Hannah Arendt
Parte III
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
1 - A Propaganda Totalitária
Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser
conquistadas por meio da propaganda. Sob um governo constitucional e havendo liberdade de
opinião, os movimentos totalitários que lutam pelo poder podem usar o terror somente até certo
ponto e, como qualquer outro partido, necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis aos
olhos de um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes
de informação.
Nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma moeda.[1] Isso,
porém, só é verdadeiro em parte. Quando o totalitarismo detém o controle absoluto, substitui a
propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o que só é
feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição política), mas para dar realidade às
suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias. O totalitarismo não se contenta em
afirmar, apesar de prova em contrário, que o desemprego não existe; elimina de sua propaganda
qualquer menção sobre os benefícios para os desempregados.[2] Igualmente importante é o fato de
que a recusa em reconhecer o desemprego corrobora — embora de modo inesperado — a velha doutrina socialista de que
quem não trabalha não come. Ou, para citar outro exemplo, quando Stálin decidiu reescrever a
história da Revolução Russa, a propaganda da sua nova versão consistiu em destruir, juntamente
com os livros e documentos, os seus autores e leitores: a publicação, em 1938, da nova história
oficial do Partido Comunista assinalou o fim do super expurgo que havia dizimado toda uma
geração de intelectuais soviéticos. Da mesma forma, nos territórios ocupados da Europa
oriental, os nazistas se utilizaram, no início, de propaganda antissemita principalmente para
assegurar um controle mais firme da população. Não precisaram lançar mão do terror para nele
apoiar a sua propaganda, nem o fizeram. Quando liquidaram a maioria dos intelectuais
poloneses, não o fizeram devido à sua oposição, mas porque, segundo a doutrina nazista, os
poloneses não tinham intelecto; e, quando planejaram levar para a Alemanha as crianças de
olhos azuis e cabelos louros, não pretendiam com isso aterrorizar a população, mas apenas
salvar "o sangue germânico".[3]
Por existirem num mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a
recorrer ao que comumente chamamos de propaganda. Mas essa propaganda é sempre dirigida a
um público de fora — sejam as camadas não-totalitárias da população do próprio país, sejam os
países não-totalitários do exterior. Essa área externa à qual a propaganda totalitária dirige o seu
apelo pode variar grandemente; mesmo depois da tomada do poder, a propaganda totalitária
pode ainda dirigir-se àqueles segmentos da própria população cuja coordenação não foi seguida
de doutrinação suficiente. Nesse ponto, os discursos de Hitler aos seus generais, durante a
guerra, são verdadeiros modelos de propaganda, caracterizados principalmente pelas
monstruosas mentiras com que o Führer entretinha os seus convidados na tentativa de conquistá-los.[4] A esfera externa pode
também ser representada por grupos de simpatizantes que ainda não estejam preparados para
aceitar os verdadeiros alvos do movimento. E, em muitos casos, até mesmo certos membros do
partido são considerados, pelo círculo íntimo do Führer ou pelos membros das formações de
elite, como pertencentes a essa esfera externa e ainda necessitados de propaganda, já que não
podem ainda ser dominados com segurança. Para que não se subestime a importância das
mentiras da propaganda, convém lembrar os muitos casos em que Hitler foi completamente
sincero e brutalmente claro na definição dos verdadeiros objetivos do movimento, os quais, no
entanto, simplesmente deixaram de ser percebidos pelo público, despreparado para tamanho
despropósito.[5] Basicamente, porém, o domínio totalitário procura restringir os métodos propagandísticos unicamente à sua política externa ou às ramificações do movimento no exterior, a
fim de lhes fornecer material adequado. Sempre que a doutrinação totalitária no país de origem
entra em conflito com a linha de propaganda para consumo externo (como sucedeu na Rússia,
durante a guerra, não quando Stálin se aliou a Hitler, mas quando a guerra com Hitler fê-lo
passar para o lado das democracias), a propaganda é explicada no país de origem como
temporária "manobra tática".[6] Na medida do possível, estabelece-se, logo na fase anterior à
tomada do poder, a diferença entre a doutrina ideológica destinada aos iniciados do movimento,
que já não precisam de propaganda, e a propaganda para o mundo exterior. A relação entre a
propaganda e a doutrinação depende do tamanho do movimento e da pressão externa. Quanto menor o movimento, mais energia
despenderá em sua propaganda. Quanto maior for a pressão exercida pelo mundo exterior sobre
os regimes totalitários — pressão que não é possível ignorar totalmente mesmo atrás da "cortina
de ferro" — mais ativa será a propaganda totalitária. O fato essencial é que as necessidades da
propaganda^ são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si mesmos, os movimentos não
propagam, e sim doutrinam. Por outro lado, a doutrinação, inevitavelmente aliada ao terror,
cresce na razão direta da força dos movimentos ou do isolamento dos governantes totalitários
que os protege da interferência externa.
