segunda-feira, 15 de junho de 2020

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte 1b. Parecia estar ainda doente...

O Idiota


Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


1b.


Parecia estar ainda doente, ou pelo menos com um resto de febre. Quanto ao funcionário subalterno, este então já agora permanecia como que suspenso diante de Rogójin, quase não ousando respirar, agarrado às menores palavras, como à espera que delas caísse algum diamante. - Zangado, lá isso bem que ele estava, e bem que lhe sobravam razões - respondeu Rogójin, - mas tudo preparado propositadamente por meu irmão. A minha mãe não posso eu culpar, não passa de uma velha que vive lendo As Vidas dos Santos, sentada entre outras velhotas. E o que o mano Semión disser é lei. Mas por que não me mandou ela avisar ainda a tempo? Eu sei por que foi! Sim, verdade é que eu estava ainda inconsciente a tal altura. Garantem que passaram um telegrama; de fato, mas o passaram a quem? A minha tia. Ora, minha tia cozinha uma viuvez há mais de trinta anos e passa a vida com os iuródivii, (Iurôdivii: simples de espírito, muitas vezes epilépticos, que passavam por ter os atributos de santos e um dom profético. - N. do T.) uns romeiros malucos, isso desde manhã até à noite. Não que seja propriamente uma freira; algo muito pior, isso sim. Claro que, como velha, havia de se apavorar com um telegrama. E zás, foi levá-lo imediatamente à delegacia de polícia, sem ao menos abri-lo: e lá ainda está o estupor! Quem me valeu foi Vassílii Vassilitch Konióv, que me escreveu contando essa trapalhada toda. Até me mandou dizer que meu irmão cortou durante a noite as borlas douradas do brocado fúnerário do caixão de meu pai. “Esta joça deve valer um dinheirão!” disse o gajo. Só por causa disso ele pode ser mandado para a Sibéria, se eu quiser, pois se trata de um sacrilégio. Você aí, seu espantalho - virou-se para o funcionário público - a lei diz ou não diz que isso é sacrilégio’?

- Se é sacrilégio? Inominável! - asseverou o amanuense, imediatamente. - E não é um caso de Sibéria?

- Lógico! Sibéria! Sibéria imediatamente! - Eles lá cuidam que eu ainda esteja doente. - E Rogójin voltou-se de novo para o príncipe.

- Pois, sem dizer um pio a quem quer que fosse, me meti no vagão, doente mesmo como estava e como ainda estou, e vou tocando para casa. “Tu, mano Semión Semiónovitch, ao abrires a porta quando eu bater, vais dar de cara comigo!” Fez meu pai virar contra mim, eu sei. Confesso que fiz meu pai ficar zangado por causa de Nastássia Filíppovna. Por causa do que eu fiz. Quanto a isso, não há dúvida, sou culpado.

- A propósito de quem? De Nastássia Filíppovna? - balbuciou o funcionário com o maior servilismo, como a ligar o que estava escutando com qualquer coisa no seu cérebro.

- Não vá me dizer que a conhece também! - exclamou Rogójin com impaciência.

- Pois conheço! Se conheço! - respondeu o homem, triunfantemente. - Ora a minha vida! Há várias Nastássias Filíppovnas. E uma coisa lhe digo: deixe-se de insolência, animal! - Voltou-se logo para o príncipe e disse como a desabafar: - Já me palpitava que algum estupor da laia deste não tardaria a se dependurar em mim!

- Mas talvez seja essa a que eu conheço! - disse o amanuense, ressabiado. - Eu, Liébediev, sei de tudo; compreendo que Vossa Excelência me invective; mas, e se eu provar o que digo? Sim, eu me refiro a essa Nastássia Filíppovna mesma, por cuja causa o senhor seu pai tentou lhe dar umas bengaladas. O sobrenome dessa Nastássia Filíppovna é Baráchkov, e é uma dama a bem dizer de alto coturno, é mesmo uma princesa, tal a sua maneira; está ligada a um homem chamado Tótskii Afanássii Ivánovitch, a esse e a mais ninguém, pessoa de propriedades e de imensa fortuna, membro de companhias e de sociedades, mediante as quais se tornou muito amigo do General Epantchín...

