quinta-feira, 11 de junho de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)

Livro II 

Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo II

ENTRADA NA SOCIEDADE


Lembrança ridícula e tocante: o primeiro salão onde, aos dezoito anos,
apareci sozinho e sem apoio! O olhar de uma mulher era suficiente para
intimidar-me. Quanto mais queria agradar, mais desajeitado ficava. De tudo
eu fazia as ideias mais falsas; ou entregava-me sem motivos, ou via num
homem um inimigo porque me olhara com gravidade. Mas então, em meios
às terríveis infelicidades de minha timidez, como um belo dia era belo!
 


KANT







JULIEN PAROU EMBASBACADO no meio do pátio. 

– Assuma um aspecto razoável, disse o abade Pirard; ocorrem-lhe primeiro ideias horríveis, depois comporta-se como criança! Onde está o nil mirari de Horácio? (Jamais o entusiasmo.) Pense nessa quantidade de lacaios, vendo-o parado aqui: vão querer zombar de você, considerando-o um igual, injustamente colocado acima deles. A pretexto de bonomia, de bons conselhos, do desejo de orientá-lo, vão tentar fazê-lo cometer alguma asneira.

– Desafio-os a isso!, disse Julien, mordendo o lábio e retomando toda a sua desconfiança.

Os salões que esses senhores atravessaram, no primeiro andar, antes de chegarem ao gabinete do marquês, ter-vos-iam parecido, ó meu leitor, tão tristes quanto magníficos. Se volos oferecessem tais como são, recusaríeis habitá-los; é a pátria do bocejo e do raciocínio triste. Mas eles reativaram o encantamento de Julien. Como se pode ser infeliz, ele pensava, quando se habita um lugar tão esplêndido?
Por fim, esses senhores chegaram à mais feia das peças dessa soberba casa: mal entrava a luz do dia; ali, estava um homenzinho magro, de olhar vivo e peruca loura. O abade voltou-se para Julien e o apresentou. Era o marquês. Julien teve muita dificuldade de reconhecê-lo, tão corteses lhe pareceram suas maneiras. Não era mais aquele nobre de rosto altivo da abadia de Bray-le-Haut. Julien achou que sua peruca tinha muito mais cabelos. Com o auxílio dessa sensação, não se sentiu nem um pouco intimidado. O descendente do amigo de Henrique III pareceu-lhe, de início, ter um aspecto bastante mesquinho. Era muito magro e agitava-se muito. Mas logo notou que o mar quês tinha uma polidez ainda mais agradável ao interlocutor que a do próprio bispo de Besançon. A audiência não durou três minutos. Ao sair, o abade disse a Julien:

– Você olhou o marquês como se examinasse um quadro. Não sou muito entendido nisto que as pessoas daqui chamam a polidez, você logo saberá mais do que eu; mas, enfim, a ousadia de seu olhar pareceu-me pouco polida.

Voltaram a subir no fiacre; o cocheiro parou perto da avenida principal; o abade introduziu Julien numa série de grandes salões. Julien observou que não havia móveis. Ele olhava um magnífico pêndulo dourado, representando um tema muito indecente em sua opinião, quando um senhor muito elegante aproximou-se com um ar risonho. Julien fez meia reverência.
O senhor sorriu e pôs-lhe a mão no ombro. Julien estremeceu e deu um salto para trás, corando de cólera. O abade Pirard, apesar de sua gravidade, riu até as lágrimas. Aquele senhor era um alfaiate.

– Devolvo-lhe sua liberdade por dois dias, disse-lhe o abade ao sair; somente então poderá ser apresentado à sra. de La Mole. Um outro cuidaria de você como uma menina, nos primeiros momentos de sua temporada nesta nova Babilônia. Perca-se de imediato, se tiver que se perder, e estarei livre da fraqueza de preocupar-me com você. Depois de amanhã, este alfaiate lhe trará dois trajes; dará cinco francos ao rapaz que virá fazer a prova. De resto, não dê a conhecer o som de sua voz aos parisienses. Se disser uma palavra, descobrirão um jeito de zombar de você. É o talento deles. Esteja em minha casa depois de amanhã ao meio-dia... Vá, perca-se... Ia-me esquecendo: vá encomendar botas, camisas, um chapéu nestes endereços.

