sábado, 27 de junho de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Quando alertam as crianças contra desconhecidos, quando interpretam na frente delas um incidente sexual, falam-lhes de bom grado de doentes, de maníacos, de loucos; é uma explicação cômoda; a menina apalpada por um desconhecido no cinema, a menina diante de quem um passante desabotoa a braguilha, pensa que enfrentou loucos. Sem dúvida o encontro com a loucura é desagradável: um ataque de epilepsia, de histeria, uma disputa violenta põem em relevo a falha de ordem do mundo adulto e a criança que a testemunha sente-se em perigo; mas enfim, assim como há vagabundos, mendigos, enfermos em uma sociedade harmônica, nela se podem encontrar também certos anormais sem que os alicerces dessa sociedade se abalem. É quando os pais, os amigos, os mestres são suspeitados de celebrarem missas negras às escondidas que a criança tem realmente medo. 


Quando me falaram pela primeira vez de relações sexuais entre homem e mulher, declarei que eram impossíveis, posto que meus pais as deveram ter tido também e eu os estimava demasiado para acreditá-lo. Eu dizia que era por demais repugnante para que o viesse a fazer um dia. Infelizmente iria ser desiludida pouco depois, ouvindo o que meus pais faziam. . . Esse instante foi pavoroso; escondi o rosto na coberta, tapando os ouvidos, e desejei estar a mil quilômetros dali [1].


(1) Citado pelo Dr. Liepmann em Jeunesse et sexualité.


Como passar da ideia de pessoas vestidas e dignas, pessoas que ensinam a decência, a discrição, a razão, à de dois animais nus e que se enfrentam? Há nisso uma contestação dos adultos por si próprios que amiúde lhes abala o pedestal, enche de trevas o céu. Muitas vezes a criança recusa com obstinação a odiosa revelação: "Meus pais não fazem isso", declara. Ou tenta dar a si mesma uma imagem decente do coito: "Quando se quer um filho", dizia uma menina, "a gente vai ao médico, despe-se, põe uma venda nos olhos, porque não se deve olhar; o médico amarra os pais um ao outro e ajuda para que tudo dê certo"; transformara o ato amoroso em uma operação cirúrgica, sem dúvida pouco agradável, mas tão honrosa como uma visita ao dentista. Entretanto, apesar de recusas e fugas, o mal-estar e a dúvida insinuam-se no coração da criança; produz-se um fenômeno tão doloroso quanto o da desmama: não mais porque a criança é separada da carne materna, mas porque, em torno dela, o universo protetor se desmorona; ela se reencontra sem teto sobre a cabeça, abandonada, absolutamente só em face de um futuro cheio de trevas. O que aumenta a angústia da menina é o fato de que ela não consegue delimitar exatamente os contornos da maldição equívoca que pesa sobre ela. As informações obtidas são incoerentes, os livros contraditórios. As próprias exposições técnicas não dissipam a sombra espessa; cem perguntas se apresentam: é o ato sexual doloroso? Ou delicioso? Quanto tempo dura? Cinco minutos ou uma noite inteira? Lê-se por vezes que uma mulher ficou grávida com um só amplexo e outras vezes que permaneceu estéril após horas de volúpia. As pessoas "fazem isso" todos os dias? Ou raramente? A criança tenta informar-se lendo a Bíblia, consultando dicionários, interrogando colegas e conduz-se às apalpadelas na obscuridade e na repugnância. A esse respeito é um documento muito interessante o inquérito levado a efeito pelo Dr. Liepmann. Eis algumas das respostas que lhe foram dadas por moças acerca da iniciação sexual:


Continuei a perambular com minhas idéias nebulosas e absurdas. Ninguém ventilava o assunto, nem minha mãe, nem minha professora: nenhum livro tratava da questão a fundo. Pouco a pouco tecia-se uma espécie de mistério e horror em torno do ato que se me afigurava a princípio tão natural. As meninas mais velhas, de doze anos, valiam-se de brincadeiras grosseiras para criar como que uma ponte entre elas e nossas companheiras de classe. Tudo isso era ainda tão vago e tão repugnante que discutíamos acerca de onde se formavam as crianças e se a coisa só acontecia uma vez para o homem, porquanto o casamento era a causa de tal confusão. Minhas regras, que apareceram quando tive quinze anos, foram para mim uma nova surpresa. Achava-me, por minha vez, como que arrastada até certo ponto na dança. . . . . .