- Raios o partam! É isso mesmo! - Rogójin acabou ficando surpreso. - Ufa! Pois não é que o excomungado sabe mesmo?! - Cá comigo é assim, Liébedieve sabe tudo! Eu dava umas voltas por aí, Excelência, acompanhando o jovem Aleksándr Likhatchóv. Logo depois que morreu o pai dele andamos juntos uns dois meses. Mostrei-lhe umas coisas, que eu cá conheço muito bem, a ponto dele não se mexer, um passo que fosse, sem Liébediev. Por sinal que ele agora está na prisão, por dívidas; mas a tal altura tive minhas oportunidadezinhas de vir a conhecer Armância, Corália, mais a Princesa Pátski e Nastássia Filíppovna. E muitas outras além destas. - Nastássia Filíppovna? E por qual motivo esse Likhatchóv... Rogójin encarou-o com o cenho franzido, enquanto os lábios se crispavam lívidos.

- Absolutamente! Absolutamente! Não senhor! De forma alguma! - garantiu o amanuense, com uma pressa nervosa. -Likhatchóv não a conseguiria por dinheiro algum! Não, ela não é nenhuma Armância. Ela não tem ninguém, a não ser Tótskii. Certas noites acontece ir ela se sentar no seu camarote no Grande Teatro ou na Comédia Francesa. Não digo que os oficiais, por exemplo. não falem a propósito dela; mas até mesmo eles nada podem dizer contra ela. “Lá está a famosa Nastássia Filippovna!”, dizem, e é tudo. E mais nada, absolutamente, pois não existe mesmo nada. - Lá isso é a pura verdade - confirmou Rogójin franzindo a testa, sinistramente.

- Já uma outra vez Zaliójev disse a mesma coisa. Ia eu atravessando a Perspectiva Névskii, príncipe, metido no casaco de meu pai, que já tinha três anos de uso, quando ela saiu de uma loja e subiu para a carruagem. Fiquei logo abrasado. E esbarrei com Zaliójev. Se desmazelado eu andava, elegante e aprumado vinha ele, que nem um oficial de cabeleireiro, como sempre com o seu monóculo. E dizer-se que na casa de meu pai nós usávamos botas alcatroadas e éramos tratados só a sopas de couve sem carne! “Ela não é para o teu bico, rapaz”, chasqueou ele. “É uma princesa. Chama-se Nastássia Filíppovna Baráchkov e vive com o Tótskii. E o tal Tótskii nem sabe o que fazer para se livrar dela, pois já atingiu a idade crítica da vida - cinqüenta e cinco anos - e aspira casar-se com a maior beldade de Petersburgo”. Acrescentou, então, que eu poderia ver Nastássia Filíppovna outra vez, ainda naquele dia, no Grande Teatro, na récita do ballet. Que ela deveria estar no seu camarote, na sua baignoire. Falar, na nossa família, em ir ao ballet nunca passaria de extravagante presunção, pois o meu velho não tinha meias medidas: ante uma tal audácia, esbodegaria logo com qualquer de nós, taxativamente! Mas eu escapuli e me esgueirei teatro adentro, lá permanecendo durante uma hora; e vi de novo Nastássia Filíppovna. Conseqüência: a noite inteira não consegui dormir. Na manhã seguinte, como de propósito, meu pai cai na asneira de me entregar duas apólices de cinco por cento, no valor de cinco mil rublos cada uma. “Vai vendê-las”, diz-me ele, “e entrega sete mil e quinhentos rublos no escritório do Andréiev, liquidando assim uma conta que tenho lá e volta imediatamente para casa com o troco, que te fico esperando”. Saí com as apólices, troquei-as em dinheiro sonante, mas quem diz que fui ter com Andréiev?

Toquei mas foi diretamente para a Loja Inglesa, onde escolhi um par de brincos tendo cada um deles um diamante do tamanho mais ou menos de uma noz. Dei por eles os dez mil rublos e ainda fiquei devendo mais quatrocentos. Disse o meu nome e confiaram em mim. Dali fui com os brincos procurar Zaliójev. Contei-lhe tudo e o intimei: “Leva-me à casa de Nastássia Filíppovna, mano velho”. Despachamo-nos. Não via e nem me posso lembrar que ruas seguíamos, por onde passávamos, por quem cruzávamos. Só sei que fomos parar exatamente na sua sala de visitas e que ela depois apareceu, pessoalmente. Naquele instante como havia eu de dizer a ela quem eu era? E foi Zaliójev quem tomou a palavra: “Queira aceitar isto da parte de Parfión Rogójin, como lembrança do encontro com a senhora, ontem; digne-se aceitar, por quem é!”. Ela abriu o estojo, olhou e sorriu. “Agradeça por mim ao seu amigo, o Sr. Rogójin, por sua tão amável atenção”. Inclinou-se, saudando, e retirou-se lá para dentro. Há! Por que não morri eu logo ali mesmo? Se me atrevera a ir à casa dela fora porque pensara: “Só em revê-la, morrerei!” E o que me mortificava mais do que tudo, era aquela besta do Zaliójev haver ficado com as honras e vantagens do ato. Sim, pois mal vestido como eu estava, fiquei acolá, diante dela, mudo, pasmado, cheio de acanhamento, ao passo que ele, endomingado na última moda, todo frisado e empomadado, muito garboso com a sua gravata de riscas - era todo mesuras e salamaleques. Ora, é claro que ela o tomou como sendo eu!

