sexta-feira, 4 de julho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Felizmente nos vimos bem depressa)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Primeiro

      Felizmente nos vimos bem depressa desembaraçados da filha de Françoise, que tivera de se ausentar por várias semanas. Aos conselhos habituais dados em Combray à família de um enfermo:

"Não vão tentar uma pequena viagem, mudança de ares, a volta do apetite, etc." ela acrescentara a ideia quase única que forjara especialmente, e que assim repetia todas as vezes que a víamos, sem se cansar, e como que para metê-la na cabeça dos outros:

- Ele deveria ter se tratado radicalmente desde o começo.

     Não preconizava um gênero de cura em vez de outro, desde que o tratamento fosse radical. Quanto a Françoise, ela via que eram dados poucos remédios à minha avó. Como, segundo ela, não servem senão para arruinar o estômago, sentia-se contente com isso, porém, mais do que contente, humilhada. Tinha no sul uns primos relativamente ricos cuja filha, adoecendo em plena adolescência, morrera aos vinte e três anos; durante alguns anos, o pai e a mãe se arruinaram na compra de remédios, em consulta a médicos diferentes, em peregrinações de uma estância termal a outra, até que ela morreu. Ora, isso parecia a Françoise, no caso desses parentes, uma espécie de luxo, como se eles tivessem tido um castelo ou cavalos de corrida. Eles próprios, por mais aflitos que estivessem, extraíam uma certa vaidade de tantas despesas. Não possuíam mais nada, nem principalmente o bem mais precioso, a filha, mas gostavam de repetir que tinham feito por ela tanto ou mais que as pessoas mais abastadas. Os raios ultravioleta, a cuja ação fora a infeliz submetida várias vezes por dia, durante meses, deixavam-nos especialmente lisonjeados. O pai, envaidecido em sua dor por uma espécie de glória, chegava de vez em quando a falar da filha como de uma estrela da ópera pela qual se tivesse arruinado. Françoise não era insensível a tanta encenação; a que rodeava a doença de minha avó lhe parecia meio pobre, boa para uma enferma num teatrinho provinciano.
     Houve um instante em que as perturbações da uremia alcançaram os olhos de minha avó. Durante alguns dias, ela não viu absolutamente nada. Seus olhos não eram de modo algum como os de um cego, permanecendo os mesmos. E só percebi que ela não enxergava por causa da estranheza de um certo sorriso de acolhimento que ela exibia logo que abriam a porta, até que lhe pegavam a mão para dar-lhe bom-dia, sorriso que principiava cedo demais e permanecia estereotipado em seus lábios, fixo, mas sempre de frente e tentando ser visto de todos os lados, porque já não dispunha do olhar para regulá-lo, indicar-lhe o momento, a direção, adaptá-lo, fazê lo variar de acordo com a mudança de lugar ou de expressão da pessoa que acabava de entrar, porque ficava sozinho, sem um sorriso dos olhos que desviasse um pouco dele a atenção do visitante, e que desse modo assumia, em sua falta de jeito, uma importância excessiva, dando a impressão de uma amabilidade exagerada. Depois, a vista voltou completamente; dos olhos, o mal nômade passou aos ouvidos. Durante alguns dias, minha avó ficou surda. E, como tivesse medo de ser surpreendida pela entrada súbita de alguém que não ouvira aproximar-se, a todo momento ela virava a cabeça bruscamente para a porta (embora deitada do lado da parede). Mas o movimento de seu pescoço era desajeitado, pois não é em poucos dias que nos acostumamos a essa transposição, senão de olhar os ruídos, ao menos de escutar com os olhos. Por fim as dores diminuíram, porém o embaraço da fala aumentou. Éramos obrigados a fazer minha avó repetir quase tudo o que dizia.
     Agora minha avó, sentindo que já não a entendiam, renunciava a pronunciar uma só palavra e permanecia imóvel. Quando me via, experimentava uma espécie de sobressalto como às pessoas a quem de súbito falta o ar, queria falar-me, mas só articulava sons inteligíveis. Então, dominada por sua impotência, deixava tombar a cabeça, esticava-se inteiramente na cama, a fisionomia grave, de mármore, as mãos imóveis sobre o lençol ou ocupando-se de uma ação puramente material, como a de enxugar os dedos com o lenço. Não queria pensar. Depois começou a ter uma agitação constante. Incessantemente desejava levantar-se.
     Mas nós a impedíamos o mais possível de fazê-lo, com receio de que ela se apercebesse de sua paralisia. Um dia em que a deixáramos sozinha por um instante, encontrei-a de pé, de camisola, tentando abrir a janela. Em Balbec, num dia em que tinham salvo, contra a sua vontade, uma viúva que se jogava ao mar, ela me dissera (talvez movida por um desses pressentimentos que por vezes lemos no mistério, aliás tão obscuro, de nossa vida orgânica, mas onde parece refletir-se o futuro) que não conhecia crueldade maior do que arrancar uma desesperada à morte que ela desejou e fazê-la regressar a seu martírio.
     Apenas tivemos tempo de segurar minha avó, que manteve com mamãe uma luta quase brutal; depois, vencida, sentada à força numa poltrona, abandonou seus intentos, deixou de lastimar-se, seu rosto se tornou impassível e ela pôs-se a catar cuidadosamente os pelos que em sua camisola deixara um cobertor que lhe havíamos jogado em cima.
     Seu olhar mudou completamente, muitas vezes inquieto, queixoso, desvairado. Já não era o seu olhar de outrora, era o olhar impertinente de uma velha que está variando.
     De tanto lhe perguntar se queria ser penteada, Françoise acabou por se convencer de que a pergunta vinha de minha avó. Trouxe escovas, pentes, água-de-colônia e um peignoir. Dizia: 

- Isto não pode cansar a Sra. Amédée; por mais fraca que a gente esteja, sempre pode ser penteada. - Isto é, nunca estamos demasiadamente fracos para que outra pessoa não possa, no que lhe diz respeito, pentear-nos.

     Mas, quando entrei no quarto, vi entre as mãos cruéis de Françoise, encantada como se estivesse a ponto de devolver a saúde à minha avó, sob a desolação de uma velha cabeleira que não tinha forças para suportar o contato do pente, uma cabeça que, incapaz de manter a posição que lhe fixavam, tombava numa vertigem contínua, em que o esgotamento das forças se alternava com a dor. Vi aproximar-se o momento em que Françoise ia acabar e não ousei apressá-lo dizendo:

"Basta", com medo de que me desobedecesse. Mas, em compensação, precipitei-me quando, para que minha avó visse se estava bem penteada, Françoise, inocentemente feroz, lhe chegou um espelho. Primeiro, fiquei feliz em poder arrancá-lo a tempo de suas mãos, antes que minha avó, de quem havíamos cuidadosamente afastado qualquer espelho, tivesse inadvertidamente visto uma imagem de si própria que não podia conceber. Mas infelizmente, quando, um momento após, inclinei-me para ela, a fim de beijar aquela testa que tanto se cansara, ela me encarou com ar atônito, receoso, escandalizado: não me havia reconhecido.