Iniciação sexual! Era uma expressão a que não se devia aludir em casa de meus p a i s ! . . . Procurava nos livros mas atormentava-me e me enervava a procurar sem saber onde encontrar o caminho que devia seguir... Frequentava uma escola de meninos: para o professor a coisa parecia não existir. . . A obra de Horlam, Garçonnet et fillette, trouxe enfim a verdade. Meu estado de crispação, de superexcitação insuportável dissipou-se, embora eu fosse então muito infeliz e me tivesse sido necessário muito tempo para reconhecer e compreender que somente o erotismo e a sexualidade constituíam o verdadeiro amor.

Etapas de minha iniciação: 1º) Primeiras perguntas e algumas noções vagas (nada satisfatórias). De 3 1/2 anos até 1 1 . . . Nenhuma resposta às perguntas que eu fiz nos anos seguintes. Quando tive 7 anos eis que vi, ao dar de comer a uma coelha, filhotes se arrastarem por baixo d e l a . . . Minha mãe disse-me que entre os animais, e também entre os homens, os filhos cresciam no ventre da mãe e saíam pelos flancos. Esse nascimento a partir do flanco pareceu-me absurdo... Uma ama-seca contou-me muitas coisas acerca da gravidez, da gestação, da menstruação... Finalmente a última pergunta que fiz a meu pai sobre sua função real foi-me respondida com histórias obscuras de pólen e pistilo. 2º) Algumas tentativas de iniciação pessoal (11 a 13 anos). Descobri uma enciclopédia e uma obra de medicina. .. Não passou de uma informação teórica constituída de gigantescas palavras estranhas. 3º) Controle dos conhecimentos adquiridos (13 a 20 anos): a) na vida quotidiana; b) nos trabalhos científicos.

Quando eu tinha 8 anos brincava amiúde com um menino de minha idade. De uma feita tratamos do assunto. Eu já sabia, porque minha mãe mo dissera, que uma mulher tem muitos ovos no corpo. . . e que um filho nascia de um desses ovos todas as vezes que a mãe sentia um agudo desejo de tê-lo. . . Tendo dado a mesma explicação a meu colega, dele recebi esta resposta; "Você é completamente estúpida! Quando nosso açougueiro e a mulher querem ter um filho eles se enfiam na cama e fazem porcarias". Fiquei indignada. . . Tínhamos então (por volta de 12 1/2 anos) uma criada que nos contava toda espécie de histórias sujas. Eu não dizia uma palavra sequer a mamãe porque tinha vergonha; mas perguntava-lhe se se pegava um filho sentando nos joelhos de um homem. Ela explicou-me tudo como pôde.

Por onde saíam as crianças, aprendi-o na escola e tive a sensação de que era uma coisa horrível. Mas como vinham ao mundo? Tínhamos da coisa uma ideia até certo ponto monstruosa, principalmente depois que, indo para a escola, certa manhã de inverno, em plena obscuridade, tínhamos juntas encontrado um sujeito que nos mostrara suas partes sexuais e nos dissera, aproximando-se de nós: "Não lhes parece gostoso de mastigar?" Nossa repugnância fora inconcebível e ficamos literalmente revoltadas. Até aos 21 anos eu imaginava que a vinda ao mundo, das crianças, se efetuava pelo umbigo.

