segunda-feira, 3 de junho de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, III — Heroísmo da obediência passiva

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



III — Heroísmo da obediência passiva 



A porta abriu-se. 

Abriu-se de par em par, como se alguém a empurrasse com energia e resolução. 

Entrou um homem. 

Este homem já nós conhecemos. Era o forasteiro que vimos há pouco a divagar em busca de pousada.

Depois de entrar, deu um passo e parou, deixando atrás de si a porta aberta. Trazia a mochila às costas, o cajado na mão. A expressão do seu olhar era rude, atrevida, fatigada e violenta. Era uma aparição sinistra. 

Magloire nem força teve para gritar. Estremeceu e ficou boquiaberta. 

Baptistina voltou-se e, avistando o homem no momento em que ele entrava, fez menção de erguer-se, aterrada por semelhante visita. Depois, lentamente, voltou-se para o lado do fogão, fitou os olhos no irmão e a expressão do seu rosto tornou-se completamente serena. 

O bispo fitava o desconhecido com aspecto tranquilo. 

No momento em que ele abria a boca para perguntar sem dúvida ao recém-chegado o que desejava, o homem encostou-se ao cajado com ambas as mãos, olhou para o velho e para as duas mulheres e, sem esperar que o bispo falasse, disse em voz alta: 

— Chamo-me Jean Valjean. Sou um forçado das galés, onde estive dezanove anos. Há quatro dias que fui posto em liberdade e vou a caminho de Pontarlier, que é o meu destino. Ainda não parei desde que saí de Toulon. Hoje andei doze léguas a pé. Cheguei aqui quase à noite e fui a uma estalagem onde não me quiseram recolher por causa do meu passaporte amarelo, que tinha apresentado na mairie, por não ter outro remédio. Fui a outra estalagem e disseram-me: «Põe-te daqui para fora!». Assim tenho andado de um lado para outro, sem ninguém me querer recolher. Bati à porta da cadeia e o carcereiro não a quis abrir. Recolhi-me na casinhota dum cão, mas o cão mordeu-me e expulsou-me como o faria um homem. Pareceu-me que também sabia quem eu era Parti em direção ao campo, com intenção de dormir ao relento. O céu estava encoberto, e eu, lembrando-me que poderia chover e que Deus não estaria para obstar a que a chuva caísse, voltei para a cidade a fim de me abrigar no vão de alguma porta. Estava eu ali no largo, deitado em cima de um banco de pedra, quando uma senhora já idosa que ia a passar me indicou a sua casa e me disse: «Bata além!» Assim fiz. Agora, diga-me, o que é isto aqui? Se é uma estalagem, tenho dinheiro para pagar. Cento e nove francos e quinze soldos, que ganhei nas galés em dezanove anos com o meu trabalho. Que tem lá isso? Para que serve o dinheiro? Andei doze léguas a pé, estou estafado e tenho fome. Posso ficar? 

— Magloire — disse o bispo — ponha mais um talher na mesa. 

O homem deu três passos e continuou, aproximando-se da mesa em que estava o candeeiro e como se não tivesse percebido bem: 

— Perdão, parece que não perceberam. Eu sou um forçado saído há pouco tempo das galés! — E, tirando do bolso uma grande folha de papel, abriu-a e prosseguiu: — Aqui está o meu passaporte. Amarelo como vêem, e que serve para me fazer expulsar de toda a parte aonde chego. Quer ler? Eu também sei ler, aprendi na prisão. Há lá uma escola para os que querem aprender. Oiça o que diz o passaporte: «Jean Valjean, forçado, natural de...» isto não interessa. «É posto em liberdade por ter concluído o tempo de galés, onde esteve dezanove anos. Cinco por crime de roubo com arrombamento, catorze por tentar evadir-se quatro vezes. É um homem perigosíssimo». Ora aqui está. Toda a gente me repeliu! O senhor faz-me o favor de me recolher? Se isto é uma estalagem, quer dar-me de comer e deixar-me dormir aí em qualquer canto, na estrebaria, por exemplo? 

