segunda-feira, 24 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / I - Mestre Gorbeau

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

I - Mestre Gorbeau
     
      O passeante solitário que há quarenta anos se aventurava a embrenhar-se pelas remotas regiões da Salpêtrière, e que subia pelo boulevard até à barreira de Itália, chegava a alguns sítios em que se podia dizer que Paris desaparecia. Não era um ermo, pois passava por ali gente; não era campo, pois havia casas e ruas; não era uma cidade, pois que se viam as ruas sulcadas pelas rodeiras, como as estradas reais, e crescia a erva pelo meio delas; não era uma aldeia, pois que as casas eram demasiado altas.
     Então que era? Era um lugar habitado em que não havia ninguém; era um lugar deserto onde havia habitantes; era um arrabalde da grande cidade, uma rua de Paris, de noite mais solitária do que uma floresta, de dia mais pesadamente triste do que um cemitério.
      Era o velho bairro do Mercado dos Cavalos.
     O mesmo passeante, se se arriscasse a transpor as quatro caducas paredes do Mercado dos Cavalos, se se resolvesse a passar além da rua do Petit-Banquier, depois de haver deixado à direita uma horta fechada por elevadas paredes, em seguida um prado, onde se erguiam montes de casca de carvalho semelhantes a casinholas de castores gigantescos, depois um cerrado atulhado de madeira e de montes de raízes, serragem e cavacos, em cima dos quais latia um grande cão; em seguida uma comprida parede baixa, toda em ruínas, com uma por tinha negra cheia de musgo que na Primavera se enchia de flores; depois no sítio mais deserto um decrépito casebre, no qual se lia em grandes letras «É PROIBIDO PREGAR AQUI CARTAZES», o ousado passeante chegava à esquina da rua das Vinhas de S. Marcal, latitudes pouco conhecidas. Neste sítio via-se naquele tempo ao pé de uma fábrica e entre as paredes de dois jardins, um casebre, que à primeira vista parecia pequeno como uma choupana, mas que na realidade era grande como uma catedral. A sua aparente pequenez provinha de ficar de lado para o caminho, de modo que só era visto pela empena. A casa ficava quase toda escondida, descobrindo-se apenas uma porta e uma janela.
     O casebre constava de um só andar.
     A circunstância que primeiro impressionava a quem o examinasse era que a porta nunca teria podido ser senão a porta de uma espelunca, ao passo que a janela, se fosse aberta em pedra de cantaria, em vez de o ser em alvenaria, poderia passar pela janela de um palácio.
      A porta era apenas um conjunto de tábuas carunchosas, grosseiramente unidas com travessas semelhantes a achas mal esquadradas. Abria logo para uma íngreme escada, de degraus altos, enlameados, cheios de barro e pó, da mesma largura da porta que se via da rua subir direita como uma escada de mão e desaparecer na sombra entre duas paredes. O cimo da informe cobertura formada pela porta era tapado por uma estreita e delgada tábua, na qual haviam rasgado um postigo triangular, que quando a porta estava fechada era juntamente trapeira e corrediça. Pelo lado de dentro, um pincel molhado em tinta de escrever, havia traçado duas pinceladas o número 52, e por cima do dois garatujara o mesmo pincel o número 50, de sorte que se hesitava. Qual é o que regula? O cimo da porta diz número 50; a parte de dentro replica 52. Da corrediça triangular pendiam, em guisa de cortinado, uns farrapos cobertos de pó.
     A janela era larga, suficientemente elevada, guarnecida de persianas e de vidraças de grandes caixilhos porém estes tinham variadas feridas, ao mesmo tempo ocultas e descobertas por uma engenhosa faixa de papel e as persianas desconjuntadas e fora do seu lugar, mais ameaçavam os transeuntes, do que guardavam os moradores.
     Nas persianas via-se aqui e ali, a falta de alguma das tabuinhas, que era singelamente substituída por tábuas, pregadas perpendicularmente, de modo que a coisa principiava como persiana e acabava como postigo.
     A porta, que tinha um aspecto imundo, e a janela posto que escalavrada, tinha um ar de nobreza, assim vistas na mesma casa, produziam o efeito de dois mendigos desemparelhados, que fossem juntos, caminhando a par, com dois aspectos diferentes, debaixo dos mesmos andrajos, e dos quais um vesse sido sempre gatuno e o outro um fidalgo.
     Conduzia a escada a um edifício destacado, mas vastíssimo, que se assemelhava a um alpendre, transformado em casa. Tinha este edifício por tubo intestinal um comprido corredor, para o qual se abria, à direita e à esquerda, uma espécie de repartimentos variados em rigor habitáveis, e mais parecidos com sótãos que com celas.
     Davam para os terrenos vagos dos arredores. Tudo isto era escuro, fastidioso, baço, melancólico, sepulcral; atravessado, consoante as fendas eram no telhado ou na porta, por clarões frios ou rajadas geladas. Uma particularidade interessante e pitoresca deste género de habitação é a desmesurada grandeza das aranhas.
     A esquerda da porta de entrada, do lado do boulevard, havia à altura de um homem uma trapeira tapada, formando um nicho quadrado, que os rapazes que passavam tinham enchido de pedras.
      Ultimamente foi demolida uma parte deste edifício, mas, pelo que ainda resta, pode julgar-se do que aquilo foi. O conjunto do edifício não tem mais de cem anos de existência. Cem anos é a juventude de uma igreja e a velhice de uma casa. Parece que a morada do homem participa da sua brevidade e a de Deus da sua eternidade.
      Os carteiros chamavam àquele casebre o número 50-52, porém ele era conhecido no sítio pelo nome do casebre de Gorbeau.
      Digamos de onde lhe vinha esta denominação.
     Os curiosos de historiazinhas, que coligem anedotas como um botânico plantas para um ervário, e que gravam na memória com um alfinete as datas fugazes, sabem que no século passado, pelo ano de 1770, existiam em Paris dois procuradores do Chatelet, chamados, um, Corbeau (corvo), outro Renard (raposa), dois nomes previstos por Lafontaine. Demasiado bela era a ocasião para que os más línguas não dessem expansão aos seus chascos motejadores, e por isso a seguinte paródia, em versos de pé quebrado, correu logo de boca em boca:

