A Montanha Mágica
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
(continuação)
...
Hans Castorp corou.
– As coisas – prosseguiu com um sorriso amarelo – apresentam-se aqui sob um aspecto
diferente do normal. O espírito que reina neste lugar, se me posso expressar assim, não é o
espírito convencional. O doente tem a primazia, quer seja homem quer seja mulher. O senhor
está passageiramente indisposto, Mynheer Peeperkorn. Trata-se de uma indisposição aguda, de
uma coisa atual. A sua companheira de viagem está melhor, em comparação. Creio agir de acordo
com as intenções de madame, quando na ausência dela o substituo um pouquinho aqui – se é que
num caso desses pode haver substituição, ah, ah – em vez de representar o senhor junto dela e de
lhe oferecer a minha companhia no caminho para a vila. Com que direito imporia eu os meus
serviços de cavalheiro à sua companheira de viagem? Para isso me faltam títulos e autorização.
Posso afirmar que tenho um senso sadio dos direitos positivos. Numa palavra, acho que a minha
situação é correta; ela corresponde ao estado geral das coisas, e sobretudo corresponde aos
sentimentos sinceros que tenho pela sua pessoa, Mynheer Peeperkorn. Com isso creio que a sua
pergunta – o senhor acaba de fazer uma pergunta, não? – recebeu uma resposta satisfatória.
– Uma resposta muito agradável – replicou Peeperkorn. – Ouço com sincero prazer as
suas frases leves e ágeis, meu caro jovem. Elas saltam por cima de todos os obstáculos, e
removem de um modo simpático as arestas das coisas. Mas satisfatória? Não, a sua resposta não
me satisfaz. Desculpe-me se com isso lhe causo uma decepção. “Rigoroso”, meu caro amigo! Há
poucos instantes o senhor empregou esse termo com referência a certas concepções que eu
acabava de expor. Mas também nas suas palavras há um certo rigorismo, uma austeridade, uma
atitude forçada, que não me parecem em harmonia com a sua natureza, se bem que, em certo
sentido, já os tenha encontrado na sua conduta. Durante os nossos passeios e outros
empreendimentos que realizamos em comum, o senhor costuma tomar essa mesma atitude em
face de madame, e de mais ninguém. Isto o senhor me deve explicar. É um dever, jovem, uma
obrigação! Não me engano. Vi a minha observação confirmada em muitas ocasiões. É
improvável que outras pessoas não a tenham feito também, com a única diferença de que elas
talvez, ou mesmo provavelmente, saibam a razão desse fenômeno.
Essa tarde, Mynheer proferia períodos extraordinariamente precisos e acabados, apesar
do cansaço causado pela febre maligna. Quase não havia incoerências. Meio sentado na cama,
voltava para o visitante os imponentes ombros e a grandiosa cabeça; estendia um dos braços por
cima da colcha, e a mão sardenta de capitão, saindo verticalmente do punho da manga de lã,
exibia aquele característico anel da exatidão, flanqueado pelos dedos lanciformes, enquanto a
boca formava frases tão claras, tão incisivas e mesmo tão plásticas, que o próprio Sr. Settembrini
deveria ter ficado contente. Os “erres” de palavras como “provavelmente” ou “razão” eram
guturais e carregados.
– O senhor está sorrindo – continuou. – Pisca os olhos e vira a cabeça de cá para lá.
Parece entregar-se a reflexões sem resultado positivo. E todavia não há nenhuma dúvida de que
sabe a que me refiro e de que se trata. Não quero dizer que nunca dirija a palavra a madame ou lhe
fique devendo a resposta, quando a ocasião requer o contrário. Mas repito que o faz de modo
forçado, ou para ser mais exato: esquiva-se, evita alguma coisa, e quando se observa mais de
perto, vê-se que esta coisa é um determinado tratamento. Quanto ao seu procedimento, tem-se a
impressão de que o senhor fez uma aposta, de que partilhou uma filipina com madame, e não
pode, segundo as condições estipuladas, dirigir-lhe diretamente a palavra. Como consequência
lógica disso, evita qualquer forma de tratamento. Nunca lhe diz “a senhora”.
– Mas, Mynheer Peeperkorn... Que filipina seria essa?
– Posso chamar a sua atenção para o fato que o senhor certamente notou também: acaba
de empalidecer até os lábios.