Julien observava a escrita dos endereços.

– É a mão do marquês, disse o abade; é um homem ativo que prevê tudo e prefere fazer do que mandar. Ele quer tê-lo perto de si para que lhe poupe esse tipo de trabalho. Terá suficiente espírito para executar bem todas as coisas que esse homem impulsivo lhe indicar com meias palavras? É o que o futuro dirá: cuide-se!

Julien entrou nas lojas indicadas pelos endereços sem dizer uma palavra; notou que era recebido com respeito, e o fabricante de botas, escrevendo seu nome no registro, colocou: sr. Julien Sorel.
No cemitério do Père-Lachaise, um senhor muito atencioso, e ainda mais generoso em suas palavras, ofereceu-se para indicar a Julien o túmulo do marechal Ney, que uma hábil política priva da honra de um epitáfio. Mas, ao separar-se desse homem generoso que, com lágrimas nos olhos, quase o estreitava nos braços, Julien não tinha mais seu relógio. Foi enriquecido dessa experiência que, dois dias depois, ao meio-dia, apresentou-se ao abade Pirard, que ficou um tempo a observá-lo.

– Você vai virar talvez um enfatuado, disse-lhe o abade com ar severo. Julien tinha o aspecto de um jovem em luto pesado; em verdade, estava muito bem, mas o bom abade era ele próprio demasiado provinciano para ver que Julien conservava ainda aquele movimento de ombros ao andar que, na província, é ao mesmo tempo elegância e importância. Ao ver Julien, o marquês julgou seus encantos de uma maneira muito diferente.

– Teria alguma objeção a que o sr. Sorel tomasse lições de dança?, perguntou ao abade.

Este ficou petrificado.

– Não, respondeu finalmente, Julien não é padre.

Subindo de dois em dois os degraus de uma pequena escada escondida, o marquês foi pessoalmente instalar nosso herói numa bela mansarda que dava para o imenso jardim da mansão. Perguntou-lhe quantas camisas havia encomendado.

– Duas, respondeu Julien, intimidado de ver um um tão grande senhor descer a esses detalhes.

– Muito bem, retomou o marquês com um ar sério, e num tom imperativo e breve que deu o que pensar a Julien. Muito bem! Encomende mais vinte e duas camisas. Aqui está a primeira quarta parte de seu ordenado.

Ao descer da mansarda, o marquês chamou um homem de idade: Arsène, disse-lhe, você servirá ao sr. Sorel. Poucos minutos depois, Julien viu-se sozinho numa biblioteca magnífica. Esse momento foi delicioso. Para não ser surpreendido em sua emoção, foi ocultar-se num canto escuro; dali contemplava as lombadas brilhantes dos livros: Poderei ler tudo isso, dizia-se. E como posso aborrecer-me aqui? O sr. de Rênal teria se julgado desonrado para sempre com a centésima parte do que o marquês de La Mole acaba de fazer por mim. Mas vejamos as cópias a fazer. Terminada a tarefa, Julien ousou aproximar-se dos livros; quase não se conteve de alegria ao encontrar uma edição de Voltaire. Correu a abrir a porta da biblioteca, para não ser surpreendido. A seguir, deu-se o prazer de abrir cada um dos oitenta volumes. Estavam magnificamente encadernados, obra-prima do melhor artesão de Londres. Não era preciso tanto para levar ao auge a admiração de Julien.
Uma hora depois, o marquês entrou, examinou as cópias e observou com espanto que Julien escrevia cela [isto] com dois ll, cella. Tudo o que o abade me disse de seus conhecimentos seria simplesmente conversa fiada? O marquês, muito desanimado, disse-lhe com doçura:

– Não está seguro de sua ortografia?

– É verdade, disse Julien, sem sequer suspeitar que prejudicava a si mesmo; estava enternecido com as bondades do marquês, que ele contrapunha ao tom arrogante do sr. de Rênal.

É tempo perdido essa experiência com o padrezinho do Franco-Condado, pensou o marquês; mas preciso tanto de um homem de confiança!

– Cela escreve-se com um l, disse-lhe o marquês; quando terminar suas cópias, procure no dicionário as palavras de cuja ortografia não está seguro.