Estava mestre Corvo de uma vez 
Empoleirado em cima de uma cadeira, 
Sustentando voraz, no adunco bico, 
Lucrativa sentença executaria: 
Mestre Raposa, em tretas rico, 
Cheirando-lhe de longe a chuchadeira, 
Acode com presteza, e esta história 
A mestre Corvo impinge, ora escutai-a; 
— Olá, bom dia, amigo, etc.,

      Os dois honrados procuradores perseguidos pelos dichotes e perturbados no empertigado da postura pelas gargalhadas que os seguiam, decidiram desfazer-se dos nomes que tinham, e para isso resolveram dirigir-se ao rei. O requerimento foi apresentado a Luís XV, no mesmo dia em que, de um lado o núncio do Papa, do outro o cardeal de Roche-Aymon, ambos devotamente ajoelhados, ajudaram a calçar as chinelinhas a Madame Dubarry em presença de Sua Majestade, quando aquela se levantou. O rei, que estava a rir, continuou a rir, passou alegremente dos dois bispos para os dois procuradores e concedeu aos dois becas a graça pedida ou pouco menos.
     A mestre Corbeau foi-lhe permitido pelo rei acrescentar uma cauda à sua inicial e chamar-se Gorbeau; mestre Renard, porém, foi menos feliz; apenas pôde obter pôr um P antes do R e chamar-se Prenard, de modo que o segundo nome pouco diferia do primeiro.
     Ora, segundo a tradição local, este mestre Gorbeau tinha sido dono do casebre número 50-52, situado no boulevard do Hospital, e era ele até o autor da janela monumental.
     Daqui provinha, pois, ao casebre de que nos ocupamos, o nome de casa de Gorbeau.
     Defronte do número 50-52 eleva-se, entre as plantações do boulevard, um olmo meio seco; quase em frente abre-se a barreira dos Gobelins, rua sem casas então, por calçar, plantada de árvores enfezadas, verde ou lamacenta, consoante a estação, que ia terminar em ângulo reto no muro de circunvalação de Paris. Dos telhados de uma fábrica próxima saem baforadas com um pronunciado cheiro a caparrosa.
     A barreira ficava ao pé e em 1823 ainda existia o muro de circunvalação.
     Só a barreira de per si lançava no espírito figuras funestas. Era aquele o caminho de Bicêtre. Era por ela que no tempo do império e no da restauração entravam os sentenciados no dia da execução. Foi ali que se cometeu o misterioso assassínio chamado «da barreira de Fontainebleau», cujos autores nunca a justiça pôde descobrir, problema fúnebre jamais resolvido, enigma horroroso jamais decifrado. Andai mais alguns passos e encontrareis essa rua fatal de Croulebarbe, onde Ulbach apunhalou a cabreira de Yvry, ao ribombar do trovão, como num melodrama. Mais alguns passos ainda, e chegarás aos abomináveis olmos decotados da barreira de S. Tiago, esse expediente dos filantropos para esconder o cadafalso, essa mesquinha e vergonhosa praça de Greve de uma sociedade de lojistas e burgueses, que recuou diante da pena de morte, sem ousar aboli-la com grandeza, nem conservá-la com autoridade.
     Há trinta e sete anos, pondo de parte a praça de S. Tiago, que era um como lugar predes nado e que foi sempre horrível, o ponto mais tristonho talvez daquele tristonho boulevard era o sítio, ainda hoje tão aprazível, onde ficava o casebre número 50-52.
      As casas burguesas só dali a vinte e cinco anos é que principiaram a despontar.
      Era triste aquele lugar. Além das ideias fúnebres, que se vos apossavam do espírito, sentíeis-vos entre a Salpêtrière, cujo zimbório se entrevia, e Bicêtre, cuja barreira se tocava, quer dizer, entre a loucura da mulher e a loucura do homem. Por mais longe que se estendesse a vista, só se avistavam os matadouros, o muro de circunvalação e as várias fachadas de algumas fábricas, que pareciam quartéis ou mosteiros; por toda a parte barracas e entulho, paredes velhas, negras como mortalhas, paredes novas, brancas como lençóis; por toda a parte fileiras de árvores paralelas, casebres alinhados, construções chatas, compridas linhas frias e a tristeza lúgubre dos ângulos retos. Nem um bocado de terreno acidentado, nem um capricho de arquitetura, nem uma ruga.