Hans Castorp não ergueu o olhar. Inclinado para a frente, ocupava-se intensamente com
as manchas vermelhas no lençol. “Isso tinha que acontecer!”, pensou. “Tudo tendia nessa
direção. Acho que eu mesmo fiz o que estava a meu alcance para que chegássemos a este ponto.
Em certo sentido, tinha isso em mira, como percebo agora. Será que realmente empalideci? É
possível, porque está iminente o momento decisivo. Não se sabe o que acontecerá. Posso ainda
mentir? Poderia, mas não quero. Por enquanto continuarei olhando essas manchas de sangue,
essas manchas de vinho tinto no lençol...”
De cima dele também não vinha palavra alguma. O silêncio prolongou-se por dois ou três
minutos, tornando perceptível a enorme extensão que essas unidades minúsculas podem adquirir
em tais circunstâncias.
Quem reencetou a conversa foi Pieter Peeperkorn.
– Naquela noite em que tive o prazer de travar conhecimento com o senhor – começou
em tom cantante, baixando a voz como se terminasse a primeira frase de uma longa história. –
Acabávamos de celebrar uma pequena festa. Havíamos saboreado comidas e bebidas. A altas
horas da noite, numa disposição animada, com o espírito livre e empreendedor, dirigíamo-nos, de
braços dados, para os nossos quartos. Sucedeu então o seguinte: diante desta minha porta, no
momento da despedida, ocorreu-me a idéia de convidar o senhor a tocar com os lábios a fronte
da mulher que o tinha apresentado a mim como um bom amigo de uma temporada anterior, e de
deixar ao critério dela se queria retribuir, na minha presença, esse ato solene e alegre, como
consagração da hora sublime. O senhor rejeitou redondamente a minha sugestão; rejeitou-a
alegando que lhe parecia absurdo trocar beijos na fronte com a minha companheira de viagem. O
senhor não vai negar que aquilo era uma explicação que por sua vez necessitava de um
comentário, e esse comentário o senhor me ficou devendo até agora. Está o senhor disposto a
pagar essa dívida?
“Ora, ora, ele percebeu até isso”, pensou Hans Castorp e pôs-se a estudar ainda mais
intensamente as manchas de vinho, chegando até a arranhar uma com a ponta curva do dedo
médio. “Pode ser que naquele instante eu desejasse, no fundo do coração, que ele percebesse e
tomasse nota do fato. Caso contrário, eu não teria dito essas coisas. Mas que haverá agora? Meu
coração bate violentamente. Terei de enfrentar uma enorme explosão de fúria real? Quem sabe se
eu não faria bem em vigiar o seu punho, que talvez já esteja erguido por cima da minha cabeça?
Uma situação esquisitíssima e sumamente crítica, essa em que me encontro.”
De chofre sentiu a mão de Peeperkorn agarrar-lhe o pulso direito.
“Agora me pega pelo pulso!”, pensou. “Que bobagem, ora essa! Por que me comporto
aqui como um cão surrado? Cometi alguma falta contra ele? Nenhuma. O primeiro que teria
direito de se queixar seria aquele homem em Daghestan. E depois mais este ou aquele. E
finalmente eu mesmo. Ao que saiba, ele não tem motivo nenhum para queixar-se. Pois então, por
que meu coração bate tanto? Já é tempo que me aprume e olhe franca, mas também
reverentemente, para o seu rosto majestoso.”
Foi o que fez. O rosto majestoso estava amarelo. Os olhos pareciam apagados sob o
enrugamento içado da testa. Os lábios gretados mostravam uma expressão amarga. Um lia nos
olhos do outro, o grande ancião e o jovem insignificante, enquanto um prosseguia segurando o
pulso do outro. Finalmente Peeperkorn disse em voz baixa:
– O senhor foi amante de Clávdia durante a outra temporada.