Às seis da tarde, o marquês mandou chamá-lo; olhou com uma insatisfação evidente as botas de Julien.

– Tenho uma falta a censurar-me: não lhe disse que diariamente, às cinco e meia, deve vestir-se.

Julien olhava-o sem compreender.

– Quero dizer, vestir meias. Arsène o fará lembrar-se disso; hoje, apresentarei escusas em seu nome.

Ao terminar essas palavras, o sr. de La Mole introduzia Julien num salão resplandecente de douraduras. Em ocasiões semelhantes, o sr. de Rênal nunca deixava de acelerar o passo para ser o primeiro a passar pela porta. A pequena vaidade do ex-patrão fez que Julien pisasse nos calcanhares do marquês e o machucasse muito por causa da gota. Ai! Ainda por cima é um bronco, este pensou.
Apresentou-o a uma mulher alta e de aspecto imponente. Era a marquesa. Julien achou-a impertinente, um pouco como a sra. de Maugiron, a subprefeita do dis trito de Verrières, quando comparecia ao jantar no dia de Saint-Charles. Um pouco perturbado com a extrema magnifi cência do salão, Julien não ouviu o que o sr. de La Mole dizia. A marquesa mal dignou-se olhar para ele. Havia alguns homens, entre os quais Julien reconheceu com indizível prazer o jovem bispo de Agde, que se dignara falar-lhe, alguns meses antes, na cerimônia de Bray-le-Haut. O jovem prelado certamente espantou-se com os olhares ternos que a timidez de Julien nele fixava, mas não se preocupou muito em reconhecer aquele provinciano.
Os homens reunidos no salão pareceram a Julien ter algo de triste e de constrangido; fala-se baixo em Paris, e não se exageram as pequenas coisas.
Um belo jovem, de bigode, muito pálido e esguio, entrou por volta das seis e meia; tinha a cabeça muito pequena.

– Sempre fazendo-se esperar, disse a marquesa, a quem ele beijava a mão.

Julien compreendeu que se tratava do conde de La Mole. Achou-o encantador logo à primeira vista.
Será possível, pensou, que seja esse o homem cujos gracejos ofensivos podem me expulsar desta casa?
À força de examinar o conde Norbert, Julien notou que ele estava de botas e de esporas. E eu devo estar de sapatos, aparentemente como inferior. Sentaram-se à mesa. Julien ouviu a marquesa dizer uma frase severa, elevando um pouco a voz. Quase ao mesmo tempo percebeu uma jovem, muito loura e bem feita de corpo, que veio sentar-se defronte a ele. Ela não lhe agradou; no entanto, olhando-a atentamente, pensou que nunca tinha visto olhos tão bonitos; mas eles anunciavam uma grande frieza de alma. Depois, Julien achou que eles tinham a expressão do tédio que se examina, mas que se lembra da obrigação de ser imponente. A sra. de Rênal também tinha olhos muito belos, ele pensava, todos os elogiavam; mas nada tinham em comum com estes. Julien não tinha bastante prática para distinguir que era o fogo da vivacidade que brilhava, de tempo em tempo, nos olhos da srta. Mathilde, assim ele a ouvira ser chamada. Quando os olhos da sra. de Rênal se animavam, era pelo fogo das paixões, ou pelo efeito de uma indignação generosa ao relato de alguma ação má. Pelo final da refeição, Julien encontrou uma palavra para exprimir o tipo de beleza dos olhos da srta. Mathilde: são cintilantes, pensou. De resto, ela parecia-se cruelmente com a mãe, que lhe desagradava cada vez mais, e ele parou de olhá-la. Em troca, o conde Norbert pareceu-lhe admirável sob todos os pontos. Julien estava tão seduzido que não lhe passou pela cabeça ter ciúmes dele e odiá-lo, por ser mais rico e nobre que ele.
Julien observou que o marquês dava a impressão de estar aborrecido.
Ao ser servida a sobremesa, ele disse ao filho:

– Norbert, peço-te que seja amável com o sr. Julien Sorel, que acabo de contratar para meu estado-maior, e de quem pretendo fazer um homem, si “cella” se peut [se isto for possível].

– É meu secretário, disse o marquês a seu vizinho, e escreve cela com dois ll.

Todos olharam para Julien, que inclinou a cabeça