sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Segundo - A Nau «ORION» / I — O número 24.601 torna-se o 9.430

 Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Segundo — A Nau «Orion» 

I - O número 24.601 torna-se o 9.430
     
     Jean Valjean fora novamente preso. 
     Passando sobre alguns pormenores dolorosos, transcrevemos duas notícias publicadas pelos jornais da época, poucos meses depois dos surpreendentes acontecimentos ocorridos em Montreuil-sur-mer.
     Essas notícias são um tanto sumárias. Porque, como se sabe, naquele tempo não havia ainda a Gazeta dos Tribunais. 
     A primeira extraímo-la da Bandeira Branca, de 25 de Julho de 1823, e é assim concebida:

     Acaba de ser teatro de um acontecimento pouco vulgar um dos distritos do Pas-de-Calais. Um homem desconhecido na província, chamado Madelaine, tinha restabelecido, havia alguns anos, graças a novos inventos, uma antiga indústria local: o fabrico de vidrilhos pretos.
     Este homem, que fizera com isto a sua fortuna, e, digamos em abono da verdade, a daquela localidade também, foi nomeado maire, em reconhecimento dos seus valiosos serviços. A polícia, porém, descobriu que Madelaine era nem mais nem menos do que um antigo forçado chamado Jean Valjean, saído das galés e condenado em 1796 por crime de roubo; e como tal foi novamente posto a ferros. Parece que, antes da sua prisão, Jean Valjean conseguira receber do senhor Laffite, em cujo poder se achava, uma quantia superior a meio milhão que, todavia, segundo dizem, fora por ele licitamente ganha no ramo de comércio a que se dedicava. Não tem, porém, sido possível saber-se onde Jean Valjean escondeu esse dinheiro quando tornou a dar entrada nas galés.

     A segunda notícia, mais circunstanciada do que a precedente, é extraída do Jornal de Paris da mesma data e diz o seguinte:

     Acaba de comparecer perante o tribunal criminal do Var um antigo forçado livre, chamado Jean Valjean, facto que, pelas circunstâncias que o revestem, se torna digno de chamar a atenção. Este celerado, que chegara a enganar a polícia, mudando de nome e adoptando outro, a coberto do qual chegou a conseguir ser nomeado maire de uma das nossas vilas do norte, onde estabelecera um comércio bastante considerável, acaba de ser enfim desmascarado e preso, graças ao infatigável zelo do ministério público.
     Vivia com uma rapariga de má vida, que morreu de susto na ocasião em que o prenderam. Este miserável, que é dotado de uma força hercúlea, achou meio de evadir-se, mas, três ou quatro dias depois da sua evasão, a polícia conseguiu deitar-lhe de novo a mão, mesmo em Paris, na ocasião em que ele ia a subir para uma dessas carruagens que transitam entre a capital e a aldeia de Monƞermeil-sur-Oise. Dizem que ele aproveitara o intervalo destes três ou quatro dias de liberdade para tirar do poder de um dos nossos principais banqueiros uma quantia considerável, que lhe havia entregue em depósito, e que é avaliada em seiscentos ou setecentos mil francos. A julgar pelo auto de acusação, o antigo forçado escondeu essa soma em algum lugar só dele conhecido, onde tem sido impossível dar com ela; seja como for, porém, o tal Jean Valjean acaba de ser entregue ao juiz criminal do departamento do Var, como salteador de estrada acusado de um roubo, acompanhado de violência, que há oito anos, pouco mais ou menos, cometeu contra a pessoa de um desses honrados moços, que como disse o patriarca de Ferney em versos imortais:  
...de Sabóia anualmente chegam, 
E cujas mãos com ligeireza limpam 
As altas chaminés que o fumo suja.
     O bandido, apesar da sua prodigiosa força, não opôs resistência aos agentes de polícia. Segundo o hábil e eloquente órgão do ministério público, provou-se que o roubo foi praticado de cumplicidade e que Jean Valjean fazia parte de uma quadrilha de salteadores que infestava o Meio-Dia. Em consequência disto, Jean Valjean, reconhecido criminoso, foi condenado à pena de morte e recusou apelar da sentença. O rei, porém, na sua inesgotável clemência, dignou-se comutar-lhe a pena de morte, que lhe fora infligida, na de trabalhos forçados por toda a vida, e, em virtude da régia resolução, Jean Valjean foi imediatamente remetido para as galés de Toulon. 
     Jean Valjean, quando residente em Montreuil-sur-mer, possuía hábitos religiosos, que em alguns atos da sua vida tivera ocasião de patentear. Isto, pois, deu lugar a que alguns jornais apresentassem esta comutação como um triunfo do partido clerical.
     Jean Valjean mudou de número nas galés. De 24.601, que era da primeira vez que ali estivera, passou para 9.430.
     Quanto ao mais, digamo-lo por uma vez, com Madelaine desapareceu a prosperidade de Montreuil-sur-mer, tudo o que ele previra na sua noite de febre e de hesitação se realizou. Faltara-lhe ele, faltara-lhe a alma efetivamente. Após a sua queda, operou-se em Montreuil-sur-mer essa partilha egoísta das grandes existências caídas, esse desmembramento fatal das coisas florescentes, que todos os dias obscuramente se dá na comunidade humana, e de que a história uma só vez fez menção por ter acontecido após a morte de Alexandre. Os tenentes coroaram-se reis, os contramestres improvisaram-se fabricantes. As rivalidades invejosas surgiram. As vastas oficinas de Madelaine fecharam-se, os edifícios arruinaram-se, os operários dispersaram-se. Uns saíram do país, outros abandonaram a profissão. Daí em diante tudo se fez em pequena escala, com a mira no lucro, em vez de ser com a mira no bem. Descentralizou-se o comércio, estabeleceu-se por toda a parte a concorrência e o encarniçamento com que uns pretendiam suplantar os outros.
     Madelaine dominava e dirigia tudo. Com a sua queda, cada qual puxou para o seu lado; ao espírito da organização sucedeu o espírito da luta; à cordialidade, a aspereza; à benevolência do fundador para com todos, o ódio mútuo de uns contra os outros. Os fios atados por Madeleine embaraçaram-se e quebraram-se; falsificaram-se os processos; envileceram-se os produtos; matou-se a confiança; e disto, como era natural, resultou a diminuição na procura, e, por consequência, a diminuição do consumo, o abatimento dos salários, a interrupção dos trabalhos nas oficinas, a frequência sucessiva das quebras. E, afora isto, nem um centavo para os pobres. Tudo se esvaeceu.
     Estas consequências fizeram sentir os seus efeitos ainda mais longe. O próprio Estado conheceu que havia algures alguém esmagado. Em menos de quatro anos após a sentença do tribunal criminal, que em benefício das galés dera por provada a identidade de Madelaine e de Jean Valjean, as despesas feitas com a percepção dos impostos no distrito de Montreuil-sur-mer duplicaram, circunstância esta que o senhor de Villèle julgou dever observar do alto da tribuna, como efetivamente notou no mês de Fevereiro de 1827.

continua na página 279...
______________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________


Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Segundo - I — O número 24.601 torna-se o 9.430
_______________________
 
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Nenhum comentário:

Postar um comentário