A propaganda é, de fato, parte integrante da "guerra psicológica"; mas o terror o é mais. Mesmo
depois de atingido o seu objetivo psicológico, o regime totalitário continua a empregar o terror;
o verdadeiro drama é que ele é aplicado contra uma população já completamente subjugada.
Onde o reino do terror atinge a perfeição, como nos campos de concentração, a propaganda
desaparece inteiramente; na Alemanha nazista, chegou a ser expressamente proibida.[7] Em outras
palavras, a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante,
para enfrentar o mundo não-totalitário; o terror, ao contrário, é a própria essência da sua forma
de governo. Sua existência não depende do número de pessoas que a infringem.
O terror como substituto da propaganda alcançou maior importância no nazismo do que no
comunismo. Os nazistas não cometeram atentados contra personalidades importantes como
havia acontecido anteriormente em ondas de crimes políticos na Alemanha (assassinatos de
Rathenau e de Erzberger); em vez disso, matavam pequenos funcionários socialistas ou
membros influentes dos partidos inimigos, procurando mostrar à população o perigo que podia
acarretar o simples fato de pertencer a um partido. Esse tipo de terror dirigido contra a massa era
valioso no sentido daquilo que um autor nazista chamou adequadamente de "propaganda de
força",[8] e aumentou progressivamente porque nem a polícia nem os tribunais processavam
seriamente os criminosos políticos da chamada Direita. Para a população em geral, tornava-se
claro que o poder dos nazistas era maior que o das autoridades, e que era mais seguro pertencer
a uma organização paramilitar nazista do que ser um republicano leal. Essa impressão foi
grandemente reforçada pelo uso específico que os nazistas fizeram dos seus crimes políticos.
Sempre os confessavam publicamente, nunca se desculpavam por "excessos dos escalões
inferiores" — essas justificativas eram usadas apenas pelos simpatizantes do nazismo — e
impressionavam a população por serem muito diferentes dos "meros faladores" dos outros partidos.
As semelhanças entre esse tipo de terror e o simples banditismo são claras demais para serem
enumeradas. Isto não significa que o nazismo era banditismo, como às vezes se diz, mas apenas que os
nazistas, sem o confessarem, aprenderam tanto com as organizações dos gângsteres americanos quanto a
sua propaganda, confessadamente, aprendeu com a publicidade comercial americana.
Contudo, o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os crimes contra
indivíduos é o uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem
ouvidos aos seus ensinamentos, seguidas de assassinato em massa perpetrado igualmente contra
"culpados" e "inocentes". A propaganda comunista ameaça as pessoas com a possibilidade de perderem o
trem da história, de se atrasarem irremediavelmente em relação ao tempo, de esbanjarem as suas vidas
inutilmente, tal como os nazistas as ameaçavam com uma existência contrária às eternas leis da natureza e
da vida e com uma irreparável e misteriosa degeneração do sangue. A forte ênfase que a propaganda
totalitária dá à natureza "científica" das suas afirmações tem sido comparada a certas técnicas
publicitárias igualmente dirigidas às massas. De fato, os anúncios mostram o "cientificismo" com que um
fabricante "comprova" — com fatos, algarismos e o auxílio de um departamento de "pesquisa" — que o
seu "sabonete é o melhor do mundo".[9] Também é verdade que há um certo elemento de violência nos
imaginosos exageros publicitários; por trás da afirmação de que as mulheres que não usam essa
determinada marca de sabonete podem viver toda a vida espinhentas e solteironas, há um arrojado sonho
monopolista, o sonho de que, algum dia, o fabricante do "único sabonete que evita espinhas" tenha o
poder de privar de maridos todas as mulheres que não o usem. Tanto no caso da publicidade comercial
quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do poder. A obsessão dos
movimentos totalitários pelas demonstrações "científicas" desaparecem assim que eles assumem o poder.