“Toma tento, ó coisa”, disse-lhe eu, já na rua, “não te ponhas a arquitetar patranhas, hein? estás ouvindo bem?” Ele ria. “E como é que vais agora prestar contas do dinheiro a teu pai?” Bem me pareceu que a solução era, em lugar de voltar para casa, me atirar ao rio; mas pensei: “Depois do que houve, que me importa o resto?” e entrei uma alma sem remissão. - Que horror! - fez o funcionário, encolhendo-se todo. Positivamente estava assombrado.

- Ainda mais sabendo que o falecido era um indivíduo capaz de dar cabo de uma pessoa por causa de dez rublos, quanto mais então por dez mil rublos, credo! - acrescentou, meneando a cabeça para o príncipe. Míchkin encarou Rogójin observando-o com interesse; este último se tornara agora mais lívido do que nunca. - Capaz de dar cabo de uma pessoa! - disse Rogójin, repetindo as palavras do outro e escandindo-as.

- Quem lhe disse que ele era capaz de liquidar com um sujeito? - E, voltando-se imediatamente para o príncipe, prosseguiu: - O velho descobriu logo o meu estelionatozinho... e, de mais a mais, Zaliójev saíra a bater a língua, contando a todo o mundo. Meu pai agarrou-me, fechou-se no andar de cima comigo e, durante uma hora, lhe estive nas garras: desancou-me. “E isto é apenas um prefácio”; me disse ele. “Ainda voltarei para te dizer boa noite”. Que pensa o senhor que ele resolveu? Dirigiu-se nem mais nem menos à casa de Nastássia Filíppovna, arrojou-se aos pés dela, chorando e implorando, a ponto de ela acabar indo buscar o estojo e lhe atirar. “Aí estão os brincos, seu barbaças!” gritou-lhe. “E agora duplicaram de valor para mim, visto Parfión ter afrontado tamanha tempestade para mos trazer. Recomende-me a Parfión Semiónovitch e lhe agradeça por mim”. Durante isso tratei de arranjar vinte rublos com Seriója Protúchin, tomei a bênção de minha mãe e corri a tomar o trem para Pskóv, onde já cheguei tiritando de febre. Aquelas velhas todas de lá desandaram a ler As Vidas dos Santos à minha volta... E eu estatelado, bêbado, a escutá-las! Acabei com o resto das moedas, percorrendo as tavernas do lugarejo, vagueando pelas ruas sem dar tento de nada, completamente aparvalhado. Ao amanhecer estava em franco delírio e, para cúmulo, os cães não se tinham fartado de rosnar no meu encalço. Escapei de boas. - Bem, bem! Mas já agora Nastássia Filíppovna vai cantar em um outro tom - grasnou o funcionário, esfregando as mãos. - Isso de brincos, então... Ah, patrão, agora é que ela vai ver o que são brincos!...

- Cale-se, você aí! Se ousar dizer mais uma só palavra sobre Nastássia Filíppovna o escangalho, tão certo como haver um Deus lá em cima! Lanho-o de chicote! Ou pensa que lhe vale de alguma coisa ser íntimo de Likhatchóv? - gritou Rogójin, agarrando-o violentamente por um braço. - - Isso, isso! Escangalhe-me, pois então é que não se livra mesmo de mim! Escangalhe-me e então terá de me aturar deveras! Isso, isso, desça as mãos sobre mim, como a marcar-me com o seu carimbo de posse... Homessa! Chegamos? - O trem entrara de fato na estação. Apesar de Rogójin haver dito que estava voltando sem ter avisado ninguém, vários homens o esperavam. Assim que deram com ele prorromperam em exclamações e lhe atiraram com os gorros.

