor-próprio, compreende". O número 14 tivera cinco filhos em cinco anos; com 40 anos tinha um ar de mulher velha. Em todas havia uma resignação feita de desespero: "a mulher foi feita para sofrer", diziam tristemente.
A gravidade dessa experiência varia muito segundo as circunstâncias. A mulher burguesamente casada ou confortavelmente
sustentada, apoiada num homem, com dinheiro e relações sociais
leva grande vantagem; primeiramente obtém muito mais facilmente uma licença para um aborto "terapêutico"; se necessário,
tem os meios de pagar uma viagem à Suíça onde o aborto é
deliberadamente tolerado; nas condições atuais da ginecologia,
é uma operação benigna quando executada por especialista, com
todas as garantias da higiene e, se preciso, os recursos da anestesia.
Na ausência da cumplicidade oficial, ela encontra ajudas
oficiosas igualmente seguras: conhece bons endereços, tem bastante
dinheiro para pagar cuidados conscienciosos e sem esperar que a
gravidez se ache adiantada: tratá-la-ão com consideração; algumas
dessas privilegiadas pretendem que esse pequeno acidente faz bem
à saúde e dá brilho à tez. Inversamente há poucas desgraças
mais lamentáveis do que a de uma moça sozinha, sem dinheiro que se vê acuada a um "crime" a fim de apagar a mancha de
um "erro" que os seus não perdoariam: é anualmente na França
o caso de cerca de trezentas mil empregadas, secretárias, estudantes, operárias, camponesas; a maternidade ilegítima é ainda
uma tara tão horrível que muitas preferem o suicídio ou o
infanticídio à condição de mãe solteira: isso quer dizer que nenhuma penalidade a impediria de "botar para fora o filho". Caso
banal e que se encontra amiúde é o que vem relatado numa
confissão recolhida pelo Dr. Liepmann (Jeunesse et sexualité).
Trata-se de uma berlinense, filha natural de um sapateiro e de
uma doméstica:
Travei relações com o filho de um vizinho, dez anos mais velho do que eu... As carícias me pareceram tão inéditas que, meu Deus, deixei correr a coisa. Entretanto, de modo nenhum aquilo era amor. Ele continuou porém a iniciar-me, dando-me a ler livros sobre a mulher; finalmente dei-lhe a minha virgindade. Quando, depois de uma espera de dois meses, aceitei um lugar de preceptora na escola maternal de Speuze, estava grávida. Não tive mais regras durante dois outros meses. Meu sedutor escrevia-me que era absolutamente necessário fazê-las voltar bebendo petróleo e comendo sabão de cinza. Não sou capaz agora de descrever-lhe os tormentos que sofri... Tive que ir sozinha até o fim dessa miséria. O medo de ter um filho levou-me a fazer a coisa horrorosa. Foi então que aprendi a odiar o homem.
O pastor da escola tendo sabido da história por uma carta
perdida, prega-lhe um sermão e ela separa-se do rapaz; tratam-na
como ovelha negra.
Foi como se tivesse vivido dezoito meses numa casa de correção.
Em seguida ela se emprega como pagem na casa de um professor e aí permanece quatro anos.
Nessa época aprendi a conhecer um magistrado. Senti-me feliz por ter um homem de verdade a amar. Com meu amor dei-lhe tudo. Como consequência de nossas relações, aos 24 anos dei à luz um menino bem constituído. Tem ele hoje dezoito anos. Há nove anos e meio que não revejo o pai... como achasse insuficiente a importância de 2.500 marcos e como, por seu lado, recusando dar um nome ao filho, renegasse sua paternidade, tudo terminou entre nós. Nenhum homem me inspira mais desejo.
E muitas vezes o próprio sedutor que convence a mulher a
se desembaraçar do filho. Ou ele já a abandonou quando fica
grávida, ou ela quer generosamente esconder-lhe a desgraça, ou
não encontra nenhum auxílio nele. Por vezes não é sem o
lamentar que recusa o filho; ou porque não resolve logo suprimi-lo, ou porque não conhece nenhum endereço, ou ainda
porque não tem dinheiro disponível e perdeu tempo tentando drogas ineficientes; já chegou ao terceiro, quarto, quinto mês da gravidez quando decide livrar-se do feto; o aborto
será então infinitamente mais perigoso, mais comprometedor do
que durante as primeiras semanas. A mulher sabe-o; é com
angústia e desespero que o tenta; no campo o emprego da sonda
não é muito conhecido; a camponesa que "errou" deixa-se cair
da escada do celeiro, rola pelos degraus da escadaria, e muitas
vezes machuca-se sem resultado; por isso acontece que se encontre nas cercas, nos cerrados, nas latrinas, algum cadaverzinho
estrangulado. Na cidade, as mulheres auxiliam-se mutuamente.
