Machado de Assis
Conto
AURORA SEM DIA
Os cinco fregueses jantantes voltaram a cabeça, quando Luís Tinoco
começou a recitar os versos; depois começaram a sorrir e a murmurar
alguma coisa que os dois não puderam ouvir. Quando o poeta acabou, um
dos circunstantes, assaz grosseiro, soltou uma gargalhada. Luís Tinoco
voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos conteve-o dizendo:
— Não é conosco.
— É, meu amigo, disse ele resignado; mas que lhe havemos de fazer?
quem entende a poesia para a respeitar em toda a parte?
— Deixemos este lugar, disse o Dr. Lemos; aqui não compreendem o que
é um poeta.
— Vamos!
O Dr. Lemos pagou a conta e saiu atrás de Luís Tinoco, que deitou ao
rideiro um olhar de desafio.
Luís Tinoco acompanhou-o até à casa. Recitou-lhe em caminho alguns
versos que sabia de cor. Quando ele se entregava à poesia, não a alheia,
que o não preocupava muito, mas a própria, podia-se dizer que tudo mais
se lhe apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si mesmo. O
Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação de quem suporta a chuva,
que não pode impedir.
Pouco tempo depois saíram a lume os Goivos e Camélias, que todos os
jornais prometeram analisar mais de espaço.
Dizia o poeta no prólogo da obra, que era audácia da sua parte “vir
assentar-se na mesa da comunhão da poesia, mas que todo aquele que
sentia dentro de si o j’ai quelque chose là, de André Chénier, devia dar à
pátria aquilo que a natureza lhe deu”. Em seguida pedia desculpa para os
seus verdes anos, e afirmava ao público que não tinha sido “embalado em
berços de seda”. Concluía dando a bênção ao livro e chamando a atenção
para a lista dos assinantes que vinha no fim.
Esta obra monumental passou despercebida no meio da indiferença geral.
Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito dela algumas linhas
que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao
folhetinista.
O Dr. Lemos perdeu de vista o seu poeta durante algum tempo. Digo mal;
só perdeu de vista o homem, porque o poeta de quando em quando lhe
aparecia metido em alguma produção literária que o Dr. Lemos
invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luís Tinoco.
Não havia ocasião, enterro ou espetáculo solene que escapasse à
inspiração do fecundo escritor. Como o número de suas ideias fosse mui
limitado, podia-se dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma
elegia, uma ode ou uma congratulação. Os diferentes exemplares de cada
uma destas coisas eram a mesma coisa dita por outro modo. O modo
porém constituía a originalidade do poeta, originalidade que ele não teve
a princípio, mas que se desenvolveu muito com o tempo.
Infelizmente enquanto se entregava com ardor às lides literárias,
esquecia-se o poeta das lides forenses, de onde lhe vinha o pão.
Anastácio queixou-se um dia desta desgraça ao Dr. Lemos, numa carta
que acabava assim: “Não sei, meu amigo Sr. Lemos, aonde irá parar este
rapaz. Não lhe vejo outra conclusão: hospício ou xadrez”.
O Dr. Lemos mandou chamar o poeta. Elogiou-lhe as suas obras com o
fim de lhe dispor o espírito a ouvir o que ia dizer. O rapaz expandiu-se.
— Ainda bem que eu ouço de quando em quando alguma voz animadora,
disse ele; não sabe o que tem sido a inveja a meu respeito. Mas que
importa? Tenho confiança no futuro; o que me vinga é a posteridade.
— Tem razão, a posteridade é que vinga das maroteiras contemporâneas.
— Li há dias num papelucho, que eu era um alinhavador de ninharias.
Percebi a intenção. Acusava-me de não meter ombros a obra de mais
largo fôlego. Vou desmentir o papelucho: estou escrevendo um poema
épico!
“Ai!” disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando alguma leitura forçada do
poema.
— Podia mostrar-lhe alguma coisa, continuou Luís Tinoco, mas prefiro que
leia a obra quando estiver mais adiantada.
— Muito bem.
— Tem dez cantos, cerca de 10.000 versos. Mas quer saber a minha
desgraça?
— Qual é?
— Estou apaixonado...
— Realmente, é uma desgraça na sua posição.
— Que tem a minha posição?
— Creio que não é excelente. Dizem-me que se tem descuidado um pouco
das suas obrigações do foro, e que brevemente lhe vão tirar o emprego.
— Fui despedido ontem.
— Já?
