PRIMEIRA PARTE
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
16. A Revolução Ante a Estrutura da Impotência
A proximidade geográfica e o surgimento do açúcar de
beterraba nos campos da França e da Alemanha, durante as
guerras napoleônicas, tornaram os Estados Unidos o
principal cliente do açúcar das Antilhas. Já em 1850, os
Estados Unidos eram titulares da terça parte do comércio de
Cuba, vendiam-lhe e lhe compravam mais do que a
Espanha, embora fosse a ilha uma colônia espanhola, e a
bandeira das faixas e das estrelas tremulava nos mastros de
mais da metade das embarcações que ali aportavam. Por
volta de 1859, um viajante espanhol encontrou no interior
de Cuba, em remotos povoadinhos, máquinas de costura
fabricadas nos Estados Unidos
[1]. As principais ruas de
Havana foram calçadas com blocos de granito de Boston.
Quando despontava o século XX, lia-se no Louisiana
Planter: “Pouco a pouco, toda a ilha de Cuba vai passando
para as mãos de cidadãos norte-americanos, e esse é o
meio mais simples e seguro de conseguir sua anexação aos
Estados Unidos”. No Senado norte-americano já se falava de
uma nova estrela na bandeira; derrotada a Espanha, o
general Leonard Wood governava a ilha. Ao mesmo tempo,
passavam às mãos norte-americanas as Filipinas e Porto
Rico
[2]. “A nós nos foram outorgados pela guerra”, dizia o
presidente McKinley, incluindo Cuba, “e com a ajuda de
Deus e em nome do progresso da humanidade e da
civilização, é nosso dever responder a essa grande
confiança.” Em 1902, Tomás Estrada Palma teve de
renunciar à cidadania norte-americana que havia adotado
no exílio: as tropas norte-americanas de ocupação o
converteram no primeiro presidente de Cuba. Em 1960, o
ex-embaixador norte-americano em Cuba, Earl Smith,
declarou perante uma subcomissão do Senado: “Até a
subida de Castro ao poder, os Estados Unidos tinham em
Cuba uma influência de tal modo irresistível que o
embaixador norte-americano era o segundo personagem do
país, eventualmente até mais importante do que o
presidente cubano”.
Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo o seu
açúcar para os Estados Unidos. Cinco anos antes, um jovem
advogado revolucionário havia profetizado acertadamente,
diante de quem o julgava pelo assalto ao quartel Moncada,
que a história o absolveria; ele dissera em sua vibrante
defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria produtora de
matéria-prima. Nós exportamos açúcar para importar
caramelos”
[3]. Cuba comprava dos Estados Unidos não só
os automóveis e as máquinas, os produtos químicos, o
papel e o vestuário, mas também arroz e feijão, alho e
cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami,
pães de Atlanta e até ceias de luxo de Paris. O país do
açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras
que consumia, embora apenas a terça parte de sua
população ativa tivesse trabalho permanente e a metade
das terras das centrais açucareiras fossem extensões
baldias onde as empresas nada produziam
[4]. Treze
engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47 por
cento da área açucareira total e faturavam ao redor de 180
milhões de dólares por safra. A riqueza do subsolo – níquel,
ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio – fazia parte das
reservas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas
exploravam os minerais tão só de acordo com as variáveis
urgências do exército e da indústria do norte. Em 1958,
havia em Cuba mais prostitutas registradas do que
operários mineiros
[5]. Um milhão e meio de cubanos
sofriam desemprego total ou parcial, segundo investigações
de Seuret y Pino, citadas por Núñez Jiménez.
A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O
poder de compra das exportações cubanas entre 1952 e
1956 não superava o nível de 30 anos antes
[6], embora as
necessidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos
30, quando a crise consolidou a dependência da economia
cubana em lugar de contribuir para rompê-la, chegara-se ao
cúmulo de desmontar fábricas recém-instaladas para
vendê-las a outros países. Quando triunfou a revolução, no
primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba
era muito pobre e lento, mais da metade da produção
estava concentrada em Havana e as poucas fábricas com
tecnologia moderna eram telecomandadas dos Estados
Unidos. Um economista cubano, Regino Boti, coautor das
teses econômicas dos guerrilheiros da serra, cita o exemplo
de uma filial da Nestlé que produzia leite condensado em Bayamo: “Em caso de acidente, o técnico telefonava para
Connecticut e informava que em seu setor tal ou qual coisa
deixara de funcionar. Sem demora recebia as instruções
sobre as providências cabíveis e as tomava mecanicamente
(...). Se a operação não resolvesse, quatro horas depois
chegava um avião com uma equipe de especialistas de alta
qualificação que arrumava tudo. Depois da nacionalização já
não se podia ligar para pedir socorro, e os raros técnicos
que tinham condições de reparar defeitos secundários
tinham ido embora.”