     Segundo o nosso médico, era um sintoma de que aumentava a congestão cerebral. Era preciso aliviá-lo. Cottard hesitava. Françoise esperou um instante que lhe aplicassem ventosas "clarificadas". Procurou-lhe os efeitos num dicionário, mas não pôde encontrá-los. Mesmo que dissesse "escarificadas" em vez de "clarificadas", nem assim teria encontrado tal adjetivo, pois não o procurava no ''e'' nem no ''c''- de fato, ela dizia "clarificadas", mas escrevia (e conseqüentemente julgava que era escrito) "esclarificadas". Cottard, o que a decepcionou, preferiu as sanguessugas, mas sem muita esperança. Quando, horas depois, entrei no quarto de minha avó, presas à sua nuca, às suas têmporas, às suas orelhas, as pequenas serpentes negras se estorciam na cabeleira ensangüentada, como as da Medusa. Mas, em seu rosto pálido e apaziguado, inteiramente imóvel, vi totalmente abertos, luminosos e calmos, seus belos olhos de outrora, talvez ainda mais carregados de inteligência do que antes da enfermidade, porque, visto que ela não podia falar, não devia mexer-se, era só a seus olhos que confiava o pensamento, o pensamento que ora ocupa em nós lugar imenso, oferecendo-nos tesouros insuspeitados, ora parece estar reduzido a nada e depois renascer como que por geração espontânea, graças a algumas gotas de sangue que são retiradas seus olhos doces e líquidos como o óleo em que de novo ardia o fogo aceso, iluminando diante da enferma o universo reconquistado. Sua calma não era mais o sossego do desespero, mas da esperança. Compreendia que estava melhor, queria ser prudente, não se mover, e fez-me apenas o dom de um belo sorriso para que eu soubesse que se sentia melhor, e me apertou levemente a mão.
     Sabia eu que desgosto causava à minha avó a vista de certos animais e, com mais forte razão, o ser tocada por eles. Sabia que era em consideração a uma utilidade superior que tolerava as sanguessugas. Assim, Françoise me exasperava ao repetir-lhe com esses risinhos que a gente tem com as crianças que desejamos fazer brincar: 

- Oh, esses bichinhos que estão correndo sobre a senhora! - 

     Além do mais, aquilo era tratar sem respeito a nossa doente, como se ela tivesse voltado a ser criança. 
     Porém minha avó, cuja fisionomia assumira a calma bravura de um estoico, nem sequer parecia ouvi-la.
     Infelizmente, logo que foram retiradas as sanguessugas, a congestão se tornou cada vez mais grave. Surpreendeu-me que, naquele momento em que minha avó estava tão mal, Françoise desaparecesse a todo instante. É que havia encomendado um vestido de luto e não queria fazer esperar a costureira. Na vida da grande maioria das mulheres, tudo, mesmo o desgosto mais profundo, redunda numa questão de prova de roupa.
     Alguns dias depois, enquanto eu dormia, minha mãe veio me chamar no meio da noite. Com a atenção carinhosa que, nas grandes ocasiões, as pessoas acabrunhadas por uma dor profunda evidenciam mesmo para com os pequenos incômodos alheios, ela me disse: 

- Perdoa-me vir perturbar o teu sono. 
- Não estava dormindo - respondi, acordando.

     Dizia-o de boa-fé. A grande modificação que provoca em nós o despertar é menos o fato de nos introduzir na vida clara da consciência do que de nos fazer perder a lembrança da luz um tanto mais nuançada em que repousava a nossa inteligência, como no fundo opalino das águas. Os pensamentos meio velados, sobre os quais ainda há pouco deslizávamos, conduziam em nós um movimento perfeitamente suficiente para que pudéssemos designá-los com o nome de vigília. Mas o despertar então encontra uma interferência de memória. Pouco depois, denominamo-lo de sono porque não nos lembramos mais dele. E quando reluz essa brilhante estrela, que, no momento do despertar, ilumina por detrás de quem dorme o seu sono inteiro, ela o faz crer, durante alguns segundos, que não se tratava de sono e sim de vigília. Na verdade, estrela cadente que, com sua luz, transporta a existência mentirosa, mas também os aspectos do sono, e só permite ao que desperta dizer consigo:

"Dormi."

     Com uma voz tão doce que parecia recear me fazer mal, minha mãe me perguntou se não me cansaria muito levantar-me, e, acarinhando-me as mãos: 

- Meu pobre menino, só poderás contar agora com teu papai e tua mamãe.  