      Era um conjunto glacial, regular, medonho. Não há coisa que mais confranja o coração do que a simetria. É que a simetria é o aborrecimento e o aborrecimento é exatamente a essência da tristeza. A desesperação boceja. Pode sonhar-se uma coisa mais terrível do que o inferno em que se sofre é o inferno em que estivéssemos condenados ao aborrecimento. Se tal inferno existisse, aquele pedaço de boulevard do Hospital podia ser a sua entrada.
     Todavia, ao cair da noite, na ocasião em que do horizonte foge a claridade, principalmente de Inverno, à hora em que a brisa crepuscular arranca aos olmos as suas últimas folhas amareladas, quando é profunda a noite e se não vê no céu uma estrela, quando o vento, rasgando as nuvens, deixa passagem ao clarão mortiço daquela grande lâmpada funerária, chamada a lua, aquele boulevard tornava-se de repente medonho. As linhas negras entranhavam-se e perdiam-se nas trevas, como traços, de infinito, e o que por ali passava não podia deixar de pensar nas inumeráveis tradições patibulares do sítio. A solidão daquele local, em que se haviam come do tantos crimes, tinha alguma coisa de terrível.
      Julgava-se pressentir algum laço naquela escuridão, pareciam suspeitas todas as formas confusas da sombra, e os amplos espaços quadrados entre árvore e árvore figuravam-se covas. De dia era um espetáculo feio, de tarde lúgubre, de noite sinistro.
     De verão via-se à luz do crepúsculo algumas velhas, quase sempre mendigando, sentadas no sopé dos olmos, em bancos cobertos pela chuva de uma crusta esverdeada.
      Este bairro, porém, cujo aspecto mais era de soberania do que de velhice, tendia então a transformar-se. Nessa época devia-se apressar quem o quisesse ver, pois cada dia desaparecia alguma circunstância daquele conjunto. Há vinte anos que o embarcadouro do caminho de ferro de Orleãs atua no antigo arrabalde e todos sabem que onde quer que se coloque, na extrema de uma capital, o embarcadouro de um caminho de ferro é a morte de um arrabalde e o nascimento de uma cidade. Parece que em roda desses centros do movimento dos povos, ao rodar dessas poderosas máquinas, ao resfolegar desses monstruosos cavalos da civilização que comem carvão e vomitam fogo, treme a terra cheia de germens e se abre para tragar as antigas moradas dos homens e deixar sair as novas. Desabam as casas velhas e as novas sobem.
      Desde que a estação do railway de Orleãs invadiu os terrenos de Salpêtrière, as antigas ruas estreitas próximas aos fossos de S. Vítor e ao Jardim das Plantas abalam-se violentamente, atravessadas três ou quatro vezes cada dia por essa torrente de diligências, coches e ónibus, que a um tempo dado apertam as casas para a esquerda ou para a direita; pois há a enunciar coisas extravagantes, que rigorosamente são exatas, e do mesmo modo que é verdadeiro dizer-se que o sol nas grandes cidades faz vegetar e crescer as fachadas das casas, ao meio-dia, é também certo que a passagem frequente das carruagens alarga as ruas. São evidentes os sintomas de uma vida nova.
     Naquele antigo bairro provincial, nos recantos mais selvagens, mostra-se a calçada, os passeios principiam a rastejar e a alongar-se, mesmo por onde ainda não passa gente.
      Numa manhã de Julho de 1845, manhã memorável, viram-se de repente fumegar ali os caldeirões negros do betume; naquele dia podia-se dizer que a civilização tinha chegado à rua da Ourcine e que Paris entrara no arrabalde de S. Marcal.

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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - I - Mestre Gorbeau
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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