quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Castelos de Açúcar Sobre o Solo Queimado de Cuba(3)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     15. Castelos de Açúcar Sobre o Solo Queimado de Cuba
          Em 1762, os ingleses se apossaram meteoricamente de Havana. Na época, as pequenas plantações de tabaco e a criação de gado eram as bases da economia rural da ilha; Havana, praça forte militar, evidenciava um considerável desenvolvimento dos artesanatos, contava com uma importante fundição que fabricava canhões e com o primeiro estaleiro da América Latina apto à construção em grande escala de navios mercantes e navios de guerra. Onze meses foram suficientes para que os invasores britânicos introduzissem uma quantidade de escravos que, normalmente, ingressaria no país em cinco anos, e desde então a economia cubana foi modelada pela demanda estrangeira de açúcar: os escravos produziriam a cobiçada mercadoria destinada ao mercado mundial, e sua suculenta mais-valia seria desde então desfrutada pela oligarquia local e pelos interesses imperialistas.
     Moreno Fraginals descreve, com dados eloquentes, o auge violento do açúcar nos anos seguintes à ocupação britânica. O monopólio comercial espanhol se despedaçara; de resto, estavam já desfeitos os freios ao ingresso de escravos. O engenho absorvia tudo, homens e terras. Os operários do estaleiro, da fundição e os inúmeros e pequenos artesãos, cuja contribuição teria sido fundamental para o crescimento industrial, afluíam para os engenhos; os pequenos agricultores que plantavam tabaco nas veigas ou frutas nos pomares, vitimados pelo bestial arrasamento das terras pelos canaviais, integravam-se também à produção do açúcar. A plantação extensiva ia reduzindo a fertilidade dos solos; multiplicavam-se nos campos cubanos as torres dos engenhos, e cada engenho exigia cada vez mais terras. O fogo devorava as plantações de fumo, as matas, e aniquilava as pastagens. Em 1792 o charque, que poucos anos antes era um artigo cubano de exportação, chegava em grande quantidade do estrangeiro, e Cuba continuaria a importá-lo no futuro [1]; esmoreciam o estaleiro e a fundição, caía verticalmente a produção de tabaco; a jornada de trabalho dos escravos do açúcar chegava a vinte horas. Sobre as terras fumegantes consolidava-se o poder da “sacarocracia”. Em fins do século XVIII, a euforia da cotação internacional nas nuvens, a especulação voava: os preços da terra se multiplicaram por vinte em Güines; em Havana, o juro real do dinheiro era oito vezes mais alto do que o legal; em todo o território de Cuba a tarifa dos batismos, dos enterros e das missas subia na proporção da incontrolável carestia de negros e de bois.
     Os cronistas de outros tempos diziam que era possível percorrer Cuba de ponta a ponta à sombra das palmeiras gigantes e das frondosas matas, onde abundavam a caoba e o cedro, o ébano e os dagames. É possível admirar as madeiras preciosas de Cuba nas mesas e nas janelas do Escorial ou nas portas do palácio real de Madri, mas a invasão da cana fez arder em Cuba, com vários incêndios sucessivos, as melhores matas virgens entre as quantas que antes cobriam seu solo. Nos mesmos anos em que assolava sua própria floresta, Cuba se tornava o principal país comprador de madeira dos Estados Unidos. A cultura extensiva da cana, cultura de rapina, implicou não só a morte das matas, mas também, a longo prazo, “a morte da fabulosa fertilidade da ilha” [2]. O mato era entregue às chamas, e a erosão logo mordia os solos indefesos; milhares de riachos secaram. Atualmente, o rendimento por hectare nas plantações açucareiras de Cuba é três vezes inferior ao do Peru, e quatro vezes e meia inferior ao do Havaí [3]. A irrigação e a fertilização da terra são tarefas prioritárias da Revolução Cubana. Multiplicam-se as represas, grandes e pequenas, enquanto se canalizam os campos e se espalham os adubos sobre as castigadas terras.
     A “sacarocracia” deu um polimento em sua enganosa fortuna enquanto sacramentava a dependência de Cuba, cuja economia adoeceu de diabetes. Entre aqueles que devastaram as terras mais férteis havia personagens de refinada cultura europeia, que sabiam reconhecer um Brueghel autêntico e podiam comprá-lo; de suas frequentes viagens a Paris traziam vasos etruscos e ânforas gregas, gobelinos franceses e biombos Ming, paisagens e retratos dos mais valorizados artistas britânicos. Surpreende-me descobrir, na cozinha de uma mansão de Havana, um gigantesco cofre dotado de combinação secreta, que uma condessa usava para guardar sua baixela. Até 1959 não se construíam fábricas, só castelos de açúcar: o açúcar admitia e demitia ditadores, proporcionava ou negava trabalho aos operários, decidia o ritmo das danças dos milhões e as terríveis crises. A cidade de Trinidad, hoje, é um cadáver resplandecente. Em meados do século XIX havia em Trinidad mais de 40 engenhos, que produziam 700 mil arrobas de açúcar. Os camponeses pobres que cultivavam o tabaco foram deslocados pela violência, e a zona, que antes era também de criação de gado e exportadora de carne, comia carne trazida de fora. Brotaram palácios coloniais, com seus portais de sombra cúmplice, seus aposentos de altos tetos, lustres com chuvas de cristais, tapetes persas, um silêncio de veludo, no ar as ondas do minueto e os espelhos nos salões para refletir a imagem dos cavalheiros de peruca e sapatos de fivela. Agora o que existe ali é o testemunho dos grandes esqueletos de mármore e pedra, a soberba dos campanários mudos, as caleches invadidas pelo pasto. De Trinidad dizem hoje que é “a cidade dos teve”, pois seus sobreviventes brancos sempre evocam algum antepassado que “teve” o poder e a glória. Mas sobreveio a crise de 1857, caíram os preços do açúcar e a cidade caiu com eles para nunca mais levantar-se. [4]
     Um século depois, quando os guerrilheiros de Sierra Maestra conquistaram o poder, Cuba continuava com seu destino atado à cotação do açúcar. “O povo que confia sua subsistência a um só produto, suicida-se”, profetizara o herói nacional José Martí. Em 1920, com o açúcar a 22 centavos a libra, Cuba bateu o recorde mundial de exportação por habitante, superando até a Inglaterra, e teve a maior renda per capita da América Latina. Mas nesse mesmo ano, em dezembro, o preço do açúcar caiu quatro centavos, e em 1921 se desencadeou o furacão da crise: quebraram numerosas centrais açucareiras, que foram adquiridas por interesses norte-americanos, e todos os bancos cubanos e espanhóis, inclusive o próprio Banco Nacional. Sobreviveram apenas as sucursais dos bancos dos Estados Unidos [5]. Uma economia tão dependente e vulnerável como a de Cuba não conseguiria escapar, mais tarde, do impacto feroz da crise de 1929 nos Estados Unidos: o preço do açúcar chegou a baixar para bem menos de um centavo, em 1932, e em três anos as exportações, em valor, reduziram-se à quarta parte. O índice do desemprego em Cuba, nesses anos, “dificilmente terá sido igualado em qualquer país” [6]. O desastre de 1921 foi provocado pela queda do preço do açúcar no mercado dos Estados Unidos, e dos Estados Unidos não tardou a chegar um crédito de cinco milhões de dólares: na garupa do crédito, chegou também o general Crowder; sob o pretexto de controlar a utilização dos fundos, Crowder passou a governar de fato o país. Graças aos seus bons ofícios, a ditadura de Machado chegou ao poder em 1921, mas a grande depressão dos anos 30, com o país paralisado por uma greve geral, derrubou esse regime de sangue e fogo.
     Aquilo que ocorria com os preços se repetia com o volume das exportações. Desde 1948, Cuba recuperou sua quota para suprir a terça parte do mercado norte-americano do açúcar, a preços mais baixos do que os recebidos pelos produtores dos Estados Unidos, mas mais altos e mais estáveis do que os preços do mercado internacional. Anteriormente, já os Estados Unidos deixara de taxar as importações de açúcar cubano, em troca de privilégios similares concedidos ao ingresso de artigos norte americanos em Cuba. Todos esses favores consolidaram a dependência. “O povo que compra manda, o povo que vende serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade; o povo que quer morrer vende para um só povo, e o que quer salvar-se vende para mais de um”, disse Martí, e repetiu Che Guevara na conferência da OEA em Punta del Este, em 1961. A produção era arbitrariamente limitada pelas necessidades de Washington. O nível de 1925, uns cinco milhões de toneladas, continuava sendo a média nos anos 50: o ditador Fulgêncio Batista assaltou o poder, em 1952 – na garupa da maior safra até então conhecida, mais de 7 milhões –, com a missão de restabelecer aquela anormal normalidade, e no ano seguinte, obediente à demanda do norte, a produção caiu para quatro [7].


