volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Segundo
Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin.
em busca do tempo perdido
volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Segundo
Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin.
continuando...
Estávamos tranquilos de tal maneira que uma americana entrou e saiu, desculpando-se
por se haver enganado de quarto.
- Você vai me trazer essa moça - disse eu, depois de ter eu próprio batido a porta com toda
a força, o que levou um outro groom a verificar se não havia uma janela aberta.
- Você se lembra bem: Srta. Albertine Simonet. Aliás, está no envelope. Você só precisa
lhe dizer que isto vem de minha parte. Ela virá de muito bom grado - acrescentei para encorajá-lo
e não me humilhar demais.
- É claro! -
Mas não, ao contrário, não é nada natural que vir de Berneville até aqui.
- Com grado. É muito incômodo venha de bom grado que venha consigo. - Sim, sim, sim,
sim, compreendo! -
Você lhe dizendo: “muito bem” - respondia ele, com esse tom preciso e fino que há muito
"boa impressão", porque eu sabia que era a qual já deixara de me causar a nitidez aparente,
muita estupidez e indeterminação. Mecânico recobria-se.
- Não ficarei fora por muito tempo – dizia-
- A que horas terá voltado?
O ascensorista que, levando ao extremo a regra ditada por Bélise para evitar reincidência
do mesmo compasso, contentava-se sempre com uma só negativa.
- Posso muito bem ir até lá. Justamente as saídas tinham sido suspensas há pouco porque
havia um almoço de vinte talheres. E era a minha vez de sair à tardinha. É justo que eu saia um
pouco esta noite. Levo a minha bicicleta. Assim irei depressa. -
E uma hora depois ele chegava sozinho dizendo:
- O senhor esperou bastante, o porteiro não vai ficar aborrecido comigo? - Ah, obrigado, o
senhor Paul? Não sabe onde estive. Nem o chefe da portaria tem nada a dizer. -
Mas certa vez em que lhe dissera:
- É absolutamente necessário, que a traga -, ele me falou sorrindo:
- O senhor sabe que não a encontrei. Ela não está aí. E não pude permanecer por muito
tempo; tinha medo, de ser como o meu colega, que foi enviado do hotel - (pois o ascensorista, que
dizia reentrar no caso de uma profissão na qual se entra pela primeira vez: "eu gostaria muito de
reentrar para os Correios", em compensação, fosse para adoçar a coisa, se se tratasse dele,
fosse para insinuá-la mais adocicada e perfidamente, se se tratasse de outrem, suprimia o reinicial. Não era por maldade que ele sorria, e dizia:
"sei que ele foi enviado sim por timidez.”
Julgava diminuir a importância de sua falta, levando-a na brincadeira.
Da mesma forma, se me havia dito:
- O senhor sabe que não a encontrei não era porque julgasse que eu de fato já o sabia.
Pelo contrário, não duvidava que eu o ignorasse e, principalmente, assustava-se como para evitar
a si próprio as angústias que, isso causaria. Assim, dizia "o senhor sabe" pretendia ao pronunciar
as frases destinadas a revelar-me aquilo. Jamais nos deveríamos encolerizar contra aqueles que,
apanhados em falta por nós, põem-se a troçar. Eles procedem assim não porque zombem, mas
por tremerem à ideia de que possamos estar descontentes. Testemunhemos uma grande
piedade, demonstremos uma grande ternura por aqueles que riem. Semelhante a um verdadeiro
acesso, a perturbação do ascensorista lhe trouxera não apenas um rubor apoplético, mas também
uma alteração da linguagem, que subitamente se tornara familiar. Acabou por explicar-me que
Albertine não estava em Épreville, que deveria regressar somente às nove horas e que se às
vezes, o que significava por acaso, voltasse mais cedo, lhe dariam o meu recado e, em todo caso,
ela estaria comigo antes de uma da madrugada.