— Magloire — disse o bispo — ponha lençóis lavados na cama da alcova. 

Magloire saiu imediatamente a pôr em execução as ordens do bispo. Este voltou-se para o desconhecido e disse-lhe: 

— Sente-se, senhor, e aqueça-se. A ceia não tarda e, enquanto o senhor se demora a comer, a criada faz-lhe a cama. 

Desta vez, o homem avaliou a situação em que se encontrava. A expressão do seu rosto, até então sombria e dura, transformou-se em estupefacção, dúvida e alegria, principiando a balbuciar como louco: 

— Pois quê! O senhor não me põe fora, apesar de eu ser um forçado? Trata-me por senhor quando todos me tratam por tu, quando me tratam pior do que a um cão? Eu pensava que o senhor me expulsaria, por isso disse logo quem era. Oh, abençoada seja a santa mulher que me indicou a sua casa! Vou cear, vou dormir numa cama com colchão e lençóis, como toda a gente! Uma cama! Há dezanove anos que não sei o que é dormir numa cama! Com que então não me manda pôr fora daqui? Abençoados sejam, já que tanta bondade têm com os desgraçados! Mas eu tenho dinheiro, hei-de recompensá-los bem. Queira desculpar, senhor estalajadeiro, mas como se chama? Olhe que não ficarei a dever nada. É estalajadeiro, não é? 

— Eu sou um padre que mora aqui — disse o bispo. 

— Padre! — replicou o homem. — Mas é um bom padre! Então não me leva dinheiro? É o cura desta grande igreja que está aqui ao pé? Que grande bruto eu sou! Ainda não tinha reparado no seu barrete.

Ao mesmo tempo que proferia estas palavras, o homem arrumava a um canto o cajado e a mochila, tornara a meter o passaporte no bolso e sentara-se. Após uma pequena pausa, continuou: 

— O senhor cura tem bom coração, não me tratou com desprezo! Então não quer que eu lhe pague? 

— Não — disse o bispo — guarde o seu dinheiro. Quanto tem? Parece que disse cento e nove francos? 

— E quinze soldos — acrescentou o homem. 

— Cento e nove francos e quinze soldos. E quanto tempo lhe levou a ganhar essa quantia? 

— Dezenove anos. 

— Dezenove anos! — O bispo suspirou profundamente. 

O homem prosseguiu: 

— Ainda não encetei o meu dinheiro. Em quatro dias só gastei vinte e cinco soldos, que ganhei a descarregar uns carros em Grasse. Uma vez que o senhor é padre, vou então contar-lhe. Lá nas galés tínhamos um capelão. E um dia vi um bispo ou um Monsenhor, como lhe chamam. Era o bispo de Majore, em Marselha. É o abade que governa em todos os abades. Perdão, o senhor é que sabe, eu disso não entendo. Disse missa num altar no meio da prisão, com uma coisa aguçada na cabeça, que parecia de oiro, e que reluzia à luz do sol. A ele mal o víamos. Como estava muito longe de nós, não percebemos o que ele disse. Então é que eu vi o que era um bispo. 

Enquanto ele falava, o bispo levantara-se e fora fechar a porta, que tinha ficado aberta de par em par. 

Magloire regressou, trazendo um talher que pôs sobre a mesa. 

— Magloire — disse o bispo — ponha esse talher perto do lume. — E, voltando-se para o hóspede, acrescentou: — A aragem da noite nestas terras parece que corta. O senhor deve estar com frio? 

Cada vez que o bispo pronunciava a palavra «senhor», com a sua voz de suave gravidade e o seu modo atencioso, o rosto do homem iluminava-se. O tratamento de «senhor» a um forçado é como que um copo de água a um náufrago da Medusa. A ignomínia tem sede de consideração. 

— Este candeeiro dá tão pouca luz! — disse o bispo. 

