quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / I — A falta de água em Montfermeil

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

I - A falta de água em Montfermeil
     
     Monƞermeil, que fica situado entre Livry e Chelles, na aba meridional da elevada colina que separa o Ourcq do Marne, é hoje uma aldeia importante, ornada todo o ano de casas de campo agradavelmente caiadas e aos domingos de prazenteiros burgueses.
     Em 1823, porém, não havia em Monƞermeil nem tantas casas alvejantes, nem tantos burgueses satisfeitos; era apenas uma aldeia perdida nos bosques. Encontravam-se aqui e ali, é verdade, algumas casas de recreio do século passado, reconhecíveis pelo seu ar de grandeza, pelas suas varandas de ferro torneado e por essas janelas rasgadas, cujos vidros refletem sobre as brancas portadas interiores todos os cambiantes da cor verde.
     Monƞermeil, porém, nem por isso deixava de ser uma aldeia. É que nem os mercadores de pano retirados do negócio, nem os corretores aposentados a tinham descoberto ainda. Era um lugar pacífico e bonito, que não ficava à beira de estrada nenhuma, e onde se vivia nesse abundante e fácil aconchego da vida do campo.  
     Somente havia a notar a grande escassez de água por causa da elevação da colina, pelo que era necessário ir buscá-la a considerável distância.
     Os que moravam no fim da aldeia, para a parte de Gagny, abasteciam-se dela nos magníficos lagos que por ali há pelos bosques; os da outra extremidade situada em volta da igreja, para o lado de Chelles, não tinham água potável senão numa fonte que ficava a meia encosta junto à estrada de Chelles, quase a um quarto de hora distante de Montfermeil.
     Como, pois, para todos se tornava dificil e incómodo o abastecimento de água, as casas grandes, a aristocracia, e no número delas se contava a taberna de Thenardier, pagavam um liard por cada balde de água a um pobre homem que fazia disto o seu modo de vida e que com este negócio da água em Monƞermeil ganhava perto de oito soldos por dia; porém, como este homem não trabalhava senão até às sete horas da tarde, de Verão, e de Inverno até às cinco, chegada a noite, fechadas as portas da rua, quem não tinha em casa água para beber ia buscá-la por seu pé ou ficava sem ela. 
     Era esta a maior causa de terror para a pobre criancinha de quem o leitor decerto se não esqueceu: a pequenita Cosette. A pobre criança tornava-se útil por duas maneiras aos Thenardier, os quais recebiam o dinheiro da mãe e aproveitavam o trabalho da filha. Assim, quando a mãe cessou completamente de lhes pagar, pelos motivos que se leram nos capítulos precedentes, nem por isso os Thenardier deixaram de continuar a ter Cosette consigo, visto ela lhes fazer as vezes de criada, e como tal era ela quem ia buscar a água quando se tornava necessário. A pobre criança, porém, a quem em extremo assustava a ideia de ter de ir à fonte de noite, tinha sempre todo o cuidado que não faltasse nunca a água em casa.
     No ano de 1823, o Natal em Monƞermeil foi sobremodo brilhante. Fora temperado o princípio do Inverno; ainda não caía geada nem neve. Alguns pelotiqueiros vindos de Paris obtiveram licença do maire para levantar as barracas na rua principal da aldeia, e um bando de vendedores ambulantes, conseguida igual tolerância, construíram também as suas tendas no largo da igreja, até ao beco do Boulanger, onde, como de certo estão lembrados, fica a taberna dos Thenardier. Isto fazia com que as tabernas e as estalagens estivessem cheias, e dava àquela pequena aldeia, habitualmente tranquila, uma existência ruidosa e alegre. Devemos até dizer, para sermos historiador fiel, que entre as curiosidades expostas no largo da igreja figurava um barracão de animais, no qual uns abjetos e maltrapilhos palhaços, vindos não se sabia de onde, mostravam em 1823 aos aldeões de Monƞermeil um desses abutres terríveis do Brasil que o nosso Museu Real só possui desde 1845 para cá, e cujos olhos se parecem com um laço tricolor. Os naturalistas chamam a esta ave, creio eu, Caracará Polyborus, e pertence à ordem dos apicidos e à família dos abutres. Alguns velhos soldados que viviam na aldeia retirados do serviço iam ver devotamente o animal, cujo laço tricolor os pelotiqueiros inculcavam como um fenómeno único operado de propósito pela bondade de Deus para a sua coleção de animais raros.
     Na noite do próprio dia de Natal, achavam-se sentados a uma mesa iluminada por quatro ou cinco luzes no andar térreo da taberna de Thenardier grande número de homens, dos quais uns eram vendilhões, outros carreiros. Este andar térreo parecia-se com o andar térreo de todas as tabernas; mesas, canjirões de estanho, garrafas, bebedores, fumadores, pouca luz e muito barulho. Todavia, a data do ano de 1823 era indicada pelos dois objetos então em moda entre a classe burguesa e que estavam em cima de uma mesa: um caleidoscópio e um candeeiro de folha ondeada. A mulher de Thenardier vigiava pela preparação da ceia, que estava cozinhando a uma fogueira; o estalajadeiro bebia com os fregueses e falava de política. 
     Além das conversas políticas, que tinham por objetos principais a guerra de Espanha e o duque de Angoulême, ouviam-se no meio daquele alarido uma série de parêntesis todos locais como estes:

— Para as bandas de Nanterre e Suresne houve muito vinho este ano. Quem contava ter dez pipas, teve doze e assim em proporção. Era uma enchente em todos os lagares. 
— Ora adeus! Mas a uva não devia ainda estar madura? 
— Naqueles sítios não precisa vindimar-se madura; o vinho chega sempre à conta com a Primavera. 
— É tudo vinho fraco. 
— Ainda mais que os daqui! É preciso fazer a vindima em verde, se se querem remediar esses males. 

     Ou então era um moleiro que exclamava: 

— Nós somos por acaso responsáveis pelo que está nos sacos? Achamos neles, misturados com o trigo, grande quantidade de grãos, que nós não podemos divertir-nos a separar e que não há remédio senão deixar passar pela mó; é joio, alfarra, ervilhaca, linhaça, rabos de raposa e outras pestes ainda, sem falar na pedra, que vem sempre em certos trigos, principalmente nos bretões. Eu cá desejo tanto moer trigo bretão como os serradores serrar um madeiro em que haja pregos. Façam ideia do mau resultado que tudo isto dá. Depois queixam-se da farinha, como se a culpa fosse nossa. 

     Sentado a uma mesa, situada no vão de uma janela, um ceifeiro dizia a um lavrador que tratava com ele do ajuste de certo trabalho no campo que se devia executar na Primavera: 

— Olhe, senhor, o estar a erva molhada não lhe faz mal nenhum, antes é melhor de segar. O orvalho é-lhe bom. Mas cá para o nosso caso... eu vou dizer-lhe uma coisa; sim, a erva que diz está ainda muito tenra e não é boa de cortar. Como está muito mole, embaraça-se a foucinha nela e não se faz coisa com jeito.

     Cosette estava no seu canto do costume; sentada na travessa da banca da cozinha, ao pé da lareira, maltrapilha, de tamancos nos pés e trabalhando numas meias de lã para as filhas do estalajadeiro, ao clarão projetado pela fogueira que ardia no lar. 
     Debaixo das cadeiras brincava e pulava um gatinho novo, e na sala próxima ouviam-se as frescas vozes de duas crianças tagarelando e rindo: eram Eponine e Azelma. 
     A um dos lados do lar viam-se umas disciplinas penduradas num prego.
     De espaço a espaço, no meio do alarido de vozes e de ruidosa algazarra que levantavam os joviais convivas da taberna, ouviam-se os gritos de uma criancinha que estava algures dentro de casa. Era um menino que a mulher do estalajadeiro havia dado à luz num dos; Invernos antecedentes «sem saber como, dizia ela; efeitos do frio», e que pouco mais contava do que três anos. Fora a mãe que o amamentara, mas nem por isso lhe consagrava demasiado afeto. Quando o pequerrucho, à força de gritar, se tornava importuno demais, o marido dizia-lhe:

— Olha o teu filho que está a chiar, vai ver o que ele quer. 
— Ora! — respondia a mãe. — O rapaz já me aborrece. 

     E a pobre criança continuava a gritar nas trevas, abandonada e sozinha, sem que à mãe desse grande cuidado ir indagar a causa dos seus lamentosos choros.

continua na página 291...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro -  I — A falta de água em Montfermeil
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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