- Pois não é que Zaliójev também veio me esperar! - sussurrou Rogójin, olhando para aquele bando todo com um sorriso triunfante e algo malicioso; e logo se voltou para Míchkin.

- Príncipe, não sei por que simpatizei com o senhor. Talvez porque o tenha encontrado em uma emergência destas, muito embora também haja encontrado esse sujeito aqui (e mostrava Liébediev) que não suporto. Vá visitar-me, príncipe. Arrancar-lhe-emos essas polainas. comprar-lhe-emos um casaco de pele, metê-lo-ei em uma casaca de primeira ordem com um colete imaculado, e mais tudo aquilo de que o senhor gosta! Enfiarei dinheiro pelos seus bolsos adentro!... e iremos ver Nastássia Filíppovna! Venha, hein?! Ante o que Liébediev bimbalhou de modo solene e expressivo: - Ouviu bem, Príncipe Liév Nikoláievitch? Não perca essa oportunidade! Oh, não perca esta ocasião!

Levantando-se, o príncipe cortesmente estendeu a mão a Rogójin. dizendo com a máxima cordialidade:

- Irei com o maior prazer e lhe agradeço haver gostado de mim. Irei ainda hoje mesmo se tiver tempo. Por minha vez confesso que tive, francamente, muito gosto em conhecê-lo e que desde o instante em que me contou essa passagem referente aos brincos senti grande simpatia pelo senhor. Aliás antes mesmo de me contar esse gesto, e apesar de no começo ter estado a me observar de um modo esquisito, eu já estava gostando do senhor. Obrigado também pelas roupas e pelo casaco de peles que está me prometendo. Na verdade ando muito necessitado de roupas e de agasalhos. E, quanto a dinheiro, efetivamente o que ainda me resta é uma ninharia. - Pois apareça! Esta noite haverá dinheiro, muito dinheiro!

- Haverá sim! Haverá sim!! - confirmava sem parar o amanuense. - Muitíssimo dinheiro, antes de anoitecer, antes de cair o sol! - E mulheres também! Gosta de mulheres, príncipe? Diga com franqueza! - Eu, n... não! Quer que lhe seja franco? Não sei se o senhor compreenderá, mas é que, decerto por causa da minha doença, nada sei a respeito de mulheres...


- Bem, se isso assim é - exclamou Rogójin - valha-o Deus, que põe Suas complacências nas criaturas inocentes.

- Sim, o Senhor nosso Deus se compraz em criaturas como o senhor - reforçou o funcionário público a quem, voltando-se, Rogójin ordenou: - Quanto a você, siga-me!

Desceram logo do vagão. Líébediev acabara ganhando a sua partida. O grupo barulhento sumiu logo ao longo da Perspectiva Voznessénski. Quanto ao príncipe, tinha de ir para a Litéinaia. O tempo continuava enevoado e chuvoso. Míchkin informou-se do trajeto com um transeunte - e, como teria de andar umas três verstás, resolveu tomar um fiacre.





continua página 013...

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Leia também:

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte 1a. Em dada manhã...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (2a.) O General Epantchín vivia em casa própria

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Avisando:

Resenha com spolier
O Idiota (Fiódor Dostoiévski) | Tatiana Feltrin





O Idiota, Episódio 2
- 2003 (Legendado)




Dostoiévski é considerado o maior escritor russo de seu tempo. É autor de várias obras-primas. O Idiota começou a ser redigido em 14 de setembro 1867 em Genebra, Suiça, e foi concluído a 25 de janeiro de 1868, em Florença, Itália. A obra teve uma elaboração difícil e torturada. Em meio às piores dificuldades, foi escrita e reescrita muitas vezes até a redação definitiva. A obra foi inspirada na figura de Dom Quixote, de Cervantes. O Idiota é, talvez, o romance mais típico de Dostoiévski, provocou perplexidade nos meios intelectuais da época. a obra foi elogiada por Tolstoi, que a achou de grande força dramática e beleza literária. Michkin foi, antes de tudo, o último "homem", o último "ser humano" da Literatura Universal. O primeiro foi Dom Quixote (aliás mencionado no livro). O que Dostoiévski fez foi mostrar à Rússia a dissolução da própria fé e da esperança na bondade universal e prepará-la para chegada dos "Demônios"



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