terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / IV - Fim do salteador

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     IV - Fim do salteador 
     
          Na mesma ocasião em que Gillenormand se retirava da sociedade, terminava Mário os seus estudos clássicos. O velho disse adeus ao bairro de S. Germano e ao salão de Madame T... e foi estabelecer-se para o Marais, na sua casa da rua das Mulheres do Calvário. Os seus criados, aí, além do porteiro, eram Nicole e, a criada de sala que tinha ficado no lugar de Magnon, e o esbaforido e atarefado biscainho, de quem já falamos.
     Em 1827, na época em que Mário tinha completado os seus dezessete anos havia pouco, ao recolher-se uma tarde para casa, viu seu avô com uma carta na mão. 

— Mário — disse-lhe Gillenormand — apronta-te que hás-de partir amanhã para Vernon. 
— Para quê? — perguntou Mário. 
— Para ires ver teu pai.

     Mário estremeceu. De tudo se tinha lembrado no decurso da sua vida, menos que poderia vir um dia em que tivesse de ver seu pai. Era esta para ele a coisa mais inesperada, surpreendente, e, digamos também, mais desagradável. Era ver-se obrigado a aproximar-se de quem forcejava por afastar-se. O mancebo não sentia saudades do pai, sentia a mortificação da jornada.
     Além dos seus motivos de antipatia política, Mário estava convencido que seu pai, o traga-mouros, como lhe chamava Gillenormand nos seus dias joviais, não o amava; isso estava bem de ver, visto que ele o abandonara daquela forma e o deixara entregue a cuidados alheios. E, como o mancebo via que não era amado, não amava também. Nada mais simples, pensava ele.
      Ficou, pois, tão estupefato, que não dirigiu a mínima pergunta a Gillenormand. O avô continuou: 

— Está doente, ao que parece, e por isso quer ver-te.

      E, após uma pausa, acrescentou: 

— É necessário que partas amanhã de manhã. Julgo que do largo das Fontes parte todos os dias uma diligência que sai às seis horas e chega lá quase à noite. Arranja lugar nela, porque teu pai diz que te quer lá quanto antes.

     Depois amarrotou a carta e meteu-a no bolso.
     Mário podia ter partido no fim dessa mesma tarde e achar-se junto de seu pai ao outro dia pela manhã, por isso que da rua de Bouloy partia para Rouen uma diligência que passava em Vernon, fazendo a viagem de noite. Porém, nem Gillenormand, nem Mário, se lembraram de colher informações a esse respeito.
     Ao outro dia, ao escurecer, Mário chegava a Vernon à hora em que principiavam a acender-se as luzes. Ao primeiro viandante que encontrou, perguntou onde era a casa do senhor Pontmercy, pois, segundo o seu modo de pensar, era da opinião da restauração, não reconhecendo também seu pai nem como barão nem como coronel.
      Indicaram-lhe a morada, o mancebo bateu e uma mulher com um candeeiro pequeno na mão, veio abrir-lhe a porta. 

— Aqui é que mora o senhor Pontmercy? — disse Mário.

     A mulher conservou-se imóvel. 

— É aqui? — perguntou Mário.

     A mulher fez um sinal afirmativo com a cabeça. 

— Posso falar-lhe?

     A mulher fez um sinal negativo. 

— Não posso? Mas eu sou o filho por quem ele espera. 
— Já o não espera! — disse a mulher, que o mancebo reparou que estava a chorar.

     Apontou-lhe então para a porta de uma sala inferior e o mancebo entrou.
     Nessa sala, alumiada por uma vela de cebo colocada em cima da pedra do fogão, viam-se três homens, um de pé, outro de joelhos e outro em camisa, estirado no chão. O que jazia no chão era o coronel. Os outros dois eram um médico e um padre, que estava a orar.
      Havia três dias que o coronel sofrera um ataque cerebral. Como vesse um mau pressentimento, logo no princípio da moléstia escrevera a Gillenormand, pedindo que lhe deixasse ir o filho, a quem queria ver. A moléstia, porém, agravou-se. Na tarde do mesmo dia em que Mário chegou, Pontmercy tivera um acesso de delírio, e, apesar dos esforços da criada para o conter, saíra pela cama fora, gritando: 

— Meu filho não chega, vou eu esperá-lo ao caminho!