Mas nem sempre é fácil descobrir uma "fazedora de anjos" e
menos ainda juntar a importância exigida; a mulher grávida pede
socorro a um amiga ou opera-se a si mesma; essas cirurgias
ocasionais são muitas vezes pouco competentes; facilmente se per
furam com gancho ou a agulha de tricô; um médico contou-me
que uma cozinheira ignorante, querendo injetar vinagre no útero,
injetou-o na bexiga, o que provocou horríveis sofrimentos. Brutalmente executado e mal tratado, o aborto, muitas vezes mais
penoso do que um parto normal, é seguido de perturbações
nervosas podendo ir até à beira do ataque epiléptico, provoca às
vezes graves moléstias internas e pode desencadear uma hemorragia mortal. Colette contou em Gribiche a dura agonia de uma
pequena dançarina de music-hall entregue às mãos ignorantes da
mãe; um remédio habitual era, diz, beber uma solução concentrada de sabão e correr em seguida durante um quarto de hora:
com tais tratamentos é muitas vezes matando a mãe que se suprime o filho. Falaram-me de uma datilógrafa que ficou durante
quatro dias no quarto, banhada em sangue, sem comer nem beber,
porque não ousara pedir socorro. É difícil imaginar abandono
mais horrível do que esse em que a ameaça da morte se confunde
com a do crime e da vergonha. A provação é menos rude [no
caso de mulheres pobres, mas casadas, que agem de acordo com
o marido e sem se atormentarem com escrúpulos inúteis: uma
assistente social disse-me que nas favelas elas se aconselham mutuamente, emprestam instrumentos e se assistem tão simplesmente
quanto se tratasse de extirpar calos. Mas suportam duros sofri
mentos físicos; nos hospitais são obrigados a receber a mulher
cujo abortamento se acha iniciado; mas castigam-na sadicamente
recusando-lhe qualquer calmante durante a operação final da raspagem. Como se vê do testemunho recolhido por G. Sarreau, tais perseguições não indignam sequer as mulheres, demasiado habituadas ao sofrimento: mas elas são sensíveis às humilhações de que
as cumulam. O fato de ser a operação clandestina e criminosa,
multiplica-lhe os perigos e dá-lhe um caráter abjeto e angustiante.
Dor doença, morte assumem um aspecto de castigo: sabe-se que
distância separa o sofrimento da tortura, o acidente da punição;
através dos riscos que assume, a mulher apreende-se como culpa
da- é essa interpenetração da dor e do erro que se apresenta
como singularmente penosa.
Esse aspecto moral do drama é sentido com maior ou menor
intensidade segundo as circunstâncias. Para as mulheres muito
livres de preconceitos, graças à sua fortuna, à sua situação social,
ao meio a que pertencem, e para aquelas a quem a pobreza ou a
miséria ensinaram o desdém da moral burguesa, quase não há problema: há um momento mais ou menos desagradável a passar, e é
preciso passar por ele, eis tudo. Mas numerosas mulheres são intimidadas por uma moral que guarda seu prestígio a seus olhos,
embora não possam adaptar sua conduta a ela; respeitam interiormente a lei que infringem e sofrem com cometer um delito;
sofrem ainda mais por terem de apelar para cúmplices. Suportam primeiramente a humilhação de mendigar: mendigam um
endereço, os cuidados do médico, da parteira; arriscam-se a ser
maltratadas com altivez ou se expõem a uma conivência degradante. Convidar deliberadamente outrem a cometer um delito é uma
situação que, em sua maioria, os homens ignoram e que a mulher
vive num misto de medo e vergonha. Essa intervenção que re
clama, muitas vezes, em seu coração, ela a rechaça. Acha-se
dividida no interior de si mesma. É possível que seu desejo
espontâneo seja conservar o filho que impede de nascer; mesmo
que não deseje positivamente a maternidade, sente com mal-estar
a ambiguidade do ato que pratica. Pois se não é verdade que
o aborto seja um assassínio, não pode contudo ser assimilado a
uma simples prática anticoncepcional; houve um acontecimento
que e um começo absoluto e cujo desenvolvimento se detém. Certas mulheres serão obsidiadas pela recordação desse filho que
não houve. Helen Deutsch (Psychology of Women) cita o caso
de uma mulher casada, psicologicamente normal, que tendo, por
causa de sua condição física, perdido duas vezes fetos de três
meses, mandou erguer-lhes dois pequenos túmulos de que cuidou
com grande devoção, mesmo depois do nascimento de numerosos
unos. Com muito mais razão, em sendo o aborto provocado,
terá muitas vezes a mulher o sentimento de ter cometido um pecado. O remorso, que acompanha na infância o desejo ciumento
da morte do irmãozinho recém-nascido, ressuscita e a mulher se
sente culpada de ter realmente matado um filho. Melancolias
patológicas podem exprimir esse sentimento de culpa. Ao lado
das mulheres que pensam ter atentado contra uma vida estranha,
muitas há que pensam ter sido mutiladas de uma parte de si
mesmas; nasce disso um rancor contra o homem que aceitou ou
solicitou a mutilação. H. Deutsch, mais uma vez, cita o caso
de uma moça profundamente apaixonada pelo amante, que insistiu ela própria em fazer desaparecer um filho que seria um
obstáculo à felicidade de ambos; ao deixar o hospital, recusou-se,
e para sempre, a rever o homem que amava. Se uma ruptura
tão definitiva é rara, em compensação é frequente que a mulher
se torne fria, seja com todos os homens, seja com o que a engravidou.
Os homens tendem a encarar o aborto com displicência;
consideram-no como um desses numerosos acidentes a que a
malignidade da natureza condenou as mulheres: não medem os
valores que se acham empenhados no aborto. A mulher renega
os valores da feminilidade, seus valores, no momento em que a
ética masculina se contesta da maneira mais radical. Todo o
universo moral dela é abalado. Com efeito, repetem à mulher
desde a infância que ela é feita para engendrar e cantam-lhe o
esplendor da maternidade; os inconvenientes de sua condição —
regras, doenças etc. — o tédio das tarefas caseiras, tudo é justificado por esse maravilhoso privilégio de pôr filhos no mundo.
E eis que o homem, para conservar sua liberdade, para não prejudicar seu futuro, no interesse de sua profissão, pede à mulher
que renuncie a seu triunfo de fêmea. O filho não é mais um
tesouro imensurável: engendrar não é mais uma função sagrada:
essa proliferação torna-se contingente, importuna, é mais uma
das taras da feminilidade. O aborrecimento mensal da menstruação apresenta-se, comparativamente, como abençoado: eis que se
aguarda ansiosamente a volta do escorrimento vermelho que mergulhara a menina no desespero; foi prometendo as alegrias do
parto que a tinham consolado. Mesmo consentindo no aborto,
desejando-o, a mulher sente-o como um sacrifício de sua feminilidade: é preciso que ela veja em seu sexo, definitivamente, uma
maldição, uma espécie de enfermidade, um perigo. Indo até o
fim dessa renúncia, certas mulheres tornam-se homossexuais em
consequência do traumatismo do aborto. Entretanto, no mesmo
momento em que, para melhor realizar seu destino, o homem pede à mulher que sacrifique suas possibilidades carnais, denuncia a hipocrisia do código moral dos homens. Estes proíbem
universalmente o aborto; mas aceitam-no singularmente como solução cômoda; é-lhes possível contradizerem-se com um cinismo
absurdo; mas a mulher experimenta essas contradições em sua
carne ferida; ela é geralmente demasiado tímida para se revoltar
deliberadamente contra a má-fé masculina; conquanto considerando-se vítima de uma injustiça que a decreta criminosa à força,
sente-se humilhada, maculada; ela é que encarna, numa figura
concreta e imediata, em si, a falta do homem; ele comete a falta,
mas livra-se dela na mulher; ele diz somente palavras, num tom
suplicante, ameaçador, sensato, furioso: esquece-as depressa; cabe
a ela traduzir essas frases na dor e no sangue. Algumas vezes, ele não diz nada, vai-se embora; mas seu silêncio e sua fuga são
um desmentido ainda mais evidente de todo o código moral instituído pelos homens. Não nos devemos espantar com isso que chamam "a imoralidade" das mulheres, tema predileto dos misóginos; como não teriam elas uma íntima desconfiança em relação
aos princípios arrogantes que os homens afirmam publicamente
e em segredo denunciam? Elas aprendem a não mais acreditar
no que dizem os homens quando exaltam a mulher, nem quando
exaltam o homem: a única coisa certa é esse ventre revolvido e
sangrento, esses molambos de vida vermelha, essa ausência do
filho. É com o primeiro aborto que a mulher começa a "compreender". Para muitas delas o mundo nunca mais terá a mesma
figura. E, no entanto, por falta de difusão dos métodos anticoncepcionais, o aborto é hoje na França o único caminho aberto à
mulher que não quer pôr no mundo filhos destinados a morrer
na miséria. Stekel (A Mulher Fria) disse-o muito justamente:
"A proibição do aborto é uma lei imoral, porquanto deve ser
obrigatoriamente violada, todos os dias, a todas as horas".
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continua página 257...
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Leia também:
O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo II - A Mãe (1)
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Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
"O que é uma mulher?"
[1] Cf. vol. I, págs. 152 e segs., em que se encontrará um histórico da questão do birth-control e do aborto.
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