[1] Já estavam ativas as charqueadas no Rio da Prata. Argentina e Uruguai, que na época não existiam separados e nem se chamavam assim, tinham adaptado suas economias à exportação em grande escala de carne seca e salgada, couros, banha e sebo. Brasil e Cuba, os dois grandes centros escravistas do século XIX, foram excelentes mercados para o charque, um alimento muito barato, de fácil transporte e não menos fácil armazenagem, que não se decompunha no calor do trópico. Os cubanos ainda chamam o charque de “montevidéu”, mas o Uruguai deixou de vendê-lo para Cuba em 1965, somando se ao bloqueio determinado pela OEA. Foi assim que o Uruguai, estupidamente, perdeu o último mercado que lhe restava para esse produto. Tinha sido Cuba, no final do século XVIII, o primeiro mercado que se abriu para a carne uruguaia, embarcada em delgadas mantas secas. BARRÁN, José Pedro & NAHUM, Benjamin. Historia rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo, 1967.
[2] FRAGINALS, op. cit. Até pouco tempo navegavam pelo rio Sagua os palanqueros. “Levam uma comprida vara com ponta de ferro. Com ela vão ferindo o leito do rio, até que cravam num tronco (...). Assim, dia a dia, tiram do fundo do rio os restos das árvores que o açúcar aniquilou. Vivem dos cadáveres das matas.”
[3] FURTADO, Celso. La economía latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución Cubana . Santiago de Chile, 1969; México, 1969.
[4] Moreno Fraginals agudamente observa que os nomes dos engenhos inaugurados no século XIX refletiam os altos e baixos da curva açucareira: Esperanza, Nueva Esperanza, Atrevido, Casualidad, Aspirante, Conquista, Confianza, El Buen Suceso; Apuro, Angustia, Desengaño. Havia quatro engenhos com o nome premonitório de Desengaño.
[5] DUMONT, René. Cuba. Intento de crítica construtiva. Barcelona, 1965.
[6] FURTADO, La economía latinoamericana..., op. cit.
[7] O diretor do programa do açúcar no Ministério da Agricultura dos Estados Unidos declarou, tempos depois da revolução: “Desde que Cuba saiu de cena, não contamos com a proteção desse país, o maior exportador mundial, já que dispunha sempre de reservas para atender nosso mercado, quando necessário”. RUIZ GARCÍA, Enrique. América Latina: anatomía de una revolución. Madrid, 1966.

Nenhum comentário:

Postar um comentário