Os nazistas dispensaram até mesmo os eruditos que procuraram servi-los, e os bolchevistas usam a
reputação dos seus cientistas para finalidades completamente não-científicas, transformando-os em
charlatães.
Mas cessa aí a semelhança, frequentemente exagerada, entre a publicidade e a propaganda de massa. Os
homens de negócio geralmente não se arrogam a profetas e não demonstram constantemente a correção
de suas predições. O cientificismo da propaganda totalitária é caracterizado por sua insistência quase
exclusiva na profecia "científica", em contraposição com o apelo ao passado, já fora de moda. Nunca se
percebe tão claramente a origem ideológica do socialismo e do racismo como quando os seus porta-vozes
alegam ter descoberto as forças ocultas que lhe trarão boa sorte na "corrente da fatalidade". As massas sentem-se naturalmente
atraídas pelos "sistemas absolutistas que pretendem ver todos os eventos da história dependentes das
grandes causas originais ligadas pela corrente da fatalidade, como que eliminando os homens da história
dá raça humana" (Tocqueville). Mas não se pode duvidar que a liderança nazista realmente acreditava
em doutrinas como a que segue, e não as usava apenas como propaganda: "Quanto mais fielmente
reconhecemos e seguimos as leis da natureza e da vida, (...) tanto mais nos conformamos ao desejo do
Todo-Poderoso. Quanto melhor conhecermos o desejo do Todo-Poderoso, maior será o nosso sucesso".[10] É evidente que o credo de Stálin pode ser expresso em duas sentenças muito parecidas: "Quanto mais
fielmente reconhecemos e observamos as leis da história e da luta de classes, mais nos conformamos ao
materialismo dialético. Quanto mais conhecermos o materialismo dialético, maior será o nosso sucesso".[11]
A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um
ponto antes ignorado de eficiência metódica é absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista
demagógico, a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de verificação no
presente e afirmar que é o futuro lhe revelará os méritos, Contudo, não foram as ideologias totalitárias
que inventaram esse método e não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de
massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado
como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da
matemática e da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um
processo durante o qual "a ciência [tornou-se} um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da
existência e transforma a natureza do homem".[12] Realmente, há uma antiga ligação entre o cientificismo e
o surgimento das massas. O "coletivismo" das massas foi acolhido de bom grado por aqueles que viam no
surgimento de "leis naturais do desenvolvimento histórico" a eliminação da incômoda imprevisibilidade
das ações e da conduta do indivíduo.[13] Cita-se o exemplo de Enfantin, que pressentia a chegada do
"tempo em que a arte de movimentar as massas estará tão perfeitamente desenvolvida que o pintor, o músico e o poeta terão o poder de agradar e comover
com a mesma certeza com que os matemáticos resolvem um problema geométrico ou um
químico analisa qualquer substância". Talvez tenha sido nesse instante que nasceu a propaganda
moderna.[14] Contudo, quaisquer que sejam as falhas do positivismo, do pragmatismo e do behaviorismo e
por maior que seja a sua influência na formação do tipo de bom senso característico do século
XIX, não é de modo algum "o produto canceroso do segmento utilitário da existência"[15] que
caracteriza as massas atraídas pela propaganda totalitária e pelo cientificismo. A convicção dos
positivistas, como a conhecemos através de Comte, de que b futuro pode vir a ser previsto
cientificamente repousa na crença de que o interesse é a força que existe por trás de tudo na
história, e na pressuposição de que o poder tenha leis objetivas que podem ser descobertas. O
cerne do utilitarismo moderno, positivista ou socialista, é a teoria política de Rohan, de que "os
reis comandam os povos e os interesses comandam os reis", de que o interesse objetivo é a
"única [lei] que não falha", e de que, "mal ou bem compreendido, o interesse é responsável pela
existência e pelo desaparecimento dos governos". Mas nenhuma dessas teorias aceita a
possibilidade de "transformar a natureza do homem", como o totalitarismo realmente procura
fazer. Pelo contrário, implícita ou explicitamente, todas presumem que a natureza do homem é
sempre a mesma, que a história é o relato de circunstâncias, e que o interesse, corretamente
compreendido, pode levar a uma mudança de circunstâncias, mas não à mudança das reações
humanas em si. O "cientificismo" da política ainda pressupõe que o bem-estar humano é a sua
finalidade, conceito que é completamente alheio ao totalitarismo.[16]
Exatamente porque se supunha que as ideologias tivessem um natural conteúdo utilitário, a
conduta anti utilitária dos governos totalitários e a sua completa indiferença pelo interesse da
massa causaram um choque tão
profundo. Essa conduta introduziu na política contemporânea
um elemento de imprevisibilidade até então desconhecido. Contudo, a propaganda totalitária já
havia indicado, antes mesmo que o totalitarismo tomasse o poder, até que ponto as massas se
haviam afastado da preocupação pelo seu próprio interesse. Assim, não se justificava a suspeita
dos aliados de que a matança dos loucos, ordenada por Hitler no começo da guerra, fosse ditada
pelo desejo de eliminar bocas desnecessárias.[17] Hitler não foi forçado pela guerra a atirar pelos
ares todas as considerações de ordem ética, mas sim considerava a carnificina da guerra uma
excelente oportunidade para dar início a um programa de assassinatos que, como todos os outros
pontos do seu programa, se media em termos de milênios.[18] Como virtualmente toda a história
europeia, durante muitos séculos, havia ensinado o povo a julgar cada ação política por seu cui
bono [proveito, vantagem] e todos os acontecimentos políticos por seus interesses subjacentes,
estava-se agora subitamente diante de um elemento de imprevisibilidade sem precedentes.
