terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: A Mão

Elias Canetti

AS ENTRANHAS DO PODER

     A Mão

      A mão deve seu surgimento à vida nas árvores. Sua primeira característica é o isolamento do polegar: a vigorosa constituição deste e o maior espaço intermediário que o separa dos demais dedos permitem o emprego daquilo que já foi garra para apanhar galhos inteiros. Assim, movimentar-se de uma árvore para outra, em todas as direções, torna-se uma questão simples e natural; vê-se nos macacos o valor que têm as mãos. Esse seu antigo significado é conhecido de todos, e quase ninguém desejará ainda contestá-lo. 
     Contudo, o que não se considera suficientemente, e em toda a sua amplitude, é a função variegada das mãos ao se trepar numa árvore. Elas absolutamente não fazem ambas a mesma coisa a um mesmo tempo. Enquanto uma busca um novo galho, a outra segura-se firme no galho antigo. Esse segurar-se é de capital importância; no movimento rápido, é ele sozinho que impede a queda. Em circunstância alguma pode a mão que suporta a totalidade do peso do corpo soltar o que está segurando. Isso lhe confere uma grande tenacidade, a qual, no entanto, se há de distinguir do antigo aferrar-se à presa. E isso porque, tão logo o outro braço alcança o novo galho, a mão que segura tem de soltar o galho antigo. Se tal não ocorre com grande rapidez, a criatura a trepar na árvore mal sai do lugar. Esse veloz soltar da mão constitui, portanto, a nova capacidade que a ela se acresce; antes, a presa nunca era solta, a não ser sob extrema necessidade, e, ainda assim, contrariamente ao hábito e à vontade.
     Para cada uma das mãos, o ato de trepar numa árvore consiste, pois, unicamente em duas fases que se seguem uma à outra: agarrar e soltar; agarrar e soltar. A segunda mão, é claro, faz o mesmo, mas uma fase adiante. Num único e mesmo momento, cada mão faz o contrário da outra. O que diferencia o macaco dos demais animais é a sequência veloz de ambos esses movimentos. Agarrar e soltar perseguem-se mutuamente, conferindo ao macaco algo daquela agilidade que tanto se admira nele.
     Mesmo os macacos superiores, que desceram das árvores para o chão, sempre preservaram essa capacidade essencial das mãos de, por assim dizer, jogar uma com a outra. Na maneira como ela surgiu, uma prática bastante disseminada entre os homens lembra muito nitidamente esse jogo: o comércio [Handel].
     O comércio consiste em se dar algo definido por aquilo que se recebe. Uma das mãos [Hand] segura tenazmente o objeto com o qual deseja seduzir o interlocutor a comerciar. A outra se estende ansiosa em busca de um segundo objeto que gostaria de trocar pelo seu próprio. Tão logo esta o toca, a primeira solta o que era sua propriedade — e não antes, do contrário poderia perdê-lo por completo. Traduzida para os acontecimentos relacionados ao trepar na árvore, essa forma mais crassa de engodo, em que se toma algo de alguém sem lhe dar nada em troca, corresponde à queda. Para evitar que isso ocorra, permanece-se sempre alerta durante todo o comerciar, observando-se cada movimento do interlocutor. A profunda e bastante disseminada alegria que o comércio proporciona ao homem deixa-se, pois, parcialmente explicar pelo fato de que, ao comerciar, ele dá continuidade, sob a forma de uma atitude psíquica, a um de seus movimentos mais antigos. Em nada mais o homem apresenta-se ainda hoje tão próximo do macaco quanto na prática do comércio.
      Retornemos, porém, dessa digressão por uma época muito posterior para a mão propriamente dita e sua origem. Com os galhos das árvores, o homem aprendeu uma modalidade do segurar não mais voltada para o alimento imediato. Interrompeu-se com isso o curto e pouco variegado caminho que conduz da mão à boca. A quebra do galho que a mão segurava deu origem ao bastão. Com ele, podiam-se manter afastados os inimigos. Já em torno de uma criatura primitiva ele criou espaço, uma criatura que era no máximo, talvez, parecida com o homem. Do ponto de vista de quem vive em árvores, o bastão era a arma mais à mão. O homem conservou sua fidelidade a ele, nunca mais abandonando-o. Com ele, podia-se golpear; podia-se afinar-lhe a ponta, transformando-o em lança; podia-se curvá-lo e atar-lhe as extremidades; e podia-se cortá-lo longitudinalmente, formando flechas. Mas, paralelamente a todas essas metamorfoses, o bastão prosseguiu sendo também o que era no princípio: um instrumento mediante o qual se cria distância, afastando o homem do contato e da temida possibilidade de ser agarrado. Assim como o caminhar ereto jamais perdeu totalmente seu pathos, assim também o bastão, em todas as formas que assumiu, jamais se fez comedido: na qualidade de vara de condão e cetro, ele permaneceu o atributo de duas importantes formas de poder.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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