— É verdade. Se ouvisse o discurso com que eu respondi ao escrivão,
diante de toda a gente que enchia o cartório! Vinguei-me.
— Mas... de que viverá agora? seu padrinho não pode, creio eu, com o
peso da casa.
— Deus me ajudará. Não tenho eu uma pena na mão? Não recebi do
berço um tal ou qual engenho, que já tem dado alguma coisa de si? Até
agora nenhum lucro tentei tirar das minhas obras; mas era só amador.
Daqui em diante o caso muda de figura; é necessário ganhar o pão,
ganharei o pão.
A convicção com que Luís Tinoco dizia estas palavras, entristeceu o amigo
do padrinho. O Dr. Lemos contemplou durante alguns segundos — com
inveja, talvez, — aquele sonhador incorrigível, tão desapegado da
realidade da vida, acreditando não só nos seus grandes destinos, mas
também na verossimilhança de fazer da sua pena uma enxada.
— Oh! deixe estar! continuou Luís Tinoco; eu hei de provar-lhes, ao
senhor e a meu padrinho, que não sou tão inútil como lhes pareço. Não
me falta coragem, doutor; quando me faltasse, há uma estrela...
Luís Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e olhou melancolicamente para o
céu. O Dr. Lemos também olhou para o céu, mas sem melancolia, e
perguntou rindo:
— Uma estrela? Ao meio-dia é raro...
— Oh! não falo dessas, interrompeu Luís Tinoco; lá é que ela devia estar,
ali no espaço azul, entre as outras suas irmãs, mais velhas do que ela e
menos formosas...
— Uma moça?
— Uma moça, é pouco; diga a mais gentil criatura que o sol ainda
alumiou, uma sílfide, a minha Beatriz, a minha Julieta, a minha Laura...
— Escusa dizê-lo; deve ser muito formosa se fez apaixonar um poeta.
— Meu amigo, o senhor é um grande homem; Laura é um anjo, e eu
adoro-a...
— E ela?
— Ela ignora talvez que eu me consumo.
— Isso é mau!
— Que quer? disse Luís Tinoco enxugando com o lenço uma lágrima
imaginária; é fado dos poetas arderem por coisas que não podem obter. É
esse o pensamento de uns versos que escrevi há oito dias. Publiquei-os
no Caramanchão Literário.
— Que diacho é isso?
— É a minha folha, que eu lhe mando de quinze em quinze dias... E diz
que lê as minhas obras!
— As obras leio... Agora os títulos podem escapar. Vamos porém ao que
importa. Ninguém lhe contesta talento nem inspiração fecunda; mas o
senhor ilude-se pensando que pode viver dos versos e dos artigos
literários... Note que os seus versos e os seus artigos são muito
superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos
aceitação.
Este desenganar com as mãos cheias de rosas produziu salutar efeito no
ânimo de Luís Tinoco; o poeta não pôde sofrear um sorriso de satisfação e
bem-aventurança. O amigo do padrinho concluiu o seu discurso
oferecendo-lhe um lugar de escrevente em casa de um advogado. Luís
Tinoco olhou para ele algum tempo sem dizer palavra. Depois:
— Volto ao foro, não? disse ele com a mais melancólica resignação deste
mundo. Minha inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se nos
libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a troco
de quê? A troco de uns magros mil-réis que eu não tenho e me são
necessários para viver. Isto é sociedade, doutor?
— Má sociedade, se lhe parece, respondeu o Dr. Lemos com doçura, mas
não há outra à mão, e a menos de não estar disposto a reformá-la, não
tem outro recurso senão tolerá-la e viver.
O poeta deu alguns passos na sala; no fim de dois minutos estendeu a
mão ao amigo.
— Obrigado, disse ele, aceito; vejo que trata de meus interesses, sem
desconhecer que me oferece um exílio.
— Um exílio e um ordenado, emendou o Dr. Lemos.
Daí a dias estava o poeta a copiar razões de embargos e de apelação, a
lastimar-se, a maldizer da fortuna, sem adivinhar que daquele emprego
devia nascer uma mudança nas suas aspirações. O Dr. Lemos não lhe
falou durante cinco meses. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe
pelo poema.
— Está parado, respondeu Luís Tinoco.
— Deixa-o de mão?
— Conclui-lo-ei quando tiver tempo.
— E a folha?
— Deve saber que acabei com ela; não lhe mando há muito tempo.
— É verdade, mas podia ser um esquecimento. Muito me conta! Então
acabou o Caramanchão Literário?