Aliás, ainda não foi naquela noite que principiou a tomar consistência a minha cruel
desconfiança. Não, para dizê-lo de imediato e embora o caso haja ocorrido somente algumas
semanas depois, ela nasceu de uma observação de Cottard. Naquele dia, Albertine e suas amigas
tinham desejado arrastar-me ao cassino de Incarville, e por sorte minha eu não as teria
encontrado (pois queria fazer uma visita à Sra. Verdurin que me convidara várias vezes) se não
fosse detido exatamente em Incarville por uma pane no trem que ia demorar algum tempo para
ser reparada. Andando de um lado para o outro à espera de que terminassem, encontrei-me de
súbito frente a frente com o doutor Cottard, que fora a Incarville para dar uma consulta. Hesitei
quase em cumprimentá-lo, visto que não respondera a nenhuma de minhas cartas. Mas a
amabilidade não se manifesta em todo mundo da mesma forma. Não tendo sido restringido pela
educação às mesmas regras fixas de polidez das pessoas da sociedade, Cottard era cheio de
boas intenções que se ignoravam, que se negavam, até o dia em que ele tinha ocasião de
manifestá-las. Desculpou-se, havia certamente recebido as minhas cartas, havia assinalado a
minha presença aos Verdurin, que tinham muita vontade de me ver e a cuja casa me aconselhou
que fosse. Queria mesmo levar-me até lá na mesma noite, pois ia pegar de volta o trenzinho local
para jantar com eles. Como eu hesitasse e ele ainda dispunha de algum tempo para tomar o trem,
pois a pane ia demorar para ser reparada, fi-lo entrar no pequeno cassino, um daqueles que me
haviam parecido tão tristes na noite da minha primeira chegada, e agora estava cheio do tumulto
das moças que, por falta de cavalheiro, dançavam juntas. Andrée veio ter comigo, deslizando; eu
contava partir em breve com Cottard para a casa dos Verdurin, quando recusei definitivamente o
seu oferecimento, possuído pelo desejo muito vivo de ficar com Albertine. É que acabava de ouvi-la rir. E esse riso evocava logo as carnações róseas, as perfumadas paredes, contra as quais
parecia que acabara de se esfregar e de que o acre sensual e revelador como um aroma de
gerânio, parecia transportar consigo algumas partículas quase imponderáveis, irritantes e
secretas.
Uma das moças que eu não conhecia sentou-se ao piano, e Andrée pediu a Albertine que
valsasse com ela. Feliz, nesse pequeno cassino, por pensar que ia permanecer com aquelas
moças, observei a Cottard como dançavam bem. Mas ele, do ponto de vista especial do médico, e
com a educação de quem não levava em conta o fato de eu conhecer aquelas moças, às quais no
entanto me vira cumprimentar, respondeu:
- Sim, mas são bem imprudentes os pais que deixam as filhas adquirirem semelhante
hábitos. Certamente eu não permitiria às minhas que viessem até aqui, ao menos são bonitas?
Não distingo suas feições. Olhe - acrescenta mostrando-me Albertine e Andrée que valsavam
lentamente, apertadas uma contra a outra -, esqueci o meu pince-nez e não enxergo bem, mas
com certeza elas estão no auge do gozo. Não se sabe muito bem que é principalmente pelos
seios que elas o experimentam. E repare, os seios delas tocam completamente. -
De fato, o toque não cessara entre os de Andrée e os de Albertine.
Não sei se elas ouviram ou adivinharam a reflexão, do Cottard, mas desligaram-se
levemente uma da outra, sempre continuando a valsar. Nesse momento, Andrée disse uma
palavra a Albertine, e esta riu com o mesmo riso penetrante e profundo que eu escutara há pouco.
Mas a perturbação que me causou desta vez foi apenas cruel; Albertine dava impressão de
mostrar desse modo, de fazer notar a Andrée, algum frêmito voluptuoso e secreto. Aquele riso
soava como os primeiros ou os últimos acordes de uma festa desconhecida.
Saí com Cottard, conversando com ele, distraído, só por instantes pensando na cena que
acabava de presenciar. Não é que a conversa de Cottard fosse interessante. Naquele momento
até se tornara azeda, pois acabávamos de ver o doutor Du Boulbon, que não nos percebeu. Ele
viera passar algum tempo do outro lado da baía de Balbec, onde era muito consultado. Ora,
Cottard, embora habitualmente declarasse que não praticava medicina nas férias, havia esperado
formar nessa costa uma clientela de escol, a que Du Boulbon se constituía num obstáculo. Por
certo o médico de Balbec não podia incomodar a Cottard. Não passava de um médico bastante
consciencioso que sabia tudo e a quem não se podia falar no menor prurido sem que ele
indicasse logo, numa fórmula complexa, a pomada, loção ou tingimento adequados. Como dizia
Marie Gineste em seu bonito linguajar, ele sabia "encantar" as feridas e as chagas. Mas não tinha
qualquer ilustração. E de fato já causara um pequeno aborrecimento a Cottard. Este, desde que
desejara trocar sua cátedra pela de terapêutica, se fizera especialista em intoxicações, perigosa
inovação da medicina que serve para renovar os rótulos dos farmacêuticos, dos quais todo
produto é declarado inteiramente atóxico, ao contrário das drogas similares, e até desintoxicante.
É a propaganda da moda; mal sobrevive, por baixo, em outras ilegíveis, como um débil vestígio de
uma moda precedente, a afirmativa de que o produto foi cuidadosamente antisseptizado. As
intoxicações também servem para que o doente se tranquilize, ao saber alegremente que sua
paralisia é apenas uma enfermidade tóxica.
Ora, tendo um grão-duque vindo passar alguns dias em Balbec e estando com um olho
extremamente inchado, mandara trazer Cottard, o qual, em troca de algumas cédulas de cem
francos (o professor não se incomodava por menos), atribuíra a inflamação a um estado tóxico e
prescrevera um regime desintoxicante. Visto que o olho não desinchava, o grão-duque recorreu
ao médico ordinário de Balbec, o qual em cinco minutos retirou um grão de poeira. No dia
seguinte não havia mais nada. Entretanto, um rival mais perigoso era uma celebridade em
doenças nervosas.
Era um homem rubro, jovial, a um tempo porque o convívio com o descontrole nervoso não
o impedia de gozar de muito boa saúde, mas também para tranquilizar seus doentes com o riso
grosso de seus bons-dias e de seu até logo, pronto para ajudar com seus braços de atleta a lhes
vestir mais tarde a camisa-de-força. Não obstante, quando se conversava com ele em sociedade,
fosse de política ou de literatura, ele escutava com uma benevolência atenta, como se indagasse:
"De que se trata?", sem se pronunciar de imediato, como se se tratasse de uma consulta. Mas
enfim, este, fosse qual fosse o talento que tivesse, era um especialista. Assim, toda a raiva de
Cottard recaía sobre Du Boulbon. Aliás, deixei logo o professor amigo dos Verdurin, para recolher
me, prometendo ir vê-los.
Era profundo o mal que me haviam feito suas palavras no tocante a Albertine e Andrée.
Mas os piores sofrimentos não foram sentidos por mim de imediato, como ocorre com esses
venenos que só agem depois de um certo tempo.
Albertine não veio na noite em que o ascensorista fora buscá-la, apesar da segurança
deste. Por certo, os encantos de uma pessoa são uma causa menos comum de amor que uma
frase do tipo desta:
"Não, esta noite não estarei livre."
Não se dá atenção a essa frase se se está em presença de amigos; estamos alegres toda
a noite, não nos preocupamos com determinada imagem; durante esse tempo, ela está
mergulhada na mistura necessária; ao regressar, encontra-se o clichê pronto e perfeitamente
nítido. Percebe-se que a vida já não é aquela que se teria deixado por uma ninharia na véspera,
pois, se continuamos a não temer a morte, não mais temos coragem de pensar na separação.
Além disso, não a partir de uma da madrugada (hora que o ascensorista havia fixado), mas das
três horas, não mais experimentei como outrora o sofrimento de sentir diminuir as minhas chances
de que ela aparecesse. A certeza de que não viria trouxe-me um sossego absoluto, alívio; essa
noite era simplesmente uma noite como tantas outras em geral eu não a via, e dessa ideia eu
começava. E desde então, destacando-se à esse Nada aceito, tornava-se doce o pensamento de
que a veria no dia seguinte ou em outros dias. Às vezes, nessas noites de espera, a angústia agia
como a um remédio que se tomou. Falsamente interpretada por aquele que sofre, julga ele estar
angustiado por causa daquela que não vem. Em tal caso o amor nasce, como certas doenças
nervosas, da explicação incorreta de um mal penoso. Explicação que não é útil retificar, pelo
menos no que concerne ao amor, sentimento que é sempre errôneo, seja qual for a sua causa.
No dia seguinte, quando Albertine me escreveu dizendo que acabava de voltar a Épreville,
e portanto não recebera a tempo o meu recado, e viria, se eu o permitisse, visitar-me à noite por
detrás das palavras da carta, como por trás das que me dissera uma vez ao telefone; julgamos
sentir a presença de prazeres e de criaturas que ela teria preferido a mim. Mais uma vez fui
inteiramente abalado pela dolorosa curiosidade de saber o que poderia ela ter feito, devido ao
amor latente que sempre trazemos dentro de nós; durante um momento, cheguei a acreditar que
esse amor iria ligar-me a Albertine, porém ele se contentou em fremir dentro de mim; e seus
últimos ruídos se extinguiram sem que se pusesse em marcha.
Eu havia compreendido mal, na minha primeira estada em Balbec, o caráter de Albertine e
talvez o mesmo tivesse acontecido com Andrée. Achara ser frivolidade ingênua de sua parte, se
todas as nossas súplicas não conseguiam retê-la e fazê-la faltar a um garden-party, a um passeio
em lombo de burro, a um piquenique.
Em minha segunda estada em Balbec; suspeitei que essa frivolidade era apenas aparente,
o garden-party um biombo, senão uma invenção. Ocorria, sob formas diversas, o seguinte
(entendo a coisa vista por mim, do meu lado do vidro que de modo algum era transparente, e sem
que pudesse saber o que havia de verdadeiro do outro lado): Albertine me fazia os mais
apaixonados protestos de ternura. Vigiava a hora porque precisava fazer uma visita a uma dama
que recebia, ao que parece, todos os dias às cinco da tarde em Infreville. Atormentado por uma
suspeita e aliás sentindo-me adoentado, pedia a Albertine, suplicava-lhe que permanecesse
comigo. Era impossível (e ela até nem tinha mais que cinco minutos para ficar), pois aquilo
aborreceria a tal dama, pouco hospitaleira e suscetível, e, ao que dizia à Albertine, enfadonha.
- Mas pode-se perfeitamente deixar de fazer uma visita.
- Não, minha tia me ensinou que é necessário ser polido com todos.
- Mas eu a tenho visto não ser polida muitas vezes.
- Não é a mesma coisa, essa dama iria me querer mal e haveria de me intrigar com minha
tia. E já não estou assim em tão boas relações com ela. E ela faz questão de que eu visite essa
dama ao menos uma vez.
- Mas já que ela recebe todos os dias. -
Aí Albertine, apanhada em contradição, modificava o motivo:
- Claro que recebe todos os dias. Mas hoje marquei um encontro com algumas amigas na
casa dela. Assim, a gente se aborrece menos.
- Então, Albertine, você prefere a dama e suas amigas a mim, já que, para não deixar de
fazer uma visita aborrecida, prefere largar-me sozinho, doente e desolado?
- Pouco me importaria que a visita fosse aborrecida, mas é em atenção à elas. Vou trazê-las de volta no meu carro. Sem isso elas não teriam nenhum meio de transporte. -
Observei à Albertine que havia trens de Infreville até às dez horas da noite.
- É verdade, mas você sabe que é possível que nos peçam para ficar para a ceia. Ela é
muito hospitaleira.
- Muito bem, você recusará.
- Vou aborrecer ainda mais a minha tia.
- De resto, você pode cear e tomar o trem das dez horas.
- Fica meio apertado.
- Então nunca posso ir jantar no centro da cidade e voltar de trem. Mas olhe, Albertine,
vamos fazer algo bem simples: sinto que o ar livre me fará bem; e, já que você não pode deixar de
visitar essa dama, vou acompanhá-la até Infreville. Não tenha medo, não irei até a Tour Élisabeth
(a vivenda da tal dama), não verei nem a dama nem suas amigas. -
Albertine parecia ter recebido um tremendo golpe. Suas palavras saíam entrecortadas.
Disse que os banhos de mar não lhe agradavam.
- Mas aborrece-lhe que eu a acompanhe?
- Como é que pode dizer uma coisa dessas? Bem sabe que o meu maior prazer é sair com
você. -
Uma brusca reviravolta se operara.
- Já que vamos passear juntos - disse ela -, por que não irmos para o outro lado de Balbec,
poderíamos jantar juntos. Seria tão bom. No fundo, aquela costa é muito mais bonita. Começo
a detestar Infreville e o resto, esses lugarezinhos de cor verde-espinafre.
- Mas a amiga de sua tia ficará aborrecida se você não for visitá-la.
- Pois bem, ela se acalmará.
- Não, não convém aborrecer as pessoas.
- Mas ela nem sequer perceberá; recebe todos os dias. Tanto faz que eu vá amanhã,
depois de amanhã, dentro de oito dias ou em duas semanas.
- E suas amigas? - Oh, elas já me deixaram na mão em várias ocasiões. Agora é a minha vez.
- Mas para o lado que você propõe, não há trem depois das nove.