Dadas as suas características demagógicas, a propaganda totalitária — que, muito antes da
tomada do poder, mostrava claramente quão pouco as massas de deixavam motivar pelo famoso
instinto de auto conservação — não foi tomada a sério. Mas o sucesso da propaganda totalitária
não se deve tanto à sua demagogia quanto ao conhecimento de que o interesse, como força
coletiva, só se faz sentir onde um corpo social estável proporciona a necessária conexão motora
entre o indivíduo e o grupo; nenhuma propaganda baseada no mero interesse pode ser eficaz
entre as massas, já que a sua característica prin-cipati não pertencerem a nenhum corpo social
ou político e constituírem, por; tanto, um verdadeiro caos de interesses individuais. O fanatismo
dos membros dos movimentos totalitários, cuja intensidade difere tão claramente da lealdade
dos membros dos partidos comuns, resulta exatamente da falta de egoísmo interesseiro dos
indivíduos que formam as massas e que estão perfeitamente dispostos a se sacrificarem pela
ideia. Os nazistas demonstraram que se pode levar todo um povo à guerra com o lema "de outra
forma pereceremos" (o que a propaganda de guerra evidentemente evitou em 1914), mesmo em
época que não seja de miséria, de desemprego ou de frustradas ambições nacionais. O mesmo
espírito prevaleceu durante os últimos meses de uma guerra obviamente perdida, quando a
propaganda nazista consolou a população, já grandemente atemorizada, com a promessa de que
o Führer, "em sua sabedoria, havia preparado uma morte suave para o povo alemão, por meio
de gás, em caso de derrota".[19]
Os movimentos totalitários empregam o socialismo e o racismo esva-ziando-os do seu conteúdo
utilitário, dos interesses de uma classe ou de uma nação. A forma de predição infalível sob a
qual esses conceitos são apresentados é mais importante que o seu conteúdo.[20] A principal qualificação de um líder de massas é a sua
infinita infalibilidade; jamais pode admitir que errou[21] Além disso a pressuposição de
infalibilidade baseia-se não tanto na inteligência superior quanto na correta interpretação de
forças históricas ou naturais essencialmente seguras, forças que nem a derrota nem a ruína
podem invalidar porque, a longo prazo, tendem a prevalecer.[22] Uma vez no poder, os líderes da
massa cuidam de algo que está acima de quaisquer considerações utilitárias: fazer com que as
suas predições se tornem verdadeiras. Os nazistas não hesitaram em lançar mão, no fim da
guerra, de toda a força da sua organização ainda intacta para destruir a Alemanha do modo mais
completo possível, a fim de que fosse verdadeira a sua predição de que o povo alemão seria
arruinado em caso de derrota.