Uma menina chamou-me de lado e perguntou: "Sabe de onde saem as crianças?" Finalmente resolveu declarar: "Puxa! Como você é boba! As crianças saem da barriga das mães e para que nasçam é preciso que as mulheres façam com os homens uma coisa imunda!" Depois do que explicou-me mais minuciosamente a porcaria. Mas eu estava toda transtornada, recusando-me absolutamente a considerar possível que ocorressem coisas semelhantes. Dormíamos no mesmo quarto que nossos p a i s . . . Numa das noites que se seguiram, ouvi acontecer o que não considerara possível e tive vergonha, sim, vergonha de meus pais. Tudo isso fez de mim como que um outro ser. Senti horríveis sofrimentos morais. Considerava-me uma criatura profundamente depravada por estar a par dessas coisas.


É preciso dizer que mesmo uma informação coerente não resolveria o problema; apesar de toda a boa vontade dos pais e dos professores, não se poderia pôr em palavras e conceitos a experiência erótica; esta só se compreende vivendo-a; qualquer análise, por mais séria que fosse, teria um aspecto humorístico e deixaria de desvendar a verdade. Partindo dos poéticos amores das flores, das núpcias dos peixes, passando pelos pintainhos, o gato, o cabrito, e chegando até a espécie humana, pode-se teoricamente esclarecer o mistério da geração: o da volúpia e do amor carnal permanece total. Como se explicaria a uma criança de sangue calmo o prazer de uma carícia ou de um beijo? Em família dão-se e recebem-se beijos, às vezes até nos lábios: por que em certos casos esse encontro de mucosas provoca vertigens? Não se descrevem cores a um cego. Enquanto falta a intuição da turvação, e do desejo que dá à função erótica seu sentido e unidade, os diferentes elementos que a constituem parecem chocantes e monstruosos. A menina revolta-se particularmente quando compreende que é virgem e selada e que, para transformá-la em mulher, será necessário que um sexo de homem a penetre. Sendo o exibicionismo uma perversão assaz comum, muitas meninas viram pênis em estado de ereção. Em todo caso observaram sexos de animais e é lamentável que tantas vezes o do cavalo lhes atraia o olhar; concebe-se que se sintam apavoradas. Medo do parto, medo do sexo masculino, medo dos "ataques" que podem ter os casados, repugnância por certas práticas sujas, irrisão em relação a gestos desprovidos de qualquer significação, tudo isso leva amiúde a menina a declarar: "Não casarei nunca" [2]. É a defesa mais segura contra a dor, a loucura, a obscenidade. Em vão tentam explicar-lhe que, chegando o dia, nem a defloração nem o parto lhe parecerão tão terríveis, que milhões de mulheres a isso se resignaram e nem por isso vão passando menos bem. Quando a criança tem medo de um acontecimento exterior, libertam-na, mas predizendo-lhe que mais tarde o aceitará naturalmente: é sua própria pessoa que ela teme então encontrar alienada, perdida no fundo do futuro. As metamorfoses da lagarta que se transforma em crisálida e borboleta põem certo mal-estar no coração: será a mesma lagarta após tão longo sono? Reconhece-se ela sob as asas brilhantes? Conheci meninas para as quais o espetáculo de uma crisálida mergulhava em um devaneio assustado.


[2] "Cheia de repugnância supliquei a Deus que me outorgasse uma vocação religiosa que me permitisse não obedecer às leis da maternidade. E depois de ter longamente pensado nos mistérios repugnantes que sem querer escondia a mim mesma, fortalecida por tanta repulsa como por um sinal divino, concluía: a castidade é certamente minha vocação", escreve _Yassu Gauclère em L'Orange Bleue. Entre outras, a ideia de perfuração horrorizava-a. "Era isso então o que tornava terrível a noite_ de núpcias! Essa descoberta transtornou-me, acrescentando a repugnância que já sentia anteriormente o terror físico dessa operação que eu imaginava extremamente dolorosa. Meu terror houvera ainda aumentado se tivesse suposto que pela mesma via ocorria o nascimento, mas tendo sabido de há muito que os filhos nasciam no ventre da mãe, eu acreditava que dele se destacavam por segmentação."

E, no entanto, a metamorfose ocorre. A menina não lhe percebe o sentido, mas percebe que em suas relações com o mundo e com o próprio corpo alguma coisa vai mudando sutilmente: é sensível a contatos, gostos, odores que antes a deixavam indiferente; imagens barrocas sobem-lhe à cabeça; nos espelhos ela mal se reconhece; sente-se "estranha", as coisas parecem-lhe "estranhas"; assim acontece com a pequena Emily que Richard Hughes descreve em Um Ciclone na Jamaica:


Para refrescar-se, Emily sentara-se na água até o ventre e centenas de peixinhos titilavam-lhe cada polegada do corpo com suas bocas curiosas: era como se fossem beijos leves e sem sentido. Nos últimos tempos, ela pusera-se a detestar que a tocassem, mas aquilo era abominável. Não o pôde mais suportar: saiu da água e tornou a vestir-se.


Até a harmoniosa Tessa de Margaret Kennedy conhece essa estranha perturbação:


Subitamente, sentiu-se profundamente infeliz. Seus olhos contemplaram fixamente a obscuridade do saguão cortado em dois pelo luar que entrava como uma vaga pela porta aberta. Não pôde aguentar. Ergueu-se de um salto com um gritinho exagerado: "Oh! exclamou, como detesto o mundo inteiro!" Correu então a esconder-se na montanha, assustada e furiosa, atormentada por um triste pressentimento que parecia encher a casa sossegada. Aos tropeços pelo atalho, recomeçou a murmurar para si mesma: "Quisera morrer, quisera estar morta".

Sabia que não pensava o que dizia, não tinha a menor vontade de morrer. Mas a violência das palavras parecia satisfazê-la. . .


No livro já citado de Carson Mac Cullers esse momento inquietante é longamente descrito.


Era no verão em que Frankie se sentia enjoada e cansada de ser Frankie. Odiava-se, tornara-se uma vagabunda, uma inútil que rodava pela cozinha: suja e esfomeada, 'miserável e triste. Demais, era uma criminosa. . . Aquela primavera fora uma estação estranha, que não acabava. As coisas puseram-se a mudar e Frankie não compreendia a mudança. . . Havia algo nas árvores verdejantes e nas flores de abril que a entristecia. Não sabia por que estava triste, mas por causa dessa tristeza singular pensou que deveria ter saído da cidade. . . Deveria ter saído da cidade e ido para longe. Pois naquele ano a primavera fora displicente e açucarada. As longas tardes passavam devagar e a doçura verde da estação dava-lhe n o j o . . . Cedo pela manhã ia, às vezes, ao pátio e ficava um bom momento a olhar a alvorada; e era como uma pergunta que lhe surgia no coração e. a que o céu não respondia. Coisas que antes nunca notara começaram a impressioná-la: as luzes das casas que percebia à noite quando passeava, uma voz desconhecida saindo de um beco. Olhava as luzes, ouvia as vozes e algo dentro dela retesava-se à espera. Mas as luzes apagavam-se, a voz calava e, apesar de sua espera, era tudo. Tinha medo dessas coisas que a levavam a perguntar-se repentinamente quem era, que iria tornar-se no mundo, e por que se achava ali a ver uma luz, a escutar e a fixar o céu: sozinha. Tinha medo e o peito oprimia-se estranhamente. . . .

Passeava na cidade e as coisas que via e ouvia pareciam-lhe inacabadas e havia nela aquela angústia. Apressava-se em fazer alguma coisa: mas não era nunca o que devera ter feito. . . Após os longos crepúsculos da estação, depois de ter perambulado pela cidade toda, seus nervos vibravam como uma melodia melancólica de jazz, seu coração endurecia-se e parecia parar.