— Deixei-o morrer no melhor período de vitalidade: tinha oitenta
assinantes pagantes...
— Mas então abandona as letras?
— Não, mas... Adeus.
— Adeus.
Pareceu simples tudo aquilo; mas tendo-se ganho alguma coisa, que era
empregá-lo, o Dr. Lemos deixou que o próprio poeta lhe fosse anunciar a
causa do seu sono literário. Seria o namoro de Laura?
Esta Laura, preciso é que se diga, não era Laura, era simplesmente
Inocência; o poeta chamava-lhe Laura nos seus versos, nome que lhe
parecia mais doce, e efetivamente o era. Até que ponto existiu esse
namoro, e em que proporções correspondeu a moça à chama do rapaz? A
história não conservou muita informação a este respeito. O que se sabe
com certeza é que um dia apareceu um rival no horizonte, tão poeta
como o padrinho de Luís Tinoco, elemento muito mais conjugal do que o
redator do Caramanchão Literário, e que de um só lance lhe derrubou
todas as esperanças.
Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a
literatura com uma extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco
metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado
traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun maggior dolore do poeta
florentino. Quando ele a acabou e emendou, releu-a em voz alta,
passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso, admirou a
harmonia de muitos, e singelamente confessou de si para si que era a sua
melhor produção. O Caramanchão Literário ainda existia; Luís Tinoco
apressou-se a levar o escrito ao prelo, não sem o ler aos seus
colaboradores, cuja opinião foi idêntica à dele. Apesar da dor que o devia
consumir, o poeta leu as provas com o maior desvelo e escrúpulo, assistiu
à impressão dos primeiros exemplares da folha, e durante muitos dias
releu os versos até cansar. Do que ele menos se lembrava era da perfídia
que os inspirou.
Esta porém não era a razão do sono literário de Luís Tinoco. A razão era
puramente política. O advogado, cujo escrevente ele era, tinha sido
deputado e colaborava numa gazeta política. O seu escritório era um
centro, onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente
dos partidos e do governo. Luís Tinoco ouviu a princípio essas conversas
com a indiferença de um deus envolvido no manto da sua imortalidade.
Mas a pouco e pouco foi adquirindo gosto ao que ouvia. Já lia os discursos
parlamentares e os artigos de polêmica. Da atenção passou rapidamente
ao entusiasmo, porque naquele rapaz tudo era extremo, entusiasmo ou
indiferença. Um dia levantou-se com a convicção de que os seus destinos
eram políticos.
— A minha carreira literária está feita, disse ele ao Dr. Lemos quando
falaram nisto; agora outro campo me chama.
— A política? Parece-lhe que é essa a sua vocação?
— Parece-me que posso fazer alguma coisa.
— Vejo que é modesto, e não duvido que alguma voz interior o esteja
convidando a queimar as suas asas de poeta. Mas, cuidado! Há de ter lido
Macbeth... Cuidado com a voz das feiticeiras, meu amigo. Há no senhor
demasiado sentimento, muita suscetibilidade, e não me parece que...
— Estou disposto a acudir à voz do destino, interrompeu impetuosamente
Luís Tinoco. A política chama-me ao seu campo; não posso, não devo,
não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as opressões do poder, as
baionetas dos governos imorais e corrompidos, não podem desviar uma
grande convicção do caminho que ela mesma escolheu. Sinto que sou
chamado pela voz da verdade. Quem foge à voz da verdade? Os covardes
e os ineptos. Não sou inepto nem covarde.
Tal foi a estreia oratória com que ele brindou o Dr. Lemos numa esquina
onde felizmente não passava ninguém.
— Só lhe peço uma coisa, disse o ex-poeta.
— O que é?
— Recomende-me ao doutor. Quero acompanhá-lo, e ser seu protegido; é
o meu desejo.
O Dr. Lemos cedeu ao desejo de Luís Tinoco. Foi ter com o advogado e
recomendou-lhe o escrevente, não com muita solicitude, mas também
sem excessiva frieza. Felizmente o advogado era uma espécie de São
Francisco Xavier do partido, desejoso como ninguém de aumentar o
pessoal militante; recebeu a recomendação com a melhor cara do mundo,
e logo no dia seguinte, disse algumas palavras benévolas ao escrevente,
que as ouviu trêmulo de comoção.
— Escreva alguma coisa, disse o advogado, e traga-me para ver se lhe
achamos propensão.
continua na página 76...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Aurora Sem Dia (II)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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