Hans Castorp mais uma vez inclinou a cabeça, mas logo voltou a levantá-la, respondendo,
depois de respirar profundamente:
– Mynheer Peeperkorn! Repugna-me no mais alto grau mentir-lhe. Esforço-me por
encontrar uma possibilidade de evitar esse recurso. Não é fácil. Eu exageraria se confirmasse o
que o senhor acaba de dizer, e mentiria se o negasse. Isso se explica assim: durante muito tempo,
durante muitíssimo tempo mesmo vivi nesta casa com Clávdia – perdão! – com a sua atual
companheira de viagem, sem conhecê-la no sentido convencional. A convenção não tinha lugar
nas nossas relações, ou melhor: nas minhas relações com ela, sobre as quais quero acrescentar
que sua origem está envolta em obscuridade. Nos meus pensamentos, nunca tratei Clávdia de
outra forma a não ser de “tu”, e tampouco o fiz em realidade. Pois aquela noite em que me
desembaracei de certas peias pedagógicas que mencionei de passagem, e me aproximei dela, sob
um pretexto que um fato longínquo me sugeria, era uma noite de mascarada, noite de carnaval,
noite sem responsabilidade, noite do “tu”, em cujo decorrer esse “tu” adquiriu,
inconscientemente e como num sonho, a plenitude do seu significado. Ao mesmo tempo, porém,
era a véspera da partida de Clávdia.
– A plenitude do seu significado – repetiu Peeperkorn. – O senhor disse isso de forma
muito gentil... – Soltou o pulso de Hans Castorp, e com as palmas das mãos de capitão, de unhas
compridas, começou a esfregar ambos os lados do rosto, as órbitas, as bochechas e o queixo. A
seguir juntou as mãos sobre o lençol enlaivado de vinho e voltou a cabeça para a esquerda, a
direção onde se achava o visitante, parecendo, contudo, desviar o rosto.
– Respondi-lhe com a maior clareza possível, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp –, e procurei escrupulosamente não dizer nem de menos nem de mais. O que mais me importava
era fazer-lhe notar que, sob certo aspecto, se tem plena liberdade de levar ou não levar em conta
aquela noite, a noite do “tu” consumado e da despedida; fazer notar que essa noite se achava
completamente fora do normal e quase que fora do calendário, um hors d’oeuvre, por assim dizer,
uma noite extra, noite bissexta, 29 de fevereiro, e que, por conseguinte, seria apenas meia mentira
se eu negasse o que o senhor acaba de afirmar.
Peeperkorn não deu resposta.
– Preferi – recomeçou Hans Castorp depois de uma pequena pausa – falar a verdade, não
obstante o perigo de perder assim as suas simpatias, o que, digo francamente, seria para mim uma
perda sensível; posso assegurar que seria um golpe, um verdadeiro golpe, que bem se poderia
comparar com aquele que significou para mim o fato de Mme. Chauchat não voltar sozinha, mas
como sua companheira de viagem. Arrisquei correr esse perigo, porque desde muito desejava que
houvesse clareza entre nós, entre o senhor, por quem sinto tão extraordinário respeito, e a minha
pessoa; isso me parecia mais bonito e mais humano... O senhor conhece o modo como Clávdia
pronuncia essa palavra, com aquela sua voz encantadoramente velada, arrastando-a com tanta
graça... Bem, isso me parecia mais humano do que a discrição ou o fingimento. Sob esse aspecto
experimentei grande alívio quando o senhor há pouco fez aquela afirmação.
Nenhuma resposta.
– Não é só isso, Mynheer Peeperkorn – prosseguiu Hans Castorp. – Há mais uma coisa
que me inspirou o desejo de lhe falar com toda a franqueza. Trata-se da experiência pessoal que
me ensinou quão irritantes são, numa situação dessas, a incerteza e a necessidade de se guiar por
conjecturas. Agora o senhor é que sabe com quem Clávdia – antes de se estabelecer a atual
situação de direito, que seria a mais rematada loucura desrespeitar – teve, ou passou, ou
cometeu... sim, cometeu um... um dia 29 de fevereiro. Eu por mim nunca cheguei a adquirir essa
clareza, apesar de me dar conta de que todos os que tenham ensejo de refletir sobre essas coisas
devem incluir nos seus cálculos esse tipo de precedentes, o que no fundo quer dizer
predecessores, e apesar de saber, além disso, que o Conselheiro Behrens, o qual, como o senhor
talvez não ignora, é pintor diletante, fez dela, no curso de muitas sessões, um excelente retrato a
óleo, com uma representação tão realística da pele que existem, cá entre nós, motivos de sobra
para suspeitas. Aquilo me causou muitos tormentos e muita dor de cabeça, e ainda hoje causa.
– O senhor ainda a ama? – perguntou Peeperkorn, sem mudar de posição, isto é, com o
rosto desviado... O quarto espaçoso ia desaparecendo mais e mais na penumbra.