[7] O testemunho ilustra cabalmente as
dificuldades que a revolução encontrou desde que se lançou
à aventura de converter a colônia em pátria. Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da
dependência e não lhe foi nada fácil tratar de andar por
conta própria. Em 1958, metade das crianças cubanas não
ia à escola, mas a ignorância, como várias vezes denunciou
Fidel Castro, era muito maior e mais grave do que o
analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um
exército de jovens voluntários para ensinar todos os
cubanos a ler e escrever, e os resultados assombraram o
mundo: atualmente, segundo o Escritório Internacional de
Educação da UNESCO, Cuba apresenta a menor
porcentagem de analfabetos e a maior porcentagem de
população escolar, primária e secundária, da América
Latina. No entanto, a herança maldita da ignorância não
pode ser superada de um dia para outro – tampouco em
doze anos. A falta de quadros técnicos capazes, a
incompetência da administração, a desorganização do
aparato produtivo e a temerosa resistência à imaginação
criadora e à liberdade de decisão continuam interpondo
obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas a
despeito de todo o sistema de impotências, forjado por
quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está
nascendo de novo, com um entusiasmo que não cessa:
multiplica suas forças, alegremente, ante os obstáculos.
continua na página 122...
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Febre do Ouro, Febre da Prata
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: A Revolução Ante a Estrutura da Impotência(4)
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[1] JENKS, Leland H. Nuestra colonia en Cuba. Buenos Aires, 1960.
[2] Porto Rico, outra feitoria açucareira, foi aprisionado. Do ponto de vista norte
americano, os porto-riquenhos não são suficientemente bons para viver numa
pátria própria, ainda que o sejam, sim, para morrer no front do Vietnã em nome
de uma pátria que não é a sua. Num cálculo proporcional à população, o “estado
livre associado” de Porto Rico tem mais soldados lutando no sudeste asiático do
que qualquer estado dos Estados Unidos. Os porto-riquenhos que resistem ao
serviço militar obrigatório no Vietnam são enviados aos cárceres de Atlanta,
com pena de cinco anos. Ao serviço militar nas fileiras norte-americanas juntam
se outras humilhações herdadas da invasão de 1898 e abençoadas por lei (por
lei do Congresso dos Estados Unidos). Porto Rico conta com uma representação
simbólica no Congresso norte-americano, sem voto e praticamente sem voz. Em
troca deste direito, um estatuto colonial: Porto Rico possuía, até a ocupação
norte-americana, uma moeda própria, e mantinha um próspero comércio com os
principais mercados. Hoje sua moeda é o dólar, e as taxas de sua alfândega são
fixadas em Washington, que decide sobre tudo o que se relaciona com comércio
externo e interno da ilha. O mesmo ocorre com as relações exteriores, o
transporte, as comunicações, os salários e as condições de trabalho. E a Corte
Federal dos Estados Unidos é que julga os porto-riquenhos; o exército local
integra o exército do norte. A indústria e o comércio estão em mãos de
interesses norte-americanos privados. A desnacionalização quis tornar-se
absoluta por via da emigração: a miséria compeliu mais de um milhão de porto-riquenhos a buscar melhor sorte em Nova York, ao preço da fratura de sua
identidade nacional. Ali, formam um subproletariado que se aglomera nos
bairros mais sórdidos.
[3] CASTRO, Fidel. La Revolución Cubana (discursos). Buenos Aires, 1959.
[4] NÚÑEZ JIMÉNEZ, A. Geografía de Cuba. La Habana, 1959.
[5] DUMONT, op. cit.
[6] SEERS, Dudley, IANCHI, Andrés, JOLLY, Richard & NOLFF, Max. Cuba, the
Economic and Social Revolution. Chapel Hill, North Carolina, 1964.
[7] KAROL, K. S. Les guérrilleros au pouvoir. L’itinéraire politique de la révolution
cubaine. Paris, 1970.
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