sábado, 8 de junho de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(1)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




2 — O Esconderijo (1)







Em qualquer história, mesmo de aventuras, não podemos tirar conclusões certas, a favor ou contra, ainda que a partir de dados muito simples. Pensarão, talvez que uma catástrofe como a que acabo de contar devia arrefecer de forma eficaz a minha paixão nascente pelo mar. Pelo contrário, nunca senti desejo tão ardente de conhecer as estranhas aventuras que povoam a vida de um navegador, como uma semana depois do nosso milagroso salvamento. Este curto espaço de tempo foi suficiente para apagar da minha memória as partes tenebrosas e para trazer à luz do dia todos os aspetos coloridos deliciosamente excitantes, todo o lado pitoresco do nosso perigoso acidente. As minhas conversas com Augusto eram cada vez mais frequentes e de um interesse sempre crescente. Tinha uma maneira de contar as suas histórias sobre o mar (hoje suspeito que pelo menos metade eram pura imaginação) perfeitamente adequada para agir sobre um temperamento entusiasta como o meu, sobre uma imaginação um pouco sombria, mas sempre ardente. O que não é menos estranho é que era, sobretudo, ao descrever-me os mais terríveis momentos de sofrimento e de desespero da vida do marinheiro, que ele conseguia pôr todas as minhas faculdades e todos os meus sentimentos ao serviço dessa romanesca profissão. Pelo lado agradável da pintura tinha uma simpatia muito limitada. Todas as minhas visões eram de naufrágio e de fome, de morte ou de cativeiro entre as tribos bárbaras, de uma existência de dores e de lágrimas passada num rochedo isolado e cinzento, num oceano inacessível e desconhecido. Tais devaneios e tais desejos, pois chegava até ao desejo, são muito comuns, disseram-me mais tarde, entre a numerosíssima classe dos homens melancólicos, mas na época de que falo, considerava-os escapadas proféticas a um destino, ao qual eu me sentia, por assim dizer, votado. Augusto comungava do sentir do meu espírito. Na verdade, é provável que a nossa amizade tenha tido como resultado uma mistura dos nossos caráteres. 

Cerca de oito meses depois do desastre do Ariel, a casa Lloyd e Vredenburg (casa ligada até certo ponto com a dos senhores Enderby de Liverpool, segundo creio) pensou em reparar e equipar o brigue Grampus, para a pesca à baleia. Tratava-se de uma velha carcaça, que mal podia enfrentar o mar, apesar de todos os trabalhos de reparação. O motivo por que foi preferido a outros bons navios pertencentes aos mesmos proprietários, não sei, mas foi assim decidido. O senhor Barnard foi encarregado do comando, devendo Augusto partir com ele. Enquanto equipavam o brigue, dizia-me com insistência que aproveitasse a excelente ocasião que se apresentava para satisfazer o meu desejo de viajar. Certamente que as suas palavras me agradavam, mas as coisas não eram assim tão fáceis de arranjar. Meu pai não se opunha diretamente, mas minha mãe tinha um dos seus ataques de nervos assim que ouvia falar do projeto; e, pior que tudo, meu avô, do qual esperava muito, jurou que não me deixaria um tostão se eu ousasse falar outra vez do assunto diante dele. Mas estas dificuldades, longe de diminuírem o meu desejo, agiram como o óleo sobre o fogo. Resolvi partir apesar de tudo e, quando transmiti a minha intenção a Augusto, começamos a engendrar um plano para a pôr em prática. Entretanto, abstive-me, a partir de então, de dizer uma única palavra que fosse sobre a viagem, a meus pais; e, como cumpria com os meus deveres escolares, pensaram que eu tinha abandonado o projeto. Desde então, examinei muitas vezes a minha conduta nesta ocasião, sentindo ao mesmo tempo surpresa e desagrado. A grande hipocrisia que usei para a concretização do meu projeto, hipocrisia que todas as minhas palavras e atos refletiram durante um espaço de tempo tão longo, só foi suportada por mim graças à ardente e estranha esperança com que contemplava a realização dos meus sonhos de viajar, que há tanto tempo alimentava. 

Para a concretização do meu estratagema, fui obrigado a deixar muitos pormenores ao cargo de Augusto, que passava a maior parte do dia a bordo do Grampus ocupando-se de vários preparativos para o pai, na cabina e no porão. Porém, à noite, encontravamo-nos sempre e falávamos das nossas esperanças. Passado cerca de um mês desta forma, sem termos arranjado um plano com um possível êxito, disse-me, por fim, que tinha tratado de tudo. 

Tinha um parente que vivia em New Bedford, um tal senhor Ross, em casa de quem eu costumava passar duas ou três semanas. O brigue devia levantar ferro em meados de junho (junho de 1827) e combinamos que um dia ou dois antes da partida para o mar, meu pai receberia, como habitualmente, uma carta do senhor Ross, pedindo-lhe que me enviasse para casa dele para passar uma quinzena com Robert e Emme, seus filhos. Augusto encarregou-se de escrever o bilhete e de o fazer chegar. Assim, fingindo que partia para New Bedford, eu devia ir ter com o meu amigo, que me preparara um esconderijo a bordo do Grampus. Assegurou-me que o esconderijo seria instalado de forma bastante confortável para eu lá poder passar alguns dias, durante os quais não me devia mostrar. Quando o brigue já estivesse suficientemente longe para não poder voltar, acrescentou, eu seria formalmente instalado nas comodidades da cabina; quanto ao pai, estava convencido que ele se riria com vontade daquela brincadeira. Encontraríamos numerosos navios pelos quais poderia fazer chegar uma carta a meus pais explicando-lhes a aventura. 