     Entramos no quarto. Curvada em semicírculo sobre a cama, um ser diverso que não a minha avó, uma espécie de animal que se tivesse disfarçado com seus cabelos e deitado em seus lençóis, arquejava e se lamuriava, sacudindo as cobertas com suas convulsões. As pálpebras estavam fechadas, e era porque fechavam mal, antes que porque se abrissem, que deixavam ver um canto da pupila, velado, remelento, refletindo a obscuridade de uma visão orgânica e de um sofrimento interno. Toda essa agitação não se dirigia a nós, que ela não via nem conhecia.
     Mas, se era apenas um animal que ali se debatia, onde estava a minha avó? No entanto, a gente reconhecia o formato de seu nariz, agora desproporcionado em relação ao rosto, mas junto ao qual continuava um sinalzinho, e sua mão que afastava as cobertas com um gesto que outrora indicava que as cobertas a incomodavam e que agora não significava coisa alguma.
     Mamãe me pediu que trouxesse um pouco d'água com vinagre para molhar a testa de minha avó. Era a única coisa que a refrescava, segundo mamãe, que a via tentar afastar os cabelos. Mas da porta fizeram-me sinal que voltasse. A nova de que minha avó estava nas últimas espalhara-se imediatamente pela casa. Um desses "extras" que mandam chamar nos períodos excepcionais para aliviar o trabalho dos criados, o que transforma as agonias em algo semelhante a festas, acabava de fazer entrar o duque de Guermantes, o qual, parado na antessala, perguntava por mim; não pude fugir-lhe. 

- Acabo de saber, meu caro senhor, essas notícias macabras. Gostaria de apertar a mão de seu pai em sinal de condolências.

     Desculpei-me com a dificuldade de incomodá-lo naquele momento. O Sr. de Guermantes caía como no instante em que se parte de viagem. Porém sentia de tal modo a importância da cortesia que estava nos fazendo, que isso lhe ocultava o resto e ele queria absolutamente entrar no salão. Em geral, tinha o hábito de cumprir integralmente as formalidades com que decidira honrar alguém, e pouco se importava se as malas fossem feitas ou que o esquife estivesse pronto. 

- Mandaram chamar Dieulafoy? Ah, é um grave erro. E se me tivessem dito, ele teria vindo por minha causa; não me recusa nada, embora se tenha negado a ir à casa da duquesa de Chartres. Como vêem, coloco-me decididamente acima de uma princesa de sangue real. Aliás, diante da morte, somos todos iguais - acrescentou, não para me convencer de que minha avó se tornaria sua igual, mas tendo talvez percebido que uma conversação prolongada, relativamente a seu poder sobre Dieulafoy e à sua preeminência sobre a duquesa de Chartres, não seria de bom tom. De resto, seu conselho não me espantava. Sabia que em casa dos Guermantes citava-se com frequência o nome de Dieulafoy (apenas com um pouco mais de respeito) como o de um "fornecedor" sem rival. E a velha duquesa de Mortemart, nascida Guermantes (impossível compreender por que razão, quando se trata de uma duquesa, dizem quase sempre: "a velha duquesa de" ou, ao contrário, com um ar fino e Watteau, se ela é jovem, "a duquesinha de"), preconizava quase mecanicamente e com um piscar de olhos nos casos graves:

"Dieulafoy, Dieulafoy", como se tivessem necessidade de um sorveteiro "Poiré Blanche" ou, para os biscoitos, "Rebattet, Rebattet". Mas eu ignorava que meu pai acabava de mandar chamar precisamente Dieulafoy.

     Nesse momento, minha mãe, que esperava com impaciência os balões de oxigênio que deveriam tomar mais fácil a respiração de minha avó, entrou ela mesma na antessala, onde não imaginava encontrar o Sr. de Guermantes. Gostaria de tê-lo escondido em qualquer lugar. Porém, persuadido de que nada era mais essencial nem lisonjeiro para minha mãe, nem mais indispensável para manter sua reputação de perfeito cavalheiro, ele me pegou violentamente pelo braço e, apesar de eu me defender como contra uma violação, repetindo:

