maria memória gosta de querer muito seus filhos e filha, não imagina gratidão ou pagamento, pelo que já fez, faz e vai continuar fazendo, apenas espera que cuidem da filharada que hão de ter com o mesmo apego e afago e cuidado, Esse mundão tem muita tramoia mentirosa. É muito fingimento e hipocrisia solta por aí, escrotos crescidos... chibungos papa rola com porretes de milicianos!
não tem planos nem alento para arredondar com mais um curumim, sabe que tudo se acomoda de um jeito ou outro – a vida segue seus planos com seu curso contaminado pela imensa pobreza, definhando até a morte sem momento ou ocasião favorável de escolha por outra vida –, mas, disposição com pouco ou muito pouco, ou quase nada das sobras das outras vidas, não é o mesmo que viver sendo bem-vista
as vistas de todos na villa privilegia a origem familiar e as relações das pessoas
maria memória faz suas rezas e oferendas por lamparino, supimpo e maria futuro, não esconde que a miúda piquininina é sua encantaria, pega a miúda no colo e oferece a mamada, quando pode não espera que a guria comece a resmungar, agradece suas tetas monumentais e a leitaria em fartura, sempre teve para alimentar aquelas carinhas de olhos negros, herança que recebeu e quer passar para futuro
não quer a miúda vivendo da acomodação e na servidão de homem descolocado, Se for pra ser que seja, mas não engaiolada com macho sem riqueza de emprego de carteira assinada. Tem o exemplo em casa, a mãe enraizando na pobreza, um dia depois do outro, arredondando a formosura em quefazeres domésticos, como se a vida nada valesse além da pia vazia, a roupa lavada e a casa varrida, uma mulher domesticada. Eu devia ter reclamado mais desta miséria de milho, mandioca, beco e cachaça.
faz benzeduras e oferendas para a miúda encontrar alegria, comodidade e estima, gingando e namorando com contentamento, sonhando com as mãos quentes do afeto, Viver afeiçoada é melhor que viver aborrecida.
mãe nenhuma consegue afastar os urubus no entorno da caça a ser abatida, é uma luta perdida – as pedras convergem para o ponto central da rosa dos ventos, mesmo sem licença para povoar o continente africano no beco –, ela precisa confiar no ajuizamento do deus do mundo, seja quem for, tenha a cor ou a forma que tiver, Não adianta trancar como louça fina sem asa, tudo há de dar certo. Só acontece o que Deus quer, fica repetindo e repetindo até se convencer duvidando, tem precisão de confiar mais nas rezas, nas oferendas, nas encruzilhadas, repete séria e recatada as ladainhas de cuidado para a filha, escondendo seu sorriso discreto nos lábios, conhece muitas ladainhas das mães destinadas para a proteção das filhas
os miúdos também são alvo das suas preocupações, Não quero os dois aceitando presentes de desconhecido nem colocando nada na boca. Estão fome de gostosuras? O abastecimento é aqui em casa. Prestem atenção. Estão escutando? Respondam, eu sei que o rato não comeu a língua de vocês, Sim, mãinha, Hum...não quero os dois correndo no caminho da escola pra casa, Por que, mãinha, Porque preto correndo vira alvo. A polícia é feroz com preto, primeiro cospe fogo, só depois pergunta por que o preto tava fugindo, Xangô vai afogar a poçícia dos brancos, Sem ameaças, Lamparino. Não teimem! A maioria dos pretos morre no caminho entre a prisão e o beco, Isso quando não se çivram dos pretos jogando nas matas ou rios, Infelizmente é verdade, Lamparino. A maioria perde a vida pelo caminho, é julgamento e sentença pelas balas da polícia, Por que, mãinha, Não sei explicar direito, Supimpo. Acho que é algum ressentimento entranhado de muito tempo. Um azedume com a nossa teimosia pra continuarmos vivos.
as manhãs se repetem, primeiro o virgílio – depois os miúdos –, sai antes do dia abrir a vista, Substituto não espera pelo chamado, se apresenta pra prontidão da necessidade, o lado da cama do ausente esfria quando a madrugada começa envelhecer, ele sai sem o beijo do despedimento, ela reclama, ele responde que não quer aborrecimentos nem encolher o sono da memória, Amado... tão respeitoso, já foi mais meiguiceiro.
vez que outra, sente falta do carinho na saída, Tudo é costume, tanto na falta como na abundância, continua rezando e pedindo por ele, também reza pelo pegado do lado, o vizinho com banzo
levanta em silêncio
espia os miúdos, agradece pela belezura deles
pega a miúda piquininina no colo e oferece a mamada, está se derramando em abastança, lembra que o virgílio também se aproveitava da mamada nos tempos do lamparino, Até parece que pegou nojo.
tempos bicudos, a gurizada dos colégios fazendo bagunça e muita gritaria nas ruas, É proibido proibir!