Por fim, chegaram os meados de junho e tudo estava suficientemente amadurecido. A carta foi escrita e enviada e, uma segunda-feira de manhã, saí de casa fingindo dirigir-me para o vapor de New Bedford. Porém, fui diretamente ter com Augusto que me esperava a uma esquina. Estava no nosso plano inicial que eu me escondesse até ao anoitecer, penetrando, então à socapa a bordo do brigue, mas como tínhamos a nosso favor um espesso nevoeiro, decidimos que eu não perderia tempo a esconder-me. 

Augusto tomou o caminho do molhe e eu segui-o a pouca distância, envolto num grosso casaco de oleado que ele tinha trazido para que não fosse fácil reconhecerem-me. Precisamente quando íamos a virar a segunda esquina, depois de termos passado o poço do senhor Edmund, quem havia de aparecer diante de mim e olhando-me cara a cara? O meu avô em pessoa, o velho senhor Peterson! 

— Ora bem! Ora bem! — disse após uma longa pausa. — Valha-me Deus, Gordon! A quem pertence esse oleado sebento que traz pelas costas? 

— Senhor! — repliquei, assumindo tão bem quanto podia atendendo às circunstâncias, um ar de ofensa e surpresa e falando no tom mais grosseiro que se possa imaginar. — Senhor, penso que está a cometer um erro. Antes de tudo, o meu nome nada tem a ver com Gordon e depois gostava que olhasse melhor para o meu oleado novo para não dizer que é sebento, ora não querem lá ver! 

Não sei como consegui conter o riso ao ver a maneira bizarra como o velho recebeu estas fanfarronadas. Recuou dois ou três passos, primeiro ficou muito pálido e a seguir muito corado, tirou os óculos, tornou a colocá-los e avançou para mim de chapéu de chuva em punho. Porém, de repente parou como que atingido por qualquer lembrança: então virou-se e afastou-se a coxear um pouco, murmurando entre dentes: — Não pode ser! Óculos novos! Iria jurar que era Gordon! Maldito marinheiro do diabo! 

Depois de termos escapado de boa, prosseguimos o nosso caminho, com mais prudência, e chegamos, sem incidentes, ao nosso destino. Havia apenas um ou dois homens a bordo, ocupados a fazer não sei o quê no castelo da proa. Sabíamos que o capitão Barnard tinha assuntos a tratar na casa Lloyd & Vredenburg, onde se devia demorar até à noite; portanto, não tínhamos muito que recear deste lado. Augusto foi o primeiro a subir a bordo do navio e eu segui-o rapidamente, sem ser notado pelos homens que trabalhavam. Entramos logo na cabina, onde não estava ninguém. Estava confortavelmente instalada, coisa muito rara num baleeiro. Havia quatro excelentes alojamentos de oficiais, com camas largas e cômodas. Reparei ainda num grande fogão e num belo e espesso tapete que cobria o chão dos alojamentos dos oficiais. O teto estava a sete pés de altura e tudo tinha um aspeto muito mais amplo e agradável do que eu esperava. No entanto, Augusto pouco satisfez a minha curiosidade, insistindo na necessidade de me esconder o mais depressa possível. Conduziu-me à sua própria cabina, situada a estibordo perto dos compartimentos estanques. Quando entramos fechou a porta e correu o ferrolho. Parece-me que nunca tinha visto um quartinho tão bonito como aquele onde me encontrava. Tinha cerca de dez pés de comprido e apenas uma cama, que, como já disse era larga e cômoda. Na parte do quarto, contígua aos compartimentos estanques, havia um espaço de quatro pés quadrados, contendo uma mesa, uma cadeira e uma fila de prateleiras carregadas de livros, principalmente livros de viagem e de navegação. Vi muitas outras comodidades neste quarto, entre as quais não devo esquecer uma espécie de armário para alimentos e bebidas, dentro do qual Augusto tinha uma criteriosa coleção de guloseimas e licores. 

Pressionando com os dedos um certo ponto do tapete, num canto do espaço de que falei, mostrou-me uma porção do soalho com cerca de dezesseis polegadas, que tinha sido cuidadosamente cortada e reajustada. Ao ser pressionada, esta parte subiu o suficiente de um lado para deixar passar os seus dedos. Desta forma, aumentou a abertura do alçapão (ao qual o tapete continuava preso pelas pontas), e vi que conduzia ao porão da ré. Acendeu imediatamente uma pequena vela com o auxílio de um fósforo e, colocando a luz numa lanterna de furta-fogo, desceu através da abertura, dizendo-me que o seguisse. Fiz o que ele me dizia e então voltou a pôr a porta sobre o buraco por meio de um prego colocado na parte inferior; o tapete voltou assim à sua posição primitiva e todos os vestígios da abertura ficavam dissimulados.


continua...



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (03)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)
dgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (05)
dgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (06)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (fim)
Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 1 — Aventureiros Precoces(2)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(1)
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(2)



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