– Perdão, Mynheer Peeperkorn – replicou Hans Castorp –, mas os sentimentos que nutro
pelo senhor, sentimentos da mais alta estima e admiração, não me permitiriam falar-lhe dos
sentimentos que nutro pela sua companheira de viagem.
– E ainda hoje – perguntou Peeperkorn em voz abafada – ela continua a corresponder a
esses sentimentos?
– Não digo – tornou Hans Castorp –, não digo que em algum momento tenha
correspondido a eles. Isso me parece pouco provável. Acabamos de frisar esse assunto
teoricamente quando tratamos da natureza reativa das mulheres. Claro que na minha pessoa não
há muita coisa que se possa amar. Que envergadura tenho eu? Julgue o senhor mesmo! A
possibilidade de um... de um dia 29 de fevereiro só pode ser atribuída ao fato de a mulher se
deixar influenciar pela escolha prévia do homem. Quero acrescentar que tenho a impressão de
cometer um ato de vaidade e de mau gosto, quando falo de mim como de um “homem”, mas
Clávdia é indiscutivelmente mulher.
– Ela obedeceu aos seus sentimentos – murmuraram os lábios gretados de Peeperkorn.
– Como o fez no caso do senhor, com muito mais obediência ainda – retrucou Hans
Castorp – e como, segundo todas as probabilidades, já o deve ter feito umas quantas vezes...
Disso se devem dar conta os que têm ensejo de...
– Um momento! – disse Peeperkorn, continuando com os olhos desviados, mas detendo
o seu interlocutor com um gesto da palma da mão. – O senhor não acha infame falarmos assim
sobre ela?
– Não acho, Mynheer Peeperkorn. Não, senhor, nesse ponto me parece que o posso
tranquilizar completamente. Estamos falando de coisas humanas – humanas no sentido da
genialidade e da liberdade. Desculpe essa expressão que talvez seja um pouco pomposa; mas uma
emergência, há poucos dias, me fez lançar mão dela.
– Está bem. Continue! – ordenou Peeperkorn, baixinho.
Também Hans Castorp abafava a voz. Sentado na borda da cadeira, junto à cama, com as
mãos apertadas entre os joelhos, inclinava-se para o ancião majestoso.
– Pois ela é uma criatura genial – disse – e aquele homem que vive lá além do Cáucaso –
o senhor deve saber que ela tem um marido por lá – permite-lhe a liberdade, a genialidade, seja
por embotamento, seja por inteligência. Não sei dizê-lo, porque não conheço aquele sujeito. Em
todo caso anda acertado fazendo-lhe essa concessão, já que é a doença que a torna livre, o
princípio genial da doença, ao qual ela está sujeita. E quem tiver ensejo de fazê-lo estará certo em
imitar o exemplo dele, sem se queixar nem do passado nem do futuro...
– O senhor não se queixa? – perguntou Peeperkorn, voltando o rosto para o jovem...
Parecia pálido na penumbra, com o olhar fixo, apagado e lasso, sob as rugas da fronte que lhe
davam a aparência de um ídolo. A boca ampla, gretada, estava semiaberta, como numa máscara
trágica.
– Eu não pensava – respondeu Hans Castorp com modéstia – que se tratasse de mim.
Minhas palavras tinham por objetivo evitar que o senhor se queixasse, Mynheer Peeperkorn, e que
me privasse da sua benevolência, por causa de ocorrências passadas. É isso o que me preocupa
nesta hora.
– Mesmo assim – disse Peeperkorn – deve ter sido uma dor profunda aquela que lhe
causei sem saber.
– Se isto é uma pergunta – volveu Hans Castorp – e se dou uma resposta afirmativa, isso
não significa de forma alguma que eu não saiba apreciar o enorme privilégio de conhecê-lo, uma
vez que esse privilégio não pode ser separado da decepção a que se refere.
– Obrigado, jovem, obrigado. Gosto da gentileza das suas palavras ágeis. Mas, abstração
feita das nossas relações...
– É difícil fazer abstração delas – disse Hans Castorp – e também não preciso fazê-la,
para responder à sua pergunta com um simples “sim”. Pois o fato de ter Clávdia voltado em
companhia de uma personalidade da envergadura do senhor só podia aumentar e complicar o
desgosto que constituía para mim a própria circunstância de ela ter voltado em companhia de um
homem. Esse fato me deu muito que fazer e continua dando até hoje; não o nego. De propósito
me empenhei o mais que pude em ver o lado positivo da coisa, quer dizer: os sentimentos de
sincera reverência que tenho pelo senhor, Mynheer Peeperkorn. Isso incluía, aliás, uma pequena
malícia contra a sua companheira de viagem; pois as mulheres absolutamente não gostam de que
os seus amantes se entendam.