Projeto propagandístico da infalibilidade, o extraordinária sucesso que decorre da humilde pose
de mero agente interpretador de forças previsíveis, estimulou nos ditadores totalitários o hábito
de anunciar as suas intenções políticas sob a forma de profecias. O exemplo mais famoso é o
anúncio que Hitler fez ao Reichstag alemão em janeiro de 1939: "Desejo hoje mais uma vez
fazer uma profecia: caso os financistas judeus (...) consigam novamente arrastar os povos a uma
guerra mundial o resultado será (...) a aniquilação da raça judaica na Europa".[23] Traduzido em
linguagem não-totalitária, isso significa: pretendo travar uma guerra e pretendo matar os judeus
da Europa. Da mesma forma, Stálin, no discurso proferido perante o Comitê Central do Partido
Comunista em 1930, ao descrever os seus dissidentes no partido como representantes de
"classes agonizantes",[24] abriu o caminho para a sua eliminação física. Em estilo totalitário, essa
definição anunciava a destruição física daqueles cuja "agonia" acabava de ser profetizada. Em ambos os casos, consegue-se o mesmo objetivo: o extermínio
vira processo histórico no qual o homem apenas faz ou sofre aquilo que, de acordo com leis
imutáveis, sucederia de qualquer modo. Assim que as vítimas são executadas, a "profecia"
transforma-se em álibi retrospectivo: o que sucedeu foi apenas o que havia sido predito.[25] Pouco
importa se "leis históricas" acarretam a "ruína" de certas classes e de seus representantes, ou se
"leis naturais (...) exterminam" todos aqueles elementos — democracias, judeus, sub homens
[Untermenschen] do Leste europeu, ou doentes incuráveis — que, de qualquer forma, não são
"dignos de viver". Por sinal, Hitler também mencionou "classes agonizantes" que deviam ser
"eliminadas sem mais problemas".[26]
Qualquer outro método da propaganda totalitária, só é infalível depois que os movimentos
tomam o poder. A essa altura, discutir a verdade ou a mentira da predição de um ditador
totalitário é tão insensato como discutir com um assassino em potencial se a sua próxima vítima
está morta ou viva — pois, matando a pessoa em questão, o assassino pode prontamente
demonstrar que a sua afirmação era correta. O único argumento válido nessas ocasiões seria a
imediata salvação da pessoa cuja morte é profetizada. Antes que os líderes das massas tomem
o poder para fazer com que a realidade se ajuste às mentiras quê" proclamam, sua propaganda
exibe extremo desprezo pelos fatos em si, pois, na sua opinião, os fatos dependem
exclusivamente do poder do homem que os inventa.[27] A afirmação de que o metrô de Moscou é o
único do mundo só é falsa enquanto os bolchevistas não puderem destruir os outros. Em outras
palavras, o método da predição infalível, mais que qualquer outro expediente da propaganda
totalitária, revela o seu objetivo último de conquista mundial, pois somente num mundo
inteiramente sob o seu controle pode o governante totalitário dar realidade prática às suas
mentiras e tornar verdadeiras todas as suas profecias.
A linguagem do cientificismo profético correspondia às necessidades (ias massas que haviam
perdido o seu lugar no mundo e, agora, estavam preparadas para se reintegrar nas forças eternas
e todo-poderosas que, por si, impeliriam o homem, nadador no mar da adversidade, para praia segura. "Moldamos a mente do nosso povo
e a nossa legislação segundo o veredicto da genética",[28] afirmaram os nazistas, do mesmo modo
como os bolchevistas asseguraram aos seus seguidores que as forças econômicas têm o poder de
um veredicto histórico. Assim, prometiam uma vitória que não dependia de derrotas e fracassos
"temporários". Pois as massas, em contraste com as classes, desejam a vitória e o sucesso em si
mesmos, em sua forma mais abstrata; não as unem quaisquer interesses coletivos especiais que
considerem essenciais à sua sobrevivência como um grupo e pelos quais, portanto, poderiam
lutar contra a adversidade. Mais importante que a causa que venha a ser vitoriosa ou o
empreendimento que tenha possibilidades de vencer, é para elas a vitória em não importa que
causa e o sucesso em não importa que empreendimento.
continua página 400...
