quarta-feira, 5 de junho de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVIII - A Partida

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







A PARTIDA


Partimos muito cedo – a madrugada 
Clara, serena, vaporosa e fresca, 
Tinha as nuances de mulher tudesca 
De fina carne esplêndida e rosada.

Seguimos sempre afora pela estrada 
Franca, poeirenta, alegre e pitoresca, 
Dentre o frescor e a luz madrigalesca 
Da natureza aos poucos acordada.

Depois, no fim lá de algum tempo – quando 
Chegamos nós ao termo da viagem, 
Ambos joviais, a rir, cantarolando,

Da mesma parte do levante, de onde 
Saímos, pois, faiscava na paisagem 
O sol, radioso e altivo como um conde.





CANÇÃO DE ABRIL


Vejo-te, enfim, alegre e satisfeita. 
Ora bem, ora bem! – Vamos embora 
Por estes campos e rosais afora 
De onde a tribo das aves nos espreita.

Deixa que eu faça a matinal colheita 
Dos teus sonhos azuis em cada aurora, 
Agora que este abril nos canta, agora, 
A florida canção que nos deleita.

Solta essa fulva cabeleira de ouro 
E vem, subjuga com teu busto louro 
O sol que os mundos vai radiando e abrindo.

E verás, ao raiar dessa beleza, 
Nesse esplendor da virgem natureza, 
Astros e flores palpitando e rindo.





O MAR


Que Nostalgia vem das tuas vagas, 
O velho mar, ó lutador Oceano! 
Tu de saudades íntimas alagas 
O mais profundo coração humano.

Sim! Do teu choro enorme e soberano, 
Do teu gemer nas desoladas plagas 
Sai o quer que é, rude sultão ufano, 
Que abre nos peitos verdadeiras chagas.

Ó mar! ó mar! embora esse eletrismo, 
Tu tens em ti o gérmen do lirismo, 
És um poeta lírico demais.

E eu para rir com humor das tuas 
Nevroses colossais, bastam-me as luas 
Quando fazem luzir os seus metais...





_________________________


De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



______________________

Leia também:

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXI - Ave! Maria

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXII - Símiles

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIII - Decadentes

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIV - Lirial

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXV - Visão Medieva

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVI - Vanda

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVII - Êxtase

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIX - Manhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário