terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn - Continuação (e)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn

(continuação)
...
     Hans Castorp corou. 

– As coisas – prosseguiu com um sorriso amarelo – apresentam-se aqui sob um aspecto diferente do normal. O espírito que reina neste lugar, se me posso expressar assim, não é o espírito convencional. O doente tem a primazia, quer seja homem quer seja mulher. O senhor está passageiramente indisposto, Mynheer Peeperkorn. Trata-se de uma indisposição aguda, de uma coisa atual. A sua companheira de viagem está melhor, em comparação. Creio agir de acordo com as intenções de madame, quando na ausência dela o substituo um pouquinho aqui – se é que num caso desses pode haver substituição, ah, ah – em vez de representar o senhor junto dela e de lhe oferecer a minha companhia no caminho para a vila. Com que direito imporia eu os meus serviços de cavalheiro à sua companheira de viagem? Para isso me faltam títulos e autorização. Posso afirmar que tenho um senso sadio dos direitos positivos. Numa palavra, acho que a minha situação é correta; ela corresponde ao estado geral das coisas, e sobretudo corresponde aos sentimentos sinceros que tenho pela sua pessoa, Mynheer Peeperkorn. Com isso creio que a sua pergunta – o senhor acaba de fazer uma pergunta, não? – recebeu uma resposta satisfatória. 
– Uma resposta muito agradável – replicou Peeperkorn. – Ouço com sincero prazer as suas frases leves e ágeis, meu caro jovem. Elas saltam por cima de todos os obstáculos, e removem de um modo simpático as arestas das coisas. Mas satisfatória? Não, a sua resposta não me satisfaz. Desculpe-me se com isso lhe causo uma decepção. “Rigoroso”, meu caro amigo! Há poucos instantes o senhor empregou esse termo com referência a certas concepções que eu acabava de expor. Mas também nas suas palavras há um certo rigorismo, uma austeridade, uma atitude forçada, que não me parecem em harmonia com a sua natureza, se bem que, em certo sentido, já os tenha encontrado na sua conduta. Durante os nossos passeios e outros empreendimentos que realizamos em comum, o senhor costuma tomar essa mesma atitude em face de madame, e de mais ninguém. Isto o senhor me deve explicar. É um dever, jovem, uma obrigação! Não me engano. Vi a minha observação confirmada em muitas ocasiões. É improvável que outras pessoas não a tenham feito também, com a única diferença de que elas talvez, ou mesmo provavelmente, saibam a razão desse fenômeno. 

     Essa tarde, Mynheer proferia períodos extraordinariamente precisos e acabados, apesar do cansaço causado pela febre maligna. Quase não havia incoerências. Meio sentado na cama, voltava para o visitante os imponentes ombros e a grandiosa cabeça; estendia um dos braços por cima da colcha, e a mão sardenta de capitão, saindo verticalmente do punho da manga de lã, exibia aquele característico anel da exatidão, flanqueado pelos dedos lanciformes, enquanto a boca formava frases tão claras, tão incisivas e mesmo tão plásticas, que o próprio Sr. Settembrini deveria ter ficado contente. Os “erres” de palavras como “provavelmente” ou “razão” eram guturais e carregados. 

– O senhor está sorrindo – continuou. – Pisca os olhos e vira a cabeça de cá para lá. Parece entregar-se a reflexões sem resultado positivo. E todavia não há nenhuma dúvida de que sabe a que me refiro e de que se trata. Não quero dizer que nunca dirija a palavra a madame ou lhe fique devendo a resposta, quando a ocasião requer o contrário. Mas repito que o faz de modo forçado, ou para ser mais exato: esquiva-se, evita alguma coisa, e quando se observa mais de perto, vê-se que esta coisa é um determinado tratamento. Quanto ao seu procedimento, tem-se a impressão de que o senhor fez uma aposta, de que partilhou uma filipina com madame, e não pode, segundo as condições estipuladas, dirigir-lhe diretamente a palavra. Como consequência lógica disso, evita qualquer forma de tratamento. Nunca lhe diz “a senhora”. 
– Mas, Mynheer Peeperkorn... Que filipina seria essa? 
– Posso chamar a sua atenção para o fato que o senhor certamente notou também: acaba de empalidecer até os lábios.

     Hans Castorp não ergueu o olhar. Inclinado para a frente, ocupava-se intensamente com as manchas vermelhas no lençol. “Isso tinha que acontecer!”, pensou. “Tudo tendia nessa direção. Acho que eu mesmo fiz o que estava a meu alcance para que chegássemos a este ponto. Em certo sentido, tinha isso em mira, como percebo agora. Será que realmente empalideci? É possível, porque está iminente o momento decisivo. Não se sabe o que acontecerá. Posso ainda mentir? Poderia, mas não quero. Por enquanto continuarei olhando essas manchas de sangue, essas manchas de vinho tinto no lençol...”
     De cima dele também não vinha palavra alguma. O silêncio prolongou-se por dois ou três minutos, tornando perceptível a enorme extensão que essas unidades minúsculas podem adquirir em tais circunstâncias.
     Quem reencetou a conversa foi Pieter Peeperkorn. 

– Naquela noite em que tive o prazer de travar conhecimento com o senhor – começou em tom cantante, baixando a voz como se terminasse a primeira frase de uma longa história. – Acabávamos de celebrar uma pequena festa. Havíamos saboreado comidas e bebidas. A altas horas da noite, numa disposição animada, com o espírito livre e empreendedor, dirigíamo-nos, de braços dados, para os nossos quartos. Sucedeu então o seguinte: diante desta minha porta, no momento da despedida, ocorreu-me a idéia de convidar o senhor a tocar com os lábios a fronte da mulher que o tinha apresentado a mim como um bom amigo de uma temporada anterior, e de deixar ao critério dela se queria retribuir, na minha presença, esse ato solene e alegre, como consagração da hora sublime. O senhor rejeitou redondamente a minha sugestão; rejeitou-a alegando que lhe parecia absurdo trocar beijos na fronte com a minha companheira de viagem. O senhor não vai negar que aquilo era uma explicação que por sua vez necessitava de um comentário, e esse comentário o senhor me ficou devendo até agora. Está o senhor disposto a pagar essa dívida?

“Ora, ora, ele percebeu até isso”, pensou Hans Castorp e pôs-se a estudar ainda mais intensamente as manchas de vinho, chegando até a arranhar uma com a ponta curva do dedo médio. “Pode ser que naquele instante eu desejasse, no fundo do coração, que ele percebesse e tomasse nota do fato. Caso contrário, eu não teria dito essas coisas. Mas que haverá agora? Meu coração bate violentamente. Terei de enfrentar uma enorme explosão de fúria real? Quem sabe se eu não faria bem em vigiar o seu punho, que talvez já esteja erguido por cima da minha cabeça? Uma situação esquisitíssima e sumamente crítica, essa em que me encontro.”

     De chofre sentiu a mão de Peeperkorn agarrar-lhe o pulso direito. 

“Agora me pega pelo pulso!”, pensou. “Que bobagem, ora essa! Por que me comporto aqui como um cão surrado? Cometi alguma falta contra ele? Nenhuma. O primeiro que teria direito de se queixar seria aquele homem em Daghestan. E depois mais este ou aquele. E finalmente eu mesmo. Ao que saiba, ele não tem motivo nenhum para queixar-se. Pois então, por que meu coração bate tanto? Já é tempo que me aprume e olhe franca, mas também reverentemente, para o seu rosto majestoso.”

     Foi o que fez. O rosto majestoso estava amarelo. Os olhos pareciam apagados sob o enrugamento içado da testa. Os lábios gretados mostravam uma expressão amarga. Um lia nos olhos do outro, o grande ancião e o jovem insignificante, enquanto um prosseguia segurando o pulso do outro. Finalmente Peeperkorn disse em voz baixa: 

– O senhor foi amante de Clávdia durante a outra temporada.