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Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {1a} A Propaganda Totalitária)
________________[1] Ver, por exemplo, E. Kohn-Bramstedt: em Dictatorship andpoliticalpolice: the techni-que ofcontrol byfear,
Londres, 1945, pp. 164 ss, afirma que "o terror sem a propaganda perderia muito do seu efeito psicológico, enquanto
a propaganda sem o terror cresce de impacto" (p. 175). O que não é considerado nessa e em outras declarações, que
na sua maioria andam em círculos, é o fato de que não apenas a propaganda política mas toda a moderna publicidade
de massa contêm um elemento de ameaça; que o terror, por outro lado, pode ser totalmente efetivo sem a propaganda,
desde que se trate apenas do terror político convencional da tirania. Somente quando o terror objetiva coagir não
apenas de fora mas, como foi o caso, de dentro, quando o regime político quer mais do que poder, somente então o
terror precisa da propaganda. Nesse sentido, o teórico nazista, Eugen Hadamovsky, pôde dizer em Propaganda und
nationale Macht [Propaganda e poder nacional], 1933: "A propaganda e a violência nunca são contraditórias. O uso
da violência pode ser parte da propaganda" (p. 22).
[2] "Quando se anunciou oficialmente que o desemprego havia sido eliminado na Rússia soviética, foram realmente
eliminados como resultado desse sintoma todos os benefícios para os desempregados". (Anton Ciliga, The Russian
enigma, Londres, 1940, p. 109.)
[3] A chamada "Operação Feno" começou com um decreto datado de 16 de fevereiro de 1942, assinado por Himmler,
"referente [a indivíduos] de raça germânica na Polônia". Segundo o decreto, as crianças de características "arianas"
deveriam ser enviadas a famílias alemãs "dispostas [a aceitá-las] sem reserva, por amor ao bom sangue que elas têm"
(Documento de Nurembergue R 135). Parece que, em junho de 1944, o Nono Exército sequestrou aproximadamente
40 mil a 50 mil crianças, transportando-as para a Alemanha. Um relatório sobre o assunto, remetido ao Estado-Maior
Geral da Wehrmacht em Berlim por um funcionário chamado Brandenburg, menciona planos semelhantes para a
Ucrânia (Documento PS 031, publicado por Léon Poliakov em Bréviaire de Ia haine, p. 317). O próprio Himmler fez
várias referências a esse plano. (Ver Nazi conspiracy and aggression, Office of the United States Chief of Counsel for
the Prosecution of Axis Criminality, U. S. Government, Washington, 1946, III, 640, que contém excertos do discurso
de Himmler proferido em Cracóvia em março de 1942; ver também os comentários sobre o discurso de Himmler em
Bad Schachen, de 1943, em Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 244.) O modo de selecionar essas crianças pode ser deduzido
pelos certificados médicos emitidos pela Seção Médica II em Minsk, na Bielo-Rússia, em 10 de agosto de 1942: "O
exame racial de Natalie Harpf, nascida a 4 de agosto de 1922, mostrou uma jovem normalmente desenvolvida, de tipo
predominantemente báltico-oriental com traços nórdicos" — "Exame de Arnold Coenies, nascido a 19 de fevereiro de
1930, mostrou um garoto normalmente desenvolvido, de doze anos de idade, de tipo predominantemente oriental com
traços nórdicos". Assinado: N. Wc. (Documento nos arquivos do Yiddish Scientific Institute, Nova York,n?OccE3a
17.)
Quanto ao extermínio da intelectualidade polonesa, que, na opinião de Hitler, podia ser "liquidada sem escrúpulos",
ver Poliakov, op. cit., p. 321, e Documento NO 2471.
[4] Ver Hitlers Tischgespráche. No verão de 1942, ele ainda fala de expulsar "até o último judeu para fora da Europa" (p. 113), e de
reinstalá-los na Sibéria ou na África (p. 311) ou em Madagascar, quando, na realidade, muito antes de invadir a Rússia,
provavelmente em 1940, já havia tomado a decisão quanto à "solução final" e havia mandado construir as câmaras de gás no outono
de 1941 (ver Nazi conspiracy and aggression, II, pp. 265 ss; III, pp. 783 ss. Documento PS 1104; V, pp. 322 ss. Documento PS
2605). Na primavera de 1941, Himmler já sabia que "os judeus [devem ser] exterminados [pois] este é o desejo e ordem inequívoca
do Führer" (Dossiê Kersten no Centre de Documentation Juive).
[5] A esse respeito, há um relatório muito interessante, datado de 16 de julho de 1940, sobre uma discussão no quartel-general do
Führer na presença de Rosenberg, Lammers e Keitel, a que Hitler deu início declarando os seguintes "princípios básicos": "Era
essencial então não exibir nosso objetivo ulterior aos olhos de todo o mundo; (...) Portanto, não deve ficar óbvio que os decretos que
mantenham ordem nos territórios ocupados levem à solução final Idos judeus]. Todas as medidas necessárias — execuções,
transferências de população etc. — podem ser e serão executadas apesar da letra dos decretos". Segue-se uma discussão que não faz
qualquer referência às palavras de Hitler e da qual Hitler já não participa. Ê óbvio que ele não foi "compreendido" (Documento L
221 no Centre de Documentation Juive, Paris).