"Cavalheiro, Cavalheiro, Cavalheiro", arrastou-me em direção a mamãe, dizendo-me: - Quer me fazer a grande honra de me apresentar à senhora sua mãe? - derrapando um pouco na palavra mãe. E de tal modo achava que a honra era somente dela, que não podia evitar um sorriso, fazendo uma cara solene. Não pude deixar de nomeá-lo, o que logo deslanchou, de sua parte, reverências e pulinhos de dança, e ele ia recomeçar o cerimonial completo da saudação. Pensava até em travar conversa, porém minha mãe, mergulhada em sua dor, disse-me que voltasse depressa e nem sequer respondeu às frases do Sr. de Guermantes, que, esperando ser recebido como visita e vendo pelo contrário que o deixavam sozinho na antessala, teria acabado por sair se, no mesmo instante, não tivesse visto entrar Saint-Loup, que chegara naquela manhã a Paris e acorrera em busca de novidades.

- Ah, esta é muito boa! - gritou alegremente o duque segurando o sobrinho pela manga, que quase lhe arrancou, sem se preocupar com a presença de minha mãe que voltava a atravessar a antessala. Saint-Loup não estava aborrecido, creio, apesar de sua mágoa sincera, nem evitava estar comigo, considerando as suas disposições a meu respeito. Foi-se, arrastado pelo tio que, tendo algo de muito importante para lhe dizer, e que quase fora a Doncieres com essa intenção, não cabia em si de contente por se ter poupado tamanho incômodo. 
- Ah, se me tivessem dito que bastaria atravessar o pátio e te encontraria aqui, teria julgado que era uma grande piada! Como diria o teu camarada Bloch, é de matar. - E, afastando se com Robert, a quem segurava pelo ombro: - Dá no mesmo repetia -, bem se vê que acabo de tocar em corda de enforcado ou coisa parecida; tenho uma sorte bárbara! - 

     Não é que o duque de Guermantes fosse mal-educado, muito pelo contrário. Mas era desses homens incapazes de se pôr no lugar dos outros, desses homens semelhantes nisso à maioria dos médicos e coveiros, e que, depois de assumir uma fisionomia solene e dizer:

"São momentos muito penosos", e abraçar-nos e aconselhar-nos o repouso, só consideram uma agonia ou um enterro como uma reunião mundana mais ou menos restrita, em que, com uma jovialidade por um instante recalcada, procuram com o olhar a pessoa a quem podem falar de suas ninharias, pedir que os apresentem a uma outra, ou oferecer um lugar no carro para levá-las de volta. O duque de Guermantes, felicitando-se pelos "bons ventos" que o haviam impelido para o sobrinho, ficou tão espantado com a acolhida, todavia tão natural, de minha mãe que mais tarde declarou que ela era tão desagradável quanto cortês era meu pai, que ela tinha "ausências", durante as quais não parecia sequer ouvir as coisas que lhe diziam e que, em sua opinião, não estava em seu perfeito juízo ou talvez não o tivesse de todo. Por fim consentiu, pelo que me disseram, em atribuir aquilo em parte às "circunstâncias" e declarar que minha mãe lhe parecera muito "afetada" pelo acontecimento. Mas guardava ainda nas pernas o restante das saudações e reverências para trás que o haviam impedido de executar até o fim, e aliás percebia tampouco o que era o desgosto de minha mãe que me perguntou, na véspera do enterro, se eu não procurava distraí-la.