- Muito bem, que belo negócio! Nove horas é perfeito. E depois, a gente nunca precisa se
preocupar com o problema de volta. Sempre haveremos de encontrar uma charrete, uma bicicleta,
e, faltando tudo isso, temos nossas pernas.
- Sempre havemos de encontrar? Como você anda depressa, Albertine! Para os lados de
Infreville, onde as pequenas estações de madeira são coladas umas às outras, sim. Mas do lado
oposto não é a mesma coisa.
- Mesmo desse lado. Prometo trazê-lo de volta são e salvo. -
Eu sentia que, por mim, Albertine renunciava a alguma coisa já combinada que ela não
queria me revelar, e que haveria alguém que ficaria infeliz como eu estava. Vendo que o que
desejara não era possível, pois queria acompanhá-la, renunciava francamente a isso. Sabia que
não era irremediável. Pois, como as mulheres que têm várias coisas na vida, possuía esse ponto
de apoio que jamais enfraquece: a dúvida e o ciúme. Por certo ela não procurava excitá-los, pelo
contrário. Mas os enamorados tão suspicazes que imediatamente farejam a mentira. De modo que
Albertine, não sendo melhor que qualquer outra, sabia por experiência (nem desconfiar que o
devia ao ciúme) que sempre estava segura de encontrar as pessoas a quem uma noite deixara
esperando. A pessoa desconhecida que ela abandonava por mim sofreria, iria amá-la ainda mais
(Albertine não sabia que era por isso), e, para não continuar a sofrer, voaria por si mesma para
junto dela, como eu o teria feito. Mas eu não quero causar desgostos, nem me cansar, nem entrar
no terrível caminho das investigações, da vigilância multiforme, inumerável.
- Não, Albertine, não quero estragar o seu prazer, vá para a casa de sua dama de
Infreville; ou enfim, para a casa da pessoa de quem ela é o pseudônimo, pouco me importa. O
verdadeiro motivo pelo qual não saio com você é que você não deseja, que o passeio que você
daria comigo não é o que gostaria de dar; a prova é que você se contradisse mais de cinco vezes
sem perceber. -
Pobre Albertine receou que suas contradições, de que não percebera tivessem sido mais
graves, não lembrando exatamente as mentiras que havia pregado:
- É bem possível que eu tenha caído em contradições. O ar marinho me tira todo o
raciocínio. Troquei os nomes o tempo inteiro. -
O que me provou que ela agora não teria necessidade de muitas doces afirmações para
que eu acreditasse no que dizia voltei a sentir a dor de um ferimento ao ouvir esta confissão do
que eu só vagamente havia suposto:
- Pois bem, está combinado, vou embora - disse ela num tom trágico, não sem olhar a hora
para ver se não estava atrasada para o outro, agora que eu lhe fornecia o pretexto para não
passar a noite comigo. - Você é muito mau. Modifico tudo para passar uma noite boa com você e
é você não quer e ainda me acusa de mentirosa. Nunca o tinha visto ser tão cruel. O mar será o
meu túmulo. Não o verei nunca mais. (Meu coração bateu à estas palavras, apesar de eu estar
certo de que ela voltaria no dia seguinte o que aconteceu.) Vou me afogar, vou lançar-me às
águas. - Como Safo! - Mais um insulto; você tem dúvidas não só sobre o que digo, mas também
sobre o que faço.
- Mas, minha pequena, juro que não tinha nenhuma intenção, você sabe que Safo se
precipitou no mar.
- Sim, sim, você não tem nenhuma confiança em mim. -
Albertine viu que faltavam vinte minutos para as oito na pêndula; receou atrasar-se para o
que tinha de fazer e, preferindo a despedida mais breve (da qual, de resto, desculpou-se ao vir
visitar-me no dia seguinte; provavelmente nesse dia a outra pessoa não estava livre), fugiu em
passos rápidos gritando:
- Adeus para sempre - com ar desolado. E talvez estivesse mesmo desolada. Pois,
sabendo melhor do que eu o que fazia naquele instante, ao mesmo tempo mais severa e mais
indulgente consigo própria do que eu era com ela, talvez ainda assim duvidasse de que eu não a
quisesse receber mais, em vista da maneira como me havia deixado. Ora, creio que ela fazia
mesmo questão de mim, a ponto de a outra pessoa estar mais enciumada que eu próprio.
continua na página 88...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap II - Estávamos tranquilos)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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