Magloire compreendeu e foi buscar acima do fogão do quarto do bispo os dois castiçais de prata, que acendeu e colocou em cima da mesa. 

— Senhor cura — disse o homem — o senhor é cheio de bondade e por isso não me despreza. Recolhe-me em sua casa, manda acender os seus castiçais por meu respeito. Porém, eu já lhe disse donde venho e contei-lhe a minha desgraça. 

O bispo, que se encontrava sentado junto dele, tocou-lhe brandamente na mão e disse: 

— O senhor não precisava de dizer-me quem era. Esta casa não é minha, é de Jesus Cristo. Aquela porta não pergunta a quem entra se tem nome, mas sim se tem algum infortúnio. O senhor sofre, tem fome e sede, bem-vindo seja! Não me agradeça por isso, não diga que o recebo em minha casa. O dono desta casa não sou eu, é todo aquele que carece de asilo. Tudo quanto há nesta casa lhe pertence. Que necessidade tenho eu de saber o seu nome? Além disso, antes de mo dizer, já eu sabia o nome que lhe havia de dar. 

O homem mostrou-se muito admirado. 

— Na verdade? Pois já sabia como me chamava? 

— Sabia — respondeu o bispo —; chama-se meu irmão. 

— Olhe, senhor cura! — exclamou o homem. — Quando entrei nesta casa, vinha a morrer de fome; porém, o senhor tem tanta bondade, que eu já não sei o que sinto, passou-me tudo! 

O bispo encarou-o, dizendo-lhe: 

— Tem sofrido muito? 

— Ora! A vestimenta vermelha, a grilheta ao pé, uma tábua por cama, calor, frio, trabalho, pancadas, corrente dobrada pela menor falta, calabouço por uma palavra, sempre acorrentado, ainda que estivesse doente e de cama! Os cães, senhor, ainda são mais felizes! Dezanove anos! E tenho quarenta e seis! Por fim, o passaporte amarelo. Aqui tem o que tenho sofrido! 

— Sim — replicou o bispo — o senhor saiu de um lugar de tristeza. Mas lembre-se que haverá mais alegria no céu pelo rosto debulhado em lágrimas de um pecador arrependido, do que pela túnica branca de cem justos. Se saiu dessa mansão de dores com pensamentos de ódio e de cólera contra os homens, é digno de compaixão; se saiu com pensamentos de benevolência, de doçura e de paz, vale mais que qualquer de nós. 

Entretanto, Magloire tinha posto a ceia na mesa; uma sopa feita de água, azeite, pão e sal, um bocado de toucinho, um pedaço de carne de carneiro, alguns figos, um pouco de queijo fresco e pão de centeio. A criada, de seu motu proprio, acrescentara uma garrafa de vinho velho de Mauves. 

O rosto do bispo tomou repentinamente essa expressão jovial peculiar aos gênios hospedeiros. 

— Vamos para a mesa — disse ele com vivacidade, como tinha por costume quando algum estranho ceava na sua companhia. Fez sentar o homem à sua direita, e Baptistina, de todo tranquilizada e restabelecida do seu receio, tomou lugar à esquerda. 

O bispo disse o benedicite e em seguida, como costumava, serviu ele mesmo a sopa. O homem principiou a comer avidamente. 

De repente, o bispo exclamou: 

— Parece-me que falta qualquer coisa na mesa! 

Efetivamente, Magloire só tinha posto os três talheres necessários. Ora, era costume antigo, todas as vezes que o bispo tinha hóspedes, pôr na mesa os seis talheres de prata. Ostentação inocente, graciosa aparência de luxo, naquela casa agradável e severa, que elevava a pobreza até à dignidade, era uma espécie de criancice encantadora. 

Magloire, compreendendo a observação, saiu sem dizer palavra e ao cabo de um momento, os três talheres reclamados pelo bispo brilhavam sobre a toalha, simetricamente colocados diante de cada um dos três convivas.



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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