[6] Quanto à convicção de Stálin de que Hitler não atacaria a Rússia, ver Isaac Deutscher, Stálin: a political biography, Nova York,
Londres, 1949, pp. 454 ss, e especialmente a nota ao pé da página 458: "Foi somente em 1948 que o chefe da Comissão de
Planejamento do Estado, o vice-premiê N. Voznessensky, revelou que os planos econômicos para o terceiro trimestre de 1941
haviam sido baseados na premissa de que haveria paz, sendo que um novo plano, adequado à guerra, só havia sido elaborado após o
início das hostilidades". A suposição de Deutscher foi confirmada por relato de Khrushchev quanto à reação de Stálin ao ataque
alemão contra a União Soviética. (Ver o seu "Discurso sobre Stálin" no Vigésimo Congresso, transcrito pelo New York Times, 5 de
junho de 1956.)
[7] "A educação [nos campos de concentração] consiste em disciplina e nunca em instrução baseada na ideologia, uma vez
que os prisioneiros em sua maioria têm almas de escravos" (Heinrich Himmler, Nazi conspiracy, IV, 616 ss).
[8] Eugen Hadamovsky, op. cit., é um dos mais importantes autores na literatura sobre propaganda totalitária. Sem o dizer
explicitamente, Hadamovsky oferece uma inteligente e reveladora interpretação pró-nazista da exposição do próprio Hitler
sobre o assunto em "Propaganda e organização", no livro II, capítulo xi, de Mein Kampf (2 vols., 1? edição alemã, 1925 e
1927 respectivamente). Ver também F. A. Six, Die politische Propaganda der NSDAP im Kampf um die Machtl. A propaganda
política do NSDAP na luta pelo poder], 1936, pp. 21 ss.
[9] A análise de Hitler da "Propaganda de guerra" (Mein Kampf, livro I, cap. vi) acentua o lado comercial da
propaganda e usa exatamente o exemplo da publicidade de sabonetes. Sua importância tem sido geralmente
superestimada, enquanto suas positivas ideias posteriores sobre "Propaganda e organização" foram negligenciadas.
[10] Ver o importante memorando de Martin Borman sobre "A relação entre o nacional-socialismo e o cristianismo"
em Nazi conspiracy, VI, 1036 ss. Formulações semelhantes se repetem com frequência na literatura panfletária
publicada pela SS para a "doutrinação ideológica" de seus cadetes. "As leis da natureza estão sujeitas a uma vontade
imutável que não pode ser influenciada. Daí ser necessário reconhecer essas leis" ("SS-Mann und Blutsfrage" [O SS e
a questão do sangue], emSchriftenreihefürdieweltanschaulicheSchulung der Ordnungspolizei [Escritos para a
instrução ideológica da policia], 1942). Todas elas são meras variações de certas frases extraídas de Mein Kampf, de
Hitler, das quais esta é citada como lema para o panfleto que acabamos de mencionar: "Quando o homem tenta lutar
contra a lógica de ferro da natureza, entra em conflito com os princípios básicos aos quais deve a sua própria
existência como homem".
[11] J. Stálin, Leninism (1933), vol. II, capítulo iii.
[12] Eric Voegelin, "The origins of scientism", em Social Research, dezembro de 1948.
[13] Ver F. A. v. Hayek, "The counter-revolution of science", em Econômica, vol. VIII (fevereiro, maio, agosto de
1941), p. 13.
[14] Ibid., p. 137. A citação é da revista saint-simonista Producteur, I, p. 399.
[15] Voegelin, op. cit.
[16] William Ebenstein, The Nazi state, Nova York, 1943, quando discute a permanente economia de guerra do
Estado nazista é praticamente o único crítico a compreender que "a interminável discussão (...) quanto à natureza
socialista ou capitalista da economia alemã sob o regime nazista é em grande parte artificial, (...) [porque] tende a
esquecer o fato vital de que tanto o capitalismo quanto o socialismo são categorias pertinentes à economia de bem
estar ocidental" (p. 239).