     Um cunhado de minha avó, que era religioso e a quem eu não conhecia, telegrafou da Áustria, onde estava o prior de sua ordem, e, tendo obtido autorização por favor excepcional, veio naquele dia. Acabrunhado de tristeza, lia ao pé da cama textos de rezas e meditações, sem no entanto desviar da enferma os olhos pequeninos. Num momento em que minha avó estava sem sentidos, a vista da tristeza daquele padre me fez mal, e o encarei. Pareceu surpreender-se com minha piedade e então ocorreu algo singular. Juntou as mãos sobre o rosto como um homem absorvido em dolorosa meditação, mas, compreendendo que eu ia desviar os olhos dele, verifiquei que deixara os dedos um pouco separados. E, no momento em que meu olhar o deixou, percebi que seu olho agudo se aproveitara daquele abrigo das mãos para observar se minha dor era sincera. Estava emboscado ali como na sombra de um confessionário. Percebeu que o estava observando e logo fechou hermeticamente a grade dos dedos que deixava entreaberta. Mais tarde voltei a vê-lo, e nunca se cuidou entre nós daquele instante. Ficou tacitamente combinado que eu não notara que ele me espiava. No padre, como no alienista, há sempre um tanto de juiz de instrução. Aliás, qual o amigo, por mais caro que seja, em cujo passado, em comum com o nosso, não tenha havido esses minutos em que achamos mais cômodo persuadir-nos de que ele os esqueceu? 
     O médico deu uma injeção de morfina e, para tornar menos penosa a respiração, pediu balões de oxigênio. Minha mãe e o doutor os seguravam nas mãos; logo que um terminava, passava-se a outro. Eu saíra um momento do quarto. Ao voltar, achei-me como que diante de um milagre. Acompanhada em surdina por um murmúrio incessante, minha avó parecia dirigir-nos um longo cântico feliz que preenchia o quarto, rápido e musical. Logo compreendi que esse cântico não era menos inconsciente, que era tão puramente mecânico feito o arquejar de ainda há pouco. Talvez refletisse em fraca medida algum bem-estar causado pela morfina. Resultava, sobretudo, como o ar já não passava da mesma maneira pelos brônquios, de uma mudança de registro da respiração. Aliviado graças ao duplo efeito do oxigênio e da morfina, o sopro de minha avó já não gemia nem se debatia, porém vivo, leve, deslizava, patinando, para o fluido delicioso. Talvez o hálito, insensível como o do vento na flauta de um caniço, se misturasse, nesse cântico, a alguns desses suspiros mais humanos que, liberados pela aproximação da morte, fazem acreditar em impressões de sofrimento ou de felicidade naqueles que já não sentem mais nada, e vinham acrescentar um acento mais melodioso, mas sem mudar de ritmo, a essa longa frase que se elevava, subia ainda, e depois recaía, para erguer-se de novo do peito aliviado em perseguição ao oxigênio. Depois, chegado assim tão alto, prolongado com tanta força, o cântico, mesclado a um murmúrio de súplicas na volúpia, parecia deter-se em certos momentos, exatamente como uma fonte esgotada. 
     Françoise, quando possuída de grande desgosto, experimentava a necessidade bem inútil de exprimi-lo, mas não tinha a arte tão simples. Julgando minha avó inteiramente perdida, eram as suas próprias impressões que se esforçava para nos dar a conhecer. E só sabia repetir: 

- Isso me dá uma coisa... no mesmo tom com que dizia quando tomava muita sopa de couve: - Tenho um peso no estômago o que, em ambos os casos, era mais natural do que ela parecia julgar. Tão fracamente traduzido, seu desgosto não era menos intenso, agravado pelo aborrecimento de que sua filha, retida em Combray (que a jovem parisiense denominava agora a cambrousse e onde se sentia transformar-se pétrousse), não pudesse verossimilmente voltar para a cerimônia fúnebre que Françoise sentia dever ser algo magnífico. Como sabia que éramos pouco expansivos, convocara previamente Jupien para todas as tardes da semana. Sabia que ele não estaria livre à hora do enterro. Queria ao menos, na volta, contar-lhe.  

     Fazia várias noites que meu pai, meu avô e um de nossos primos velavam e não saíam mais da casa. Seu devotamento contínuo acabava por assumir uma máscara de indiferença, e a interminável ociosidade em torno dessa agonia fazia-os dizerem as mesmas frases que são inseparáveis de uma estada prolongada num vagão de estrada de ferro. Além do mais, esse primo (sobrinho de minha tia-avó) causava-me tanta antipatia quanta estima merecia e geralmente obtinha. Conjurava-no sempre com as perífrases em uso, como as almas do outro mundo, se assombrava ao menor ruído, dizia: 

- Parece-me que é ela. -

     Mas, em vez de terror, era uma doçura infinita o que essas palavras despertavam em minha mãe, que desejaria tanto que os mortos voltassem, para às vezes ter a mãe a seu lado.
     Voltando agora àquelas horas de agonia: 

- Sabe o que é que as irmãs dela nos telegrafaram? - perguntou meu avô a meu primo. 
- Sim, Beethoven, disseram-me; é de se pôr num quadro, e isso não me espanta. 
- Minha pobre mulher que as amava tanto - disse meu avô enxugando uma lágrima. - Não devemos lhes querer mal. São doidas varridas, eu sempre disse. Que está acontecendo, não dão mais oxigênio? 