Bobagens, desses arruaceiros. Vagabundos! Comunistas baderneiros! Quero ver essa gente criar os filhos assim, proibidos de proibir...
espera a miúda arrotar e a devolve para o cercado
a perna menos comprida já está acostumada em acompanhar a outra, ninguém repara no seu jeito de não mancar, Se a grandona vai ligeiro a curta se apressa, mas ela se acalma se é preciso mais lentidão. Só quero passar despercebida. Sou o que não se vê e não se vê o que sou.
não quer acordar os miúdos, Ainda bem que têm pouca idade, assim não se metem com esses baderneiros. Tudo comunista. Já ouvi histórias que essa gente de vermelho come nossas criancinhas. Gente doida. Estão estragando a pintura das paredes com essas frases idiotas: Abaixo à ditadura!
vai até a janela, o dia começa despertar, Essa gurizada não sabe nada de pobre. A gente aqui no beco quer comida, lugar decente pra morar e trabalho. Aqui, ninguém é vagabundo, espia pela janela, nada se mexe no beco, quem está nas sombras continua escondido, quem veio já foi e quem não veio não vem mais, Os muros ficam tão feios.
ela sabe da sina de ser pobre, a abastança miserável de não ter nada hoje, e menos que hoje, amanhã
as mortes costumeiras e repetidas
não sabe da ditadura, mas sabe da cara abaixada, o rosto lavado em lágrimas, gemendo dolorosamente, olhando para os céus e pedindo socorro ao pai da natureza, lamentações, cantos, filhos apartados dos pais, as mulheres dos maridos, os irmãos separados uns dos outros, A Villa não guarda nenhuma lei para os amigos ou parentes no beco, cada um cai onde a sorte o levar. Isso é ditadura? Se é ditadura o preto conhece desde muito tempo.
ela sabe da sina de ser pobre, A gente não vai crescer nos confortos da vida sem muito suor, lágrimas, sangue e susto, por isso tenho esperança, a fartura das lágrimas não vai faltar. É tudo muito difícil e a vontade de desanimar é grande, é preciso muita torcida, reza e choradeira.
o samba ajuda, mas não resolve
foi espiolhar se o virgílio esqueceu o despejo do balde, A memória não é o seu forte. Ele tem muita coisa de preto malandro. Calma, Memória, resmunga para ela mesma, É verdade, o Virgílio não sente nenhuma cobiça de descarregar o cubo com toda porcaria noturna.
a noite tem muitos descarregos, memória não suporta os cheiros do cubo, Quando vamos ter os confortos do banheiro dentro de casa, Logo, Maria. Estou providenciando, as promessas do virgílio levam algum tempo para virar coisa feita, leva as vistas para o canto do cubo de plástico com os rastros humanos evacuados, Sem banheiro dentro de casa a gente não parece gente, Só mais um pouco de paciência, Maria, cata o cubo com as vistas, o nariz não vê o cubo, apenas a mancha úmida nas tábuas, sem a carcaça fetida no chão, Graças à Deus que o Virgílio não esqueceu sua obrigação, sorri para o pássaro engaiolado, pulando de galho em galho
Não voa, tem as asas, mas não pode voar.
a mulher ileié engaiolada faz pequenos muxoxos para ouvir o canto do outro engaiolado, ele não canta, não voa, mas pula, não tem graça pulando, ela se vira, desiste, olha a sua volta, gosta daquele breve despovoamento familiar, o desjejum do paraíso, ninguém para cuidar ou satisfazer, apenas ela, sozinha na gaiola
olha com seu jeito de espionar na janela, e lá está o negão, ombros largos, mãos enormes, sempre o mesmo jeito, um beijo alongado na vizinha reclusa, Coitado, ela nem é tão bonita.
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