– De fato... – disse Peeperkorn, e escondeu um sorriso, passando a mão em concha por
sobre a boca e o queixo, como se houvesse o perigo de Mme. Chauchat vê-lo sorrir. Também
Hans Castorp esboçou um sorriso discreto, e a seguir ambos sacudiram a cabeça num
entendimento tácito. – Afinal de contas – prosseguiu Hans Castorp –, eu tinha direito a essa pequena vingança;
pois, quanto a mim, não me faltam motivos para me queixar, não de Clávdia, nem tampouco do
senhor, Mynheer Peeperkorn, mas num sentido geral, por causa da minha vida e do meu destino.
Uma vez que tenho a honra de gozar da, sua confiança, e que essa hora crepuscular é tão
agradável, quero pelo menos esboçar esses motivos.
– Pois não – disse Peeperkorn cortesmente, e Hans Castorp continuou:
– Estou aqui em cima faz muito tempo, Mynheer Peeperkorn, há vários anos já, nem sei
dizer quantos. Mas são anos da minha vida, e por isso mencionei a “vida”, assim como também
voltarei oportunamente a falar do “destino”. Meu primo, ao qual eu desejava fazer uma pequena
visita, um militar com intenções decentes e honradas, que no entanto pouco lhe adiantaram, meu
primo foi-me arrebatado, e eu continuo aqui. Eu não era soldado; tinha uma profissão civil, como
o senhor talvez tenha ouvido falar, uma profissão sólida e sensata, que, segundo dizem, tem até
funções de ligar os povos entre si. Não nego que nunca tenha sentido uma afeição especial por
ela, e isso por razões sobre as quais só quero dizer que se acham envoltas em obscuridade.
Acham-se ali lado a lado com as origens dos sentimentos que tenho pela sua companheira de
viagem – sirvo-me desse termo para demonstrar expressamente que nem penso em discutir
direitos adquiridos –, meus sentimentos por Clávdia Chauchat e o tratamento de “tu” que lhe
dou no meu íntimo, como nunca deixei de fazer, desde que os olhos dela encontraram os meus
pela primeira vez, enfeitiçando-me imediatamente. Enfeitiçando-me num sentido insensato,
compreende? Por amor a ela, a despeito do Sr. Settembrini, sujeitei-me ao princípio oposto à
razão, ao princípio genial da doença, ao qual talvez já tenha estado sujeito desde muito ou desde
sempre. Fiquei aqui em cima, já não sei com certeza há quanto tempo. Esqueci tudo e me
desliguei de tudo, dos meus parentes, e da minha profissão, e do meu futuro na planície. E
quando Clávdia partiu, esperei por ela, esperei sempre aqui em cima, de modo que estou perdido
para a planície, que me considera morto. Era isso que eu tinha em mente, quando me referi ao
“destino” e tomei a liberdade de alegar que eu enfim tinha certo direito de me queixar da atual
situação jurídica. Certa vez li uma história... Não, vi-a no teatro. Havia lá um rapaz que não fazia
mal a ninguém. Era, aliás, um soldado, tal qual meu primo. Trava conhecimento com uma
encantadora cigana, um verdadeiro encanto de mulher fatal e selvagem, com uma flor atrás da
orelha, e ela domina-o de tal maneira que o rapaz se desnorteia completamente e chega a
sacrificar-lhe tudo, a desertar das fileiras, a associar-se em sua companhia a um bando de
contrabandistas, e a desonrar-se sob todos os aspectos. Ao cabo de tudo isso, ela se cansa dele e
arranja um toureiro de personalidade poderosa com uma magnífica voz de barítono. A história
termina assim: o soldadinho, com o rosto branco que nem giz, e com a camisa aberta, esfaqueia-a
em frente a um circo. Por outro lado, a mulher o havia provocado a esse ato. É uma história que
não vem ao caso, essa que acabo de contar. Mas, afinal, por que me ocorreu?
