segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: A Revolução Ante a Estrutura da Impotência(4)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     16. A Revolução Ante a Estrutura da Impotência
          A proximidade geográfica e o surgimento do açúcar de beterraba nos campos da França e da Alemanha, durante as guerras napoleônicas, tornaram os Estados Unidos o principal cliente do açúcar das Antilhas. Já em 1850, os Estados Unidos eram titulares da terça parte do comércio de Cuba, vendiam-lhe e lhe compravam mais do que a Espanha, embora fosse a ilha uma colônia espanhola, e a bandeira das faixas e das estrelas tremulava nos mastros de mais da metade das embarcações que ali aportavam. Por volta de 1859, um viajante espanhol encontrou no interior de Cuba, em remotos povoadinhos, máquinas de costura fabricadas nos Estados Unidos [1]. As principais ruas de Havana foram calçadas com blocos de granito de Boston.
     Quando despontava o século XX, lia-se no Louisiana Planter: “Pouco a pouco, toda a ilha de Cuba vai passando para as mãos de cidadãos norte-americanos, e esse é o meio mais simples e seguro de conseguir sua anexação aos Estados Unidos”. No Senado norte-americano já se falava de uma nova estrela na bandeira; derrotada a Espanha, o general Leonard Wood governava a ilha. Ao mesmo tempo, passavam às mãos norte-americanas as Filipinas e Porto Rico [2]. “A nós nos foram outorgados pela guerra”, dizia o presidente McKinley, incluindo Cuba, “e com a ajuda de Deus e em nome do progresso da humanidade e da civilização, é nosso dever responder a essa grande confiança.” Em 1902, Tomás Estrada Palma teve de renunciar à cidadania norte-americana que havia adotado no exílio: as tropas norte-americanas de ocupação o converteram no primeiro presidente de Cuba. Em 1960, o ex-embaixador norte-americano em Cuba, Earl Smith, declarou perante uma subcomissão do Senado: “Até a subida de Castro ao poder, os Estados Unidos tinham em Cuba uma influência de tal modo irresistível que o embaixador norte-americano era o segundo personagem do país, eventualmente até mais importante do que o presidente cubano”.
     Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo o seu açúcar para os Estados Unidos. Cinco anos antes, um jovem advogado revolucionário havia profetizado acertadamente, diante de quem o julgava pelo assalto ao quartel Moncada, que a história o absolveria; ele dissera em sua vibrante defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria produtora de matéria-prima. Nós exportamos açúcar para importar caramelos” [3]. Cuba comprava dos Estados Unidos não só os automóveis e as máquinas, os produtos químicos, o papel e o vestuário, mas também arroz e feijão, alho e cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami, pães de Atlanta e até ceias de luxo de Paris. O país do açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia, embora apenas a terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente e a metade das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as empresas nada produziam [4]. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47 por cento da área açucareira total e faturavam ao redor de 180 milhões de dólares por safra. A riqueza do subsolo – níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio – fazia parte das reservas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas exploravam os minerais tão só de acordo com as variáveis urgências do exército e da indústria do norte. Em 1958, havia em Cuba mais prostitutas registradas do que operários mineiros [5]. Um milhão e meio de cubanos sofriam desemprego total ou parcial, segundo investigações de Seuret y Pino, citadas por Núñez Jiménez.
     A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O poder de compra das exportações cubanas entre 1952 e 1956 não superava o nível de 30 anos antes [6], embora as necessidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos 30, quando a crise consolidou a dependência da economia cubana em lugar de contribuir para rompê-la, chegara-se ao cúmulo de desmontar fábricas recém-instaladas para vendê-las a outros países. Quando triunfou a revolução, no primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba era muito pobre e lento, mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as poucas fábricas com tecnologia moderna eram telecomandadas dos Estados Unidos. Um economista cubano, Regino Boti, coautor das teses econômicas dos guerrilheiros da serra, cita o exemplo de uma filial da Nestlé que produzia leite condensado em Bayamo: “Em caso de acidente, o técnico telefonava para Connecticut e informava que em seu setor tal ou qual coisa deixara de funcionar. Sem demora recebia as instruções sobre as providências cabíveis e as tomava mecanicamente (...). Se a operação não resolvesse, quatro horas depois chegava um avião com uma equipe de especialistas de alta qualificação que arrumava tudo. Depois da nacionalização já não se podia ligar para pedir socorro, e os raros técnicos que tinham condições de reparar defeitos secundários tinham ido embora.” [7] O testemunho ilustra cabalmente as dificuldades que a revolução encontrou desde que se lançou à aventura de converter a colônia em pátria.
     Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da dependência e não lhe foi nada fácil tratar de andar por conta própria. Em 1958, metade das crianças cubanas não ia à escola, mas a ignorância, como várias vezes denunciou Fidel Castro, era muito maior e mais grave do que o analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um exército de jovens voluntários para ensinar todos os cubanos a ler e escrever, e os resultados assombraram o mundo: atualmente, segundo o Escritório Internacional de Educação da UNESCO, Cuba apresenta a menor porcentagem de analfabetos e a maior porcentagem de população escolar, primária e secundária, da América Latina. No entanto, a herança maldita da ignorância não pode ser superada de um dia para outro – tampouco em doze anos. A falta de quadros técnicos capazes, a incompetência da administração, a desorganização do aparato produtivo e a temerosa resistência à imaginação criadora e à liberdade de decisão continuam interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas a despeito de todo o sistema de impotências, forjado por quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está nascendo de novo, com um entusiasmo que não cessa: multiplica suas forças, alegremente, ante os obstáculos.

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: A Revolução Ante a Estrutura da Impotência(4)
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[1] JENKS, Leland H. Nuestra colonia en Cuba. Buenos Aires, 1960.
[2] Porto Rico, outra feitoria açucareira, foi aprisionado. Do ponto de vista norte americano, os porto-riquenhos não são suficientemente bons para viver numa pátria própria, ainda que o sejam, sim, para morrer no front do Vietnã em nome de uma pátria que não é a sua. Num cálculo proporcional à população, o “estado livre associado” de Porto Rico tem mais soldados lutando no sudeste asiático do que qualquer estado dos Estados Unidos. Os porto-riquenhos que resistem ao serviço militar obrigatório no Vietnam são enviados aos cárceres de Atlanta, com pena de cinco anos. Ao serviço militar nas fileiras norte-americanas juntam se outras humilhações herdadas da invasão de 1898 e abençoadas por lei (por lei do Congresso dos Estados Unidos). Porto Rico conta com uma representação simbólica no Congresso norte-americano, sem voto e praticamente sem voz. Em troca deste direito, um estatuto colonial: Porto Rico possuía, até a ocupação norte-americana, uma moeda própria, e mantinha um próspero comércio com os principais mercados. Hoje sua moeda é o dólar, e as taxas de sua alfândega são fixadas em Washington, que decide sobre tudo o que se relaciona com comércio externo e interno da ilha. O mesmo ocorre com as relações exteriores, o transporte, as comunicações, os salários e as condições de trabalho. E a Corte Federal dos Estados Unidos é que julga os porto-riquenhos; o exército local integra o exército do norte. A indústria e o comércio estão em mãos de interesses norte-americanos privados. A desnacionalização quis tornar-se absoluta por via da emigração: a miséria compeliu mais de um milhão de porto-riquenhos a buscar melhor sorte em Nova York, ao preço da fratura de sua identidade nacional. Ali, formam um subproletariado que se aglomera nos bairros mais sórdidos.
[3] CASTRO, Fidel. La Revolución Cubana (discursos). Buenos Aires, 1959.
[4] NÚÑEZ JIMÉNEZ, A. Geografía de Cuba. La Habana, 1959.
[5] DUMONT, op. cit.
[6] SEERS, Dudley, IANCHI, Andrés, JOLLY, Richard & NOLFF, Max. Cuba, the Economic and Social Revolution. Chapel Hill, North Carolina, 1964.
[7] KAROL, K. S. Les guérrilleros au pouvoir. L’itinéraire politique de la révolution cubaine. Paris, 1970.

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