O que ocorre nesse período perturbado é que o corpo infantil se torna corpo de mulher, faz-se carne. Salvo em casos de deficiência glandular, em que o paciente permanece fixado em seu estádio infantil, a crise da puberdade inicia-se por volta dos 12 ou 13 anos [3]. Tal crise principia muito antes para a menina do que para o menino e provoca mudanças muito mais importantes. A menina enfrenta-a com inquietação, com desprazer. No momento em que se desenvolvem os seios e o sistema piloso, nasce um sentimento que por vezes se transforma em orgulho mas que é originalmente de vergonha; subitamente a criança enche- se de pudor, recusa-se a mostrar-se nua, mesmo às irmãs ou à mãe, examina-se com um espanto misto de horror e é com angústia que espia a turgidez do caroço duro, um pouco doloroso que surge sob as mamas antes tão inofensivas quanto o umbigo. Ela inquieta-se por sentir em si um ponto vulnerável: sem dúvida a machucadura é pequena ao lado de uma queimadura ou de uma dor de dentes, mas, acidentes ou doenças, as dores são sempre anomalias, ao passo que o jovem seio é habitado normalmente por não se sabe que surdo rancor. Alguma coisa está ocorrendo, que não é doença , que está implicada na própria lei da existência e que no entanto é luta, dilaceração. Por certo, do nascimento à puberdade a menina cresceu, mas nunca se sentiu crescer: dia após dia, seu corpo lhe foi apresentado como uma coisa exata, acabada; e eis que agora ela "se forma": a própria palavra a horroriza; os fenômenos vitais só são tranquilizadores quando encontram um equilíbrio e assumem o aspecto imoto de uma flor fresca, de um animal lustroso; mas na germinação de seu seio a menina experimenta a ambiguidade da palavra: vivo. Ela não é ouro nem diamante e sim uma estranha matéria, móvel, incerta, no fundo da qual impuras alquimias se elaboram. Está habituada a uma cabeleira que se desenrola com a tranqüilidade de uma meada de seda, mas essa nova vegetação sob as axilas e no baixo ventre metamorfoseia-a em bicho ou em alga. Estando mais ou menos informada, ela pressente nessas mudanças uma finalidade que a arranca a si própria; ei-la jogada em um ciclo vital que transborda o momento de sua própria existência; ela adivinha uma dependência que a destina ao homem, ao filho, ao túmulo. Em si mesmos os seios apresentam-se como uma proliferação inútil, indiscreta. Braços, pernas, pele, músculos, até as nádegas redondas sobre as quais se senta, tudo tinha até então um emprego claro; somente o sexo, definido como órgão urinário, era um tanto equívoco, mas secreto, invisível a outrem. Por baixo do suéter, da blusa, os seios se exibem e esse corpo, que a menina confundia com seu eu, aparece-lhe como carne; é um objeto que os outros olham e vêem. "Durante dois anos usei capas para esconder o peito, a tal ponto tinha vergonha dele", disse-me uma mulher. E outra contou-me: "Lembro-me ainda do estranho desnorteamento que senti quando uma amiga de minha idade, porém mais precocemente formada, ao apanhar uma bola deixou-me entrever, pela abertura do corpinho, dois seios já pesados: através desse corpo tão próximo do meu e pelo qual o meu iria moldar-se, era de mim mesma que corava". — "Com treze anos passeava de pernas nuas e vestido curto", disse-me uma outra mulher; "um homem fez, zombando, uma reflexão acerca de minhas pernas grossas. No dia seguinte minha mãe obrigou-me a pôr meias e a alongar a saia; mas não esquecerei nunca o choque recebido subitamente ao me ver vista". A menina sente que o corpo lhe escapa, não é mais a expressão clara de sua individualidade; torna-se-lhe estranho ; e, no mesmo momento, ela é encarada por outrem como uma coisa: na rua, acompanham-na com o olhar, comentam-lhe a anatomia; ela gostaria de ficar invisível; tem medo de tornar-se carne e medo de mostrar essa carne.


[3] Descrevemos no vol. I, cap. I, os processos propriamente fisiológicos dessa crise.




continua página 48...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.



"O que é uma mulher?"



Simone de Beauvoir - Porque Sou Feminista (1975)




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