     Hans Castorp mais uma vez inclinou a cabeça, mas logo voltou a levantá-la, respondendo, depois de respirar profundamente: 

– Mynheer Peeperkorn! Repugna-me no mais alto grau mentir-lhe. Esforço-me por encontrar uma possibilidade de evitar esse recurso. Não é fácil. Eu exageraria se confirmasse o que o senhor acaba de dizer, e mentiria se o negasse. Isso se explica assim: durante muito tempo, durante muitíssimo tempo mesmo vivi nesta casa com Clávdia – perdão! – com a sua atual companheira de viagem, sem conhecê-la no sentido convencional. A convenção não tinha lugar nas nossas relações, ou melhor: nas minhas relações com ela, sobre as quais quero acrescentar que sua origem está envolta em obscuridade. Nos meus pensamentos, nunca tratei Clávdia de outra forma a não ser de “tu”, e tampouco o fiz em realidade. Pois aquela noite em que me desembaracei de certas peias pedagógicas que mencionei de passagem, e me aproximei dela, sob um pretexto que um fato longínquo me sugeria, era uma noite de mascarada, noite de carnaval, noite sem responsabilidade, noite do “tu”, em cujo decorrer esse “tu” adquiriu, inconscientemente e como num sonho, a plenitude do seu significado. Ao mesmo tempo, porém, era a véspera da partida de Clávdia. 
– A plenitude do seu significado – repetiu Peeperkorn. – O senhor disse isso de forma muito gentil... – Soltou o pulso de Hans Castorp, e com as palmas das mãos de capitão, de unhas compridas, começou a esfregar ambos os lados do rosto, as órbitas, as bochechas e o queixo. A seguir juntou as mãos sobre o lençol enlaivado de vinho e voltou a cabeça para a esquerda, a direção onde se achava o visitante, parecendo, contudo, desviar o rosto. 
– Respondi-lhe com a maior clareza possível, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp –, e procurei escrupulosamente não dizer nem de menos nem de mais. O que mais me importava era fazer-lhe notar que, sob certo aspecto, se tem plena liberdade de levar ou não levar em conta aquela noite, a noite do “tu” consumado e da despedida; fazer notar que essa noite se achava completamente fora do normal e quase que fora do calendário, um hors d’oeuvre, por assim dizer, uma noite extra, noite bissexta, 29 de fevereiro, e que, por conseguinte, seria apenas meia mentira se eu negasse o que o senhor acaba de afirmar.

     Peeperkorn não deu resposta. 

– Preferi – recomeçou Hans Castorp depois de uma pequena pausa – falar a verdade, não obstante o perigo de perder assim as suas simpatias, o que, digo francamente, seria para mim uma perda sensível; posso assegurar que seria um golpe, um verdadeiro golpe, que bem se poderia comparar com aquele que significou para mim o fato de Mme. Chauchat não voltar sozinha, mas como sua companheira de viagem. Arrisquei correr esse perigo, porque desde muito desejava que houvesse clareza entre nós, entre o senhor, por quem sinto tão extraordinário respeito, e a minha pessoa; isso me parecia mais bonito e mais humano... O senhor conhece o modo como Clávdia pronuncia essa palavra, com aquela sua voz encantadoramente velada, arrastando-a com tanta graça... Bem, isso me parecia mais humano do que a discrição ou o fingimento. Sob esse aspecto experimentei grande alívio quando o senhor há pouco fez aquela afirmação.

     Nenhuma resposta. 

– Não é só isso, Mynheer Peeperkorn – prosseguiu Hans Castorp. – Há mais uma coisa que me inspirou o desejo de lhe falar com toda a franqueza. Trata-se da experiência pessoal que me ensinou quão irritantes são, numa situação dessas, a incerteza e a necessidade de se guiar por conjecturas. Agora o senhor é que sabe com quem Clávdia – antes de se estabelecer a atual situação de direito, que seria a mais rematada loucura desrespeitar – teve, ou passou, ou cometeu... sim, cometeu um... um dia 29 de fevereiro. Eu por mim nunca cheguei a adquirir essa clareza, apesar de me dar conta de que todos os que tenham ensejo de refletir sobre essas coisas devem incluir nos seus cálculos esse tipo de precedentes, o que no fundo quer dizer predecessores, e apesar de saber, além disso, que o Conselheiro Behrens, o qual, como o senhor talvez não ignora, é pintor diletante, fez dela, no curso de muitas sessões, um excelente retrato a óleo, com uma representação tão realística da pele que existem, cá entre nós, motivos de sobra para suspeitas. Aquilo me causou muitos tormentos e muita dor de cabeça, e ainda hoje causa. 
– O senhor ainda a ama? – perguntou Peeperkorn, sem mudar de posição, isto é, com o rosto desviado... O quarto espaçoso ia desaparecendo mais e mais na penumbra. 
– Perdão, Mynheer Peeperkorn – replicou Hans Castorp –, mas os sentimentos que nutro pelo senhor, sentimentos da mais alta estima e admiração, não me permitiriam falar-lhe dos sentimentos que nutro pela sua companheira de viagem. 
– E ainda hoje – perguntou Peeperkorn em voz abafada – ela continua a corresponder a esses sentimentos? 
– Não digo – tornou Hans Castorp –, não digo que em algum momento tenha correspondido a eles. Isso me parece pouco provável. Acabamos de frisar esse assunto teoricamente quando tratamos da natureza reativa das mulheres. Claro que na minha pessoa não há muita coisa que se possa amar. Que envergadura tenho eu? Julgue o senhor mesmo! A possibilidade de um... de um dia 29 de fevereiro só pode ser atribuída ao fato de a mulher se deixar influenciar pela escolha prévia do homem. Quero acrescentar que tenho a impressão de cometer um ato de vaidade e de mau gosto, quando falo de mim como de um “homem”, mas Clávdia é indiscutivelmente mulher. 
– Ela obedeceu aos seus sentimentos – murmuraram os lábios gretados de Peeperkorn. 
– Como o fez no caso do senhor, com muito mais obediência ainda – retrucou Hans Castorp – e como, segundo todas as probabilidades, já o deve ter feito umas quantas vezes... Disso se devem dar conta os que têm ensejo de... 
– Um momento! – disse Peeperkorn, continuando com os olhos desviados, mas detendo o seu interlocutor com um gesto da palma da mão. – O senhor não acha infame falarmos assim sobre ela? 
– Não acho, Mynheer Peeperkorn. Não, senhor, nesse ponto me parece que o posso tranquilizar completamente. Estamos falando de coisas humanas – humanas no sentido da genialidade e da liberdade. Desculpe essa expressão que talvez seja um pouco pomposa; mas uma emergência, há poucos dias, me fez lançar mão dela. 
– Está bem. Continue! – ordenou Peeperkorn, baixinho. 

     Também Hans Castorp abafava a voz. Sentado na borda da cadeira, junto à cama, com as mãos apertadas entre os joelhos, inclinava-se para o ancião majestoso. 

– Pois ela é uma criatura genial – disse – e aquele homem que vive lá além do Cáucaso – o senhor deve saber que ela tem um marido por lá – permite-lhe a liberdade, a genialidade, seja por embotamento, seja por inteligência. Não sei dizê-lo, porque não conheço aquele sujeito. Em todo caso anda acertado fazendo-lhe essa concessão, já que é a doença que a torna livre, o princípio genial da doença, ao qual ela está sujeita. E quem tiver ensejo de fazê-lo estará certo em imitar o exemplo dele, sem se queixar nem do passado nem do futuro... 
– O senhor não se queixa? – perguntou Peeperkorn, voltando o rosto para o jovem... Parecia pálido na penumbra, com o olhar fixo, apagado e lasso, sob as rugas da fronte que lhe davam a aparência de um ídolo. A boca ampla, gretada, estava semiaberta, como numa máscara trágica. 
– Eu não pensava – respondeu Hans Castorp com modéstia – que se tratasse de mim. Minhas palavras tinham por objetivo evitar que o senhor se queixasse, Mynheer Peeperkorn, e que me privasse da sua benevolência, por causa de ocorrências passadas. É isso o que me preocupa nesta hora. 
– Mesmo assim – disse Peeperkorn – deve ter sido uma dor profunda aquela que lhe causei sem saber. 
– Se isto é uma pergunta – volveu Hans Castorp – e se dou uma resposta afirmativa, isso não significa de forma alguma que eu não saiba apreciar o enorme privilégio de conhecê-lo, uma vez que esse privilégio não pode ser separado da decepção a que se refere. 
– Obrigado, jovem, obrigado. Gosto da gentileza das suas palavras ágeis. Mas, abstração feita das nossas relações... 
– É difícil fazer abstração delas – disse Hans Castorp – e também não preciso fazê-la, para responder à sua pergunta com um simples “sim”. Pois o fato de ter Clávdia voltado em companhia de uma personalidade da envergadura do senhor só podia aumentar e complicar o desgosto que constituía para mim a própria circunstância de ela ter voltado em companhia de um homem. Esse fato me deu muito que fazer e continua dando até hoje; não o nego. De propósito me empenhei o mais que pude em ver o lado positivo da coisa, quer dizer: os sentimentos de sincera reverência que tenho pelo senhor, Mynheer Peeperkorn. Isso incluía, aliás, uma pequena malícia contra a sua companheira de viagem; pois as mulheres absolutamente não gostam de que os seus amantes se entendam. 
– De fato... – disse Peeperkorn, e escondeu um sorriso, passando a mão em concha por sobre a boca e o queixo, como se houvesse o perigo de Mme. Chauchat vê-lo sorrir. Também Hans Castorp esboçou um sorriso discreto, e a seguir ambos sacudiram a cabeça num entendimento tácito. – Afinal de contas – prosseguiu Hans Castorp –, eu tinha direito a essa pequena vingança; pois, quanto a mim, não me faltam motivos para me queixar, não de Clávdia, nem tampouco do senhor, Mynheer Peeperkorn, mas num sentido geral, por causa da minha vida e do meu destino. Uma vez que tenho a honra de gozar da, sua confiança, e que essa hora crepuscular é tão agradável, quero pelo menos esboçar esses motivos. 
– Pois não – disse Peeperkorn cortesmente, e Hans Castorp continuou: 
– Estou aqui em cima faz muito tempo, Mynheer Peeperkorn, há vários anos já, nem sei dizer quantos. Mas são anos da minha vida, e por isso mencionei a “vida”, assim como também voltarei oportunamente a falar do “destino”. Meu primo, ao qual eu desejava fazer uma pequena visita, um militar com intenções decentes e honradas, que no entanto pouco lhe adiantaram, meu primo foi-me arrebatado, e eu continuo aqui. Eu não era soldado; tinha uma profissão civil, como o senhor talvez tenha ouvido falar, uma profissão sólida e sensata, que, segundo dizem, tem até funções de ligar os povos entre si. Não nego que nunca tenha sentido uma afeição especial por ela, e isso por razões sobre as quais só quero dizer que se acham envoltas em obscuridade. Acham-se ali lado a lado com as origens dos sentimentos que tenho pela sua companheira de viagem – sirvo-me desse termo para demonstrar expressamente que nem penso em discutir direitos adquiridos –, meus sentimentos por Clávdia Chauchat e o tratamento de “tu” que lhe dou no meu íntimo, como nunca deixei de fazer, desde que os olhos dela encontraram os meus pela primeira vez, enfeitiçando-me imediatamente. Enfeitiçando-me num sentido insensato, compreende? Por amor a ela, a despeito do Sr. Settembrini, sujeitei-me ao princípio oposto à razão, ao princípio genial da doença, ao qual talvez já tenha estado sujeito desde muito ou desde sempre. Fiquei aqui em cima, já não sei com certeza há quanto tempo. Esqueci tudo e me desliguei de tudo, dos meus parentes, e da minha profissão, e do meu futuro na planície. E quando Clávdia partiu, esperei por ela, esperei sempre aqui em cima, de modo que estou perdido para a planície, que me considera morto. Era isso que eu tinha em mente, quando me referi ao “destino” e tomei a liberdade de alegar que eu enfim tinha certo direito de me queixar da atual situação jurídica. Certa vez li uma história... Não, vi-a no teatro. Havia lá um rapaz que não fazia mal a ninguém. Era, aliás, um soldado, tal qual meu primo. Trava conhecimento com uma encantadora cigana, um verdadeiro encanto de mulher fatal e selvagem, com uma flor atrás da orelha, e ela domina-o de tal maneira que o rapaz se desnorteia completamente e chega a sacrificar-lhe tudo, a desertar das fileiras, a associar-se em sua companhia a um bando de contrabandistas, e a desonrar-se sob todos os aspectos. Ao cabo de tudo isso, ela se cansa dele e arranja um toureiro de personalidade poderosa com uma magnífica voz de barítono. A história termina assim: o soldadinho, com o rosto branco que nem giz, e com a camisa aberta, esfaqueia-a em frente a um circo. Por outro lado, a mulher o havia provocado a esse ato. É uma história que não vem ao caso, essa que acabo de contar. Mas, afinal, por que me ocorreu?

     Quando Hans Castorp falara em “esfaquear”, Peeperkorn modificara a sua posição semi sentada. Retrocedera um pouco na cama, voltando rapidamente o rosto ao visitante e lançando nele um olhar perscrutador. A seguir, empertigou-se, apoiado no cotovelo, e disse: 

– Jovem, ouvi as suas palavras e agora estou a par de tudo. Permita que, à base do que me comunicou, lhe ofereça uma explicação leal! Se os meus cabelos não fossem brancos e eu não me achasse acometido por uma febre maligna, o senhor me veria disposto a dar-lhe, de homem para homem, com a arma na mão, satisfação pelo mal que lhe causei sem saber, e ao mesmo tempo pelo outro que lhe infligiu a minha companheira de viagem, e do qual também lhe devo contas. Perfeitamente. O senhor me veria disposto. Mas, sendo as coisas como são, permita que eu lhe faça uma outra proposta. Trata-se do seguinte: lembro-me de um momento sublime, logo no início das nossas relações... Lembro-me dele, embora naquela ocasião tivesse feito muita honra ao vinho. Foi o momento em que eu, agradavelmente impressionado pelo seu caráter, estive a ponto de lhe propor o “tu” fraternal. No entanto, não pude deixar de perceber que esse passo seria um tanto precipitado. Muito bem, hoje me refiro àquele instante, transporto-me novamente para ele e dou por terminado o prazo então estabelecido. Meu caro jovem, somos irmãos; declaro-nos irmãos. O senhor falou do significado pleno de um “tu”. Também o nosso terá significado pleno, o significado da fraternidade no sentimento. A satisfação que não lhe posso dar com a arma, devido à minha idade e à doença, ofereço-a sob a forma de uma aliança fraternal, assim como às vezes se concerta contra terceiros, contra o mundo ou contra quem quer que seja, o que nós faremos no sentimento comum por alguém. Toma a tua taça, jovem, enquanto eu volto a usar do meu copo de lavar dentes, que afinal de contas não ofende de forma alguma essa zurrapazinha...

     E com a mão de capitão ligeiramente trêmula encheu os copos, ajudado pelo reverente e perplexo Hans Castorp. 

– Serve-te! – repetiu Peeperkorn. – Cruza o braço comigo e bebe assim! Esvazia o copo!... Ótimo, jovem! Feito! Aqui tens a minha mão. Estás contente? 
– Essa palavra é, naturalmente, muito fraca para expressar o que sinto, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, que tivera algumas dificuldades em emborcar a taça de um só gole e enxugava os joelhos com o lenço, porque derramara um pouco de vinho. – Prefiro dizer que estou infinitamente feliz. Nem posso ainda compreender como pude ser distinguido dessa maneira. Francamente, é como se eu estivesse sonhando. É uma imensa honra para mim, e não sei como a mereci, a menos que de um modo passivo, porque não pode ser de outra forma. Não será de admirar que no começo me pareça um tanto excêntrico empregar esse novo tratamento, e que eu tropece de vez em quando, sobretudo em presença de Clávdia, que, à maneira das mulheres, provavelmente não gostará deste arranjo... 
– Deixa isto comigo – replicou Peeperkorn. – E o resto é uma questão de prática e de hábito. E agora vai-te, meu caro jovem! Deixa-me sozinho, meu filho! Está escuro; já é noite cerrada, e nossa amiga pode voltar a qualquer instante. Um encontro de vocês, neste momento, talvez não seja conveniente. 
– Desejo-te uma boa noite, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, enquanto se levantava. – Como o senhor está vendo, procuro vencer a minha legítima timidez e exercito-me nesse tratamento audacioso. Escureceu; é verdade. Seria bem possível que o Sr. Settembrini entrasse neste quarto e acendesse a luz, para que reinasse a razão e as convenções; é o fraco dele. Até amanhã! Saio daqui tão alegre tão orgulhoso como nem de longe teria imaginado. Estimo tuas melhoras. Tens à frente pelo menos três dias sem febre, durante os quais o senhor não precisa temer nenhum esforço. Isto me dá tanto prazer como se eu fosse tu. Boa noite!

continua pág 403...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn - Continuação (e)
Mynheer Peeperkorn (Fim) - [a]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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