Quando Hans Castorp falara em “esfaquear”, Peeperkorn modificara a sua posição semi
sentada. Retrocedera um pouco na cama, voltando rapidamente o rosto ao visitante e lançando
nele um olhar perscrutador. A seguir, empertigou-se, apoiado no cotovelo, e disse:
– Jovem, ouvi as suas palavras e agora estou a par de tudo. Permita que, à base do que me
comunicou, lhe ofereça uma explicação leal! Se os meus cabelos não fossem brancos e eu não me
achasse acometido por uma febre maligna, o senhor me veria disposto a dar-lhe, de homem para
homem, com a arma na mão, satisfação pelo mal que lhe causei sem saber, e ao mesmo tempo
pelo outro que lhe infligiu a minha companheira de viagem, e do qual também lhe devo contas.
Perfeitamente. O senhor me veria disposto. Mas, sendo as coisas como são, permita que eu lhe
faça uma outra proposta. Trata-se do seguinte: lembro-me de um momento sublime, logo no
início das nossas relações... Lembro-me dele, embora naquela ocasião tivesse feito muita honra ao
vinho. Foi o momento em que eu, agradavelmente impressionado pelo seu caráter, estive a ponto
de lhe propor o “tu” fraternal. No entanto, não pude deixar de perceber que esse passo seria um
tanto precipitado. Muito bem, hoje me refiro àquele instante, transporto-me novamente para ele e
dou por terminado o prazo então estabelecido. Meu caro jovem, somos irmãos; declaro-nos
irmãos. O senhor falou do significado pleno de um “tu”. Também o nosso terá significado pleno,
o significado da fraternidade no sentimento. A satisfação que não lhe posso dar com a arma,
devido à minha idade e à doença, ofereço-a sob a forma de uma aliança fraternal, assim como às
vezes se concerta contra terceiros, contra o mundo ou contra quem quer que seja, o que nós
faremos no sentimento comum por alguém. Toma a tua taça, jovem, enquanto eu volto a usar do
meu copo de lavar dentes, que afinal de contas não ofende de forma alguma essa zurrapazinha...
E com a mão de capitão ligeiramente trêmula encheu os copos, ajudado pelo reverente e
perplexo Hans Castorp.
– Serve-te! – repetiu Peeperkorn. – Cruza o braço comigo e bebe assim! Esvazia o copo!...
Ótimo, jovem! Feito! Aqui tens a minha mão. Estás contente?
– Essa palavra é, naturalmente, muito fraca para expressar o que sinto, Mynheer
Peeperkorn – disse Hans Castorp, que tivera algumas dificuldades em emborcar a taça de um só
gole e enxugava os joelhos com o lenço, porque derramara um pouco de vinho. – Prefiro dizer
que estou infinitamente feliz. Nem posso ainda compreender como pude ser distinguido dessa
maneira. Francamente, é como se eu estivesse sonhando. É uma imensa honra para mim, e não
sei como a mereci, a menos que de um modo passivo, porque não pode ser de outra forma. Não
será de admirar que no começo me pareça um tanto excêntrico empregar esse novo tratamento, e
que eu tropece de vez em quando, sobretudo em presença de Clávdia, que, à maneira das
mulheres, provavelmente não gostará deste arranjo...
– Deixa isto comigo – replicou Peeperkorn. – E o resto é uma questão de prática e de
hábito. E agora vai-te, meu caro jovem! Deixa-me sozinho, meu filho! Está escuro; já é noite
cerrada, e nossa amiga pode voltar a qualquer instante. Um encontro de vocês, neste momento,
talvez não seja conveniente.
– Desejo-te uma boa noite, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, enquanto se
levantava. – Como o senhor está vendo, procuro vencer a minha legítima timidez e exercito-me
nesse tratamento audacioso. Escureceu; é verdade. Seria bem possível que o Sr. Settembrini
entrasse neste quarto e acendesse a luz, para que reinasse a razão e as convenções; é o fraco dele.
Até amanhã! Saio daqui tão alegre tão orgulhoso como nem de longe teria imaginado. Estimo
tuas melhoras. Tens à frente pelo menos três dias sem febre, durante os quais o senhor não
precisa temer nenhum esforço. Isto me dá tanto prazer como se eu fosse tu. Boa noite!
continua pág 403...
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Leia também:
Capítulo I
A Chegada
A Chegada
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn - Continuação (e)
Mynheer Peeperkorn (Fim) - [a]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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