segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário 
     
          Mário conservara os costumes religiosos que adquirira na infância. Num domingo que fora ouvir missa a S. Sulpício, àquela mesma capela da Virgem onde sua tia o levava quando era pequeno, estando mais distraído e pensativo do que de ordinário, sentara se numa cadeira de veludo de Utrecht, atrás de uma coluna, sem reparar que no recosto da cadeira estava escrito o nome: Mabeuf, sacristão. A missa tinha apenas começado, quando um velho se chegou a ele, dizendo-lhe: 

— Queira desculpar, mas este é o meu lugar.

     Mário ergueu-se apressadamente, e o velho entrou na posse da sua cadeira.
     Terminada a missa, Mário ficou ainda pensativo a alguns passos de distância: o velho aproximou-se novamente e disse-lhe: 

— Peço-lhe que me desculpe tê-lo incomodado no começo da missa e de agora mesmo o tornar a incomodar. O senhor deve ter-me achado importuno, portanto é necessário que lhe dê uma explicação. 
— É inútil, senhor! 
— Não é — tornou o velho — não quero que vá fazendo má ideia de mim. Tenho muita predileção por este lugar. Parece-me que a missa aqui é melhor. Não sabe porquê? Eu lhe digo. Foi neste lugar que eu vi, durante dez anos, de dois em dois ou de três em três meses, regularmente, um pobre e honrado pai, que não tinha outra ocasião nem maneira de ver seu filho, por isso que lhe impediam certos assuntos de família. Aparecia sempre à hora em que sabia trazerem seu filho à missa. O pequenino nem suspeitava que seu pai aqui estivesse; nem mesmo sabia que tinha pai, o pobre inocente. O pai, pela sua parte, conservava-se atrás do pilar, para que o não vissem. Contemplava o filho e chorava; o pobre homem adorava a criancinha. Vi isto muitas vezes. Este lugar ficou como santificado por mim, e acostumei-me a ouvir sempre nele a missa. Prefiro-o à bancada em que devia estar, como sacristão. Tive até algum conhecimento com o infeliz homem. Tinha um sogro, uma tia rica, e não sei que mais parentes que o ameaçavam de deserdar a criança, se ele, que era seu pai, lhe falasse. Sacrificara-se para que o filho pudesse um dia ser rico e feliz. Parece que não consentiam que ele o visse por motivo de opiniões políticas. Eu aprovo que se tenham opiniões políticas; mas há gente que não sabe ter mão nelas. Valha-me Deus! Um homem não é um monstro só porque esteve em Waterloo; não se separa um pai de seu filho por semelhante coisa. Era um coronel de Bonaparte; e julgo que morreu. Residia em Vernon, onde está meu irmão, que é prior, e chamava-se... Tinha assim um nome como Pontmarie ou Montparcy... O que ele tinha também era uma cicatriz no rosto. 
— Pontmercy — disse Mário, empalidecendo. 
— É isso mesmo! Pontmercy. Conhecia-o? 
— Era meu pai!

     O velho sacristão juntou as mãos e exclamou: 

— Logo o senhor é o menino de então! É isso, é; devia ser agora um homem. Pobre criança! Pode dizer que teve um pai bem seu amigo!

     Mário ofereceu o braço ao velho e conduziu-o até sua casa. No dia seguinte disse ao senhor Gillenormand: 

— Fui convidado por alguns amigos para uma caçada; dá-me licença que me ausente por três dias? 
— Por quatro! — respondeu-lhe o avô. — Vai divertir-te.

     E, piscando o olho, disse em voz baixa a sua filha: 

— Alguns amoricos!

continua na página 472...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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