domingo, 23 de junho de 2019

Gente Pobre - 43. A última, a última! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


43.




30 de setembro




Querida Bárbara, meu anjo, meu amor:



Levam-na, lá se vai! Seria preferível que me arrancassem o coração do peito a arrebatarem-na. Como é isso possível? Como pôde consentir em tal? 

Acabo de receber a sua carta, que se vê salpicada de lágrimas em muitos sítios. Dar-se-á o caso de ir contra a vontade? Levá-la-ão, porventura, à força? Ou terá pena de mim? Se assim é... tem-me amor! Pode lá ser! Ora... Que será de si? O seu coração não poderá resistir; lá nessa terra, é tudo feio, horrível, frio... As saudades não a deixarão ter saúde, o sofrimento dará cabo de si. Morrerá nessa região distante, hão de sepultá-la na terra úmida e não terá quem a chore. O senhor Buikov passará a vida na caça. 

Ah, minha querida, meu amor! Que terrível resolução tomou! Como pôde aceitar semelhante proposta? Que fez a Bárbara, que crime cometeu contra si própria? Cavar-lhe-ão a sepultura, querida; acabarão consigo, pura e simplesmente, meu anjo! É uma criança, terna e leve como uma pena! Mas onde estava eu? Dormia de olhos abertos, como um imbecil! Então não via uma criança a pensar loucuras, não sabia que à sua cabecinha apenas faltava juízo? Eu, simplesmente, o que devia ter feito era... Mas não: portei-me como um rematado idiota; não pensava nem via nada, como se tudo estivesse bem, como se o assunto me não interessasse. E ainda por cima andei a correr atrás das costureiras! Não, Bárbara; hei de curar-me. Até amanhã, talvez continue doente; mas depois ficarei bom. Aparecerei inopinadamente diante do seu carro e atirar-me-ei para debaixo das rodas! Não a deixarei partir! Com que direito procedem assim? Irei consigo. Correrei atrás da carruagem, se não me admitir dentro dela, correrei, correrei enquanto tiver forças, até que perca o alento e exale o último suspiro! 

Mas sabe bem, meu amor, o que a espera nessa região distante para onde a levam? Se não sabe, eu vou dizer-lho, porque o sei! Espera-a a estepe, meu anjo, a estepe nua, plana e sem fim, tão nua como a palma da minha mão! Ali só há camponeses brutais, sem sentimentos, aldeões incultos e bêbedos. Nesta altura do ano, já lá se não encontra uma única árvore com folha, chove e está frio. Aí tem para onde a levam! 

O senhor Buikov, claro, esse terá em que se entreter: a caça à lebre. Mas, e a Bárbara? Que vida será a sua? Contentar-se-á com ser proprietária rural? E isso, querida, fascina-a, está muito desejosa de ocupar tal posição? 

Como é possível tal coisa, querida Bárbara? A quem hei de escrever agora? Sim! Pense e pergunte a si própria apenas isto: a quem há de agora aquele desgraçado escrever cartas? E a quem, de futuro, poderei chamar «minha querida»? A quem poderei dar este nome tão terno? A quem poderei dirigir essa doce invocação? Onde a tornarei a encontrar, meu anjo? Morrerei, Bárbara; morrerei com certeza! Não; o meu coração não poderá resistir a tão grande desgraça! 

Amei-a como à luz do sol, quis-lhe como a uma verdadeira filha, tudo o que lhe diz respeito me interessava, minha pomba! a Bárbara era a razão da minha vida. Trabalhava e escrevia, e refletia depois sobre as impressões que confiava ao papel, e tudo isto, meu amor, porque a tinha perto de mim. Talvez você não o compreendesse, mas era assim, era realmente como lhe digo! 

Preste-me atenção, querida; pense bem e veja se me deve abandonar... Não, meu amor, não o pode fazer e não o fará! Nem pensar em tal coisa! Chove e você anda tão adoentada! Vai apanhar, sem dúvida, um resfriamento! O carro em que viajam molhar-se-á, porque um carro não é uma casa... e a chuva há de atingi-la a si também. Logo à saída da cidade, uma roda do carro rebentará, se não se despedaçar todo ele! Os carros feitos em S. Petersburgo são muito maus! Eu conheço todos os construtores! São uns veículos muito bonitos, metem vista, mas quanto a segurança... Pode crer, juro-lhe: esses carritos não prestam para nada. 

Lançar-me-ei aos pés do senhor Buikov e dir-lhe-ei tudo, tudo. E você, minha querida, há de também procurar convencê-lo. Contar-lhe-á tudo, discretamente, e convencê-lo-á. Dir-lhe-á simplesmente que fica cá, que o não pode acompanhar... Ah! Porque se não terá ele casado com a filha do tal comerciante de Moscovo? Porque não terá optado por isso? Seria melhor para todos e mais indicado para ele, creio! Assim você continuaria aqui, ao meu lado! De resto, que é para si esse senhor Buikov? Como pôde enamorar-se de si tão de repente e você ganhar-lhe tal afeição? Ter-lhe-á, porventura, transtornado a cabeça com esses trapos que lhe ofereceu, ou a razão será outra? Mas, afinal, para que servem esses farrapos? Não passam de um bocado de pano. Neste momento, trata-se de coisa de maior valia: de uma vida humana, meu amor; e esses trapos, comparados com ela, nada valem, não têm a mínima importância. Além disso, também lhe posso comprar dessas coisas; deixe-me receber o ordenado, e há de ver... Sei onde se vendem e tenho conhecimento na loja. Apenas precisa, como digo, de esperar que receba o ordenado, meu anjo, querida Bárbara. 

Ah, meu Deus, meu Deus! Então está deveras resolvida a acompanhar o senhor Buikov para a estepe, para sempre? Ai, querida!... Não, tem de me voltar a escrever, nem que sejam umas letras apenas, a contar-me tudo. E logo que chegue ao destino, escreva-me de lá! De contrário, meu amor, seria esta a última carta, e isso não é possível, não me conformo com a ideia de que seja esta a última! 

Como poderia interromper-se a nossa correspondência assim tão de repente? A última, a última! Mas não; ainda lhe hei de escrever muitas cartas e você a mim. Pois se só agora é que começo a ter estilo... Ah, querida Bárbara, que digo eu de estilo? Escrevo-lhe ao correr da pena, sem saber o que escrevo — porque não sei mesmo! —, e não leio outra vez os meus escritos, nem os emendo, nem nada. Só penso em escrever-lhe, escrever-lhe cada vez mais!... Meu cordeirinho, meu amor, minha querida Bárbara!


... fim...


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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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Um comentário:

  1. Ah, minha querida, meu amor! Que terrível resolução tomou! Como pôde aceitar semelhante proposta? Que fez a Bárbara, que crime cometeu contra si própria? Cavar-lhe-ão a sepultura, querida; acabarão consigo, pura e simplesmente, meu anjo! É uma criança, terna e leve como uma pena! Mas onde estava eu? Dormia de olhos abertos, como um imbecil!

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