      E em seguida deitara pelo quarto fora e caíra no sobrado da sala de espera. Acabava de expirar.
     Tinham chamado o médico e o abade. O médico, porém, chegara tarde, e o mesmo aconteceu com o abade e com o filho.
     Ao clarão crepuscular daquela vela divisavam-se na face do coronel, estirado no chão, duas grandes lágrimas, que lhe coaram dos olhos já selados pelo dedo da morte. Os olhos já não tinham vida, mas as duas lágrimas brilhavam-lhe ainda nas pálpebras. Eram a demora de seu filho.
     Mário pôs-se a contemplar aquele homem que via pela primeira e última vez, aquele varonil e venerando rosto, aqueles olhos abertos que já não viam, aqueles cabelos brancos, aqueles robustos membros, nos quais aqui e além se divisavam linhas escuras, que eram golpes de espada, e uma espécie de estrelas vermelhas, que eram buracos de balas. O mancebo contemplou o enorme gilvaz que imprimia o heroísmo naquela fronte em que Deus imprimira a bondade. Lembrou-se que aquele homem era seu pai, que seu pai estava morto, e ficou na mesma frieza.
     A tristeza que o mancebo sentiu, foi a tristeza que sentiria em presença de qualquer outro homem que visse estirado no chão, morto.
     O aspecto, porém, daquele quarto era sobremodo fúnebre. A criada chorava a um canto, o abade orava, soluçando ao mesmo tempo, o médico limpava os olhos, até o próprio cadáver chorava.
     O médico, o padre e a mulher olhavam para Mário entre a sua aflição sem dizer uma palavra; o mancebo é que era o estranho. Mário, envergonhado da sua pouca comoção e embaraçado da sua atitude, deixou cair o chapéu que tinha na mão para fazer supor que a dor lhe tirava a força de o segurar.
     Ao mesmo tempo, o mancebo sentia um como remorso do seu procedimento, achando-se mesmo a seus olhos desprezível. Mas ele tinha alguma culpa nisso? Se não amava seu pai, que havia de fazer?
     A herança do coronel era nula. Mal chegou para as despesas do enterro o produto da venda da mobília.
     Num bocado de papel achado pela criada e por ela entregue a Mário, liam-se as seguintes linhas escritas do próprio punho do coronel.

Para meu filho. 
O imperador fez-me barão no campo de batalha de Waterloo. Visto que a restauração me contesta este título, que eu ganhei à custa do meu próprio sangue, peço a meu filho que o tome e use como seu. Escuso de dizer que há-de ser digno dele.

      No lado de trás tinha o coronel acrescentado:

 Nessa mesma batalha de Waterloo salvou-me a vida um sargento chamado Thenardier. Nestes úlmos tempos, creio que este homem estava estabelecido com uma estalagem numa aldeia dos arrabaldes de Paris, em Chelles ou Montfermeil. Se meu filho algum dia der com ele, recomendo-lhe que lhe faça todo o bem que puder.

     Movido, não pelo sagrado afeto filial, mas pelo vago respeito da morte, sempre tão imperioso no coração do homem, Mário pegou no papel e guardou-o.
     O espólio do coronel desapareceu todo, Gillenormand mandou vender a um adelo a espada e o uniforme que fora dele; os vizinhos entraram pelo jardim, apossando-se das flores raras que ele com tanto desvelo cultivava, e as outras plantas morreram afogadas pelas moitas de silvas e abrolhos que lhe cresceram em torno.
     Mário demorara-se apenas quarenta e oito horas em Vernon, voltando depois do enterro para Paris, onde prosseguiu de novo a interrompida frequência das suas aulas de direito, sem mais lhe vir à lembrança a memória de seu pai, que era para ele como se nunca tivera existido. Dentro de dois dias estava o coronel enterrado, e no fim de três já ninguém se lembrava dele.
     Mário trazia um fumo no chapéu. Era ao que se reduzia tudo.

continua na página 472...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - IV - Fim do salteador
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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