[17] Nesse contexto, é característico o testemunho de Karl Brandt,~um dos médicos encarregados por Hitler de
executar o programa de eutanásia (Medicai tryil. US against Karl Brandi et ai. Hearing of May 14, 1947). Brandt
protestou violentamente contra a suspeita de que o projeto
[18] O decreto decisivo que originou todos os assassínios em massa subsequentes foi assinado por Hitler a 1? de
setembro de 1939 — no dia em que foi declarada a guerra à Polônia — e se refere não aos loucos apenas (como se
supõe erradamente muitas vezes) mas a todos os que eram "doentes incuráveis". Os loucos foram apenas os primeiros
a morrer.
[19] Ver Friedrich Percyval Reck-Malleczewen, Tagebuch eines Verzweifelten [Diário de um desesperado],
Sttutgart, 1947, p. 190.
[20] Hitler baseava a superioridade, dos movimentos ideológicos em relação aos partidos políticos no fato de que as
ideologias (Weltanschsmungen) sempre "proclamam sua infalibilidade" (A/em Kampf, livro II, capítulo v, "Weltanschauung
e organização"). As primeiras páginas do manual oficial da Juventude Hitlerista (The Naziprimer, Nova York, 1938)
acentuam consequentemente que todas as questões de Weltanschauung, antes consideradas "irrealistas" e
"incompreensíveis", "se tornaram tão claras, simples e definidas [o grifo é meu] que qualquer um dos nossos camaradas
pode entendê-las e cooperar na sua solução".
[21] O primeiro dos "juramentos do membro do Partido", enumerados pelo Organisations-buch der NSDÀP, diz: "O Führer
sempre tem razão". Edição publicada em 1936, p. 8. Mas o Dienstvorschrift für die P. D. der NSDAP, 1932, p. 38, assim se
exprime: "A decisão de Hitler é final!" Note-se a grande diferença de fraseologia.
"A pretensão de serem infalíveis, [o fato de que] nenhum deles jamais sinceramente admitiu um erro", eis a diferença
decisiva entre Stálin e Trótski, de um lado e Lênin, de outro. Ver Boris Souvarine, Stálin: a criticai survey ofBolshevism,
Nova York, 1939, p. 583.
[22] É óbvio que a dialética hegeliana constitui maravilhoso instrumento para que sempre se tenha razão, uma vez que
permite a interpretação de todas as derrotas como o começo da vitória. Um dos mais belos exemplos desse tipo de sofisma
ocorreu após 1933, quando os comunistas alemães, durante quase dois anos, recusaram-se a reconhecer que a vitória de
Hitler havia sido uma derrota para o Partido Comunista Alemão.
[23] Ver Goebbels: The Goebbels diaries (1942-1943), editados por Louis Lochner, Nova York, 1948, p. 148.
[24] Stálin, op. cit., loc. cit.
[25] Num discurso que pronunciou em setembro de 1942, quando o extermínio dos judeus estava em pleno andamento,
Hitler referiu-se explicitamente ao seu discurso de 30 de janeiro de 1939 (publicado como folheto com o título Der Führer vor
dem ersten Reichstag Grossdeutchlands [O Führer diante do primeiro Parlamento da Grande Alemanha], 1939) e à sessão do
Reichstag de 1? de setembro de 1939, quando anunciou que, "se o povo judeu instigasse o mundo internacional a exterminar
os povos arianos da Europa, não os povos arianos, mas os judeus seriam [resto da frase abafado pelos aplausos]" (ver Der
Führer zum Kriegswinterhilfswerd, Schriften NSV, n? 14, p. 33).
[26] No discurso de 30 de janeiro de 1939, cf. citado acima.
[27] Konrad Heiden, De Fuehrer: Hitlers rise topower, acentua a "fenomenal deslealdade" de Hitler, "a falta de realidade
demonstrável em quase todos os seus pronunciamentos", a sua "indiferença pelos fatos, que ele não considerava vitalmente
importantes" (pp. 368, 374). Em termos quase idênticos, Khrushchev descreve "a relutância de Stálin em levar em conta as
realidades da vida" e a sua indiferença "quanto ao verdadeiro estado das coisas", op. cit. O melhor exemplo da opinião de
Stálin quanto à importância dos fatos são as revisões a que ele periodicamente submetia a história da Rússia.
[28] Do Manual da Juventude Hitlerista (Hitlerjugend).
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