     Minha mãe disse: 

- Mas então mamãe vai recomeçar a respirar mal. 

     O médico respondeu: 

- Oh não, o efeito do oxigênio vai durar ainda um bom tempo; vamos recomeçar daqui a pouco.

     Parecia-me que não se teria dito isso no caso de uma agonizante e que, se esse bom efeito deveria durar, é que tinham algum poder em sua vida. O silvo do oxigênio cessou durante alguns momentos. Mas a queixa feliz da respiração continuava a jorrar sempre, leve, atormentada, incompleta, recomeçando sem cessar. Por instantes, parecia que tudo estava acabado, o sopro se extinguia, seja por essas mesmas mudanças de oitavas que há na respiração de uma pessoa que dorme, seja por uma intermitência natural, um efeito da anestesia, o progresso da asfixia, alguma fraqueza do coração. O médico voltou a tomar o pulso de minha avó, mas, como se um afluente viesse trazer seu tributo à corrente ressequida, já um novo canto se harmonizava à frase interrompida. E esta continuava em outro diapasão com o mesmo impulso inesgotável.
     Quem sabe se, mesmo que minha avó disso não tivesse consciência, tantos estados ternos e venturosos não escapavam dela agora como esses gases mais leves contidos durante longo tempo? Dir-se-ia que tudo o que ela tinha para nos contar se expandia, que era a nós que se dirigia com aquela prolixidade, aquela pressa, aquela efusão.
     Ao pé da cama, convulsa por todos os haustos daquela agonia, não chorando mais, mas às vezes inundada em lágrimas, minha mãe apresentava a desolação sem pensamento de uma folhagem que a chuva açoita e o vento revolve. Mandaram-me enxugar os olhos antes de ir beijar a minha avó. 

- Mas eu julgava que ela não via mais - observou meu pai. 
- Nunca se sabe replicou o doutor.

     Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha avó se agitaram, ela foi toda percorrida por um longo tremor, seja por reflexo, seja porque certas afeições tenham a sua hiperestesia que reconhece, através do véu da inconsciência, aquilo que elas quase não necessitam de sentidos para amar. De súbito, minha avó se ergueu a meio, fez um esforço violento, como alguém que defende sua vida. Françoise não pôde resistir àquela cena e rompeu em soluços. Lembrando-me do que dissera o médico, tentei fazê-la sair do quarto. Nesse momento, minha avó abriu os olhos. Precipitei-me para Françoise a fim de lhe ocultar as lágrimas, enquanto meus pais falavam à doente.
     O rumor do oxigênio silenciara, o médico se afastou da cama.
     Minha avó estava morta.
     Horas depois, Françoise pôde pela última vez, e sem maltratá-los, pentear aqueles lindos cabelos que mal principiavam a embranquecer e até então haviam parecido mais jovens que ela. Mas agora, pelo contrário, eram os únicos a impor a coroa da velhice sobre o rosto tornado jovem e de onde haviam desaparecido as rugas, as contrações, os empastamentos, as tensões e as dobras que há tanto tempo lhe vinham aumentando o sofrimento. Como antigamente, quando seus pais lhe haviam escolhido um esposo, ela apresentava feições finamente traçadas pela pureza e pela submissão, as faces brilhantes de uma casta esperança, de um sonho de ventura, e até de uma alegria inocente que os anos lhe tinham destruído aos poucos. A vida, ao se retirar, acabava de carregar as desilusões da existência. Um sorriso parecia pousado sobre os lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a sob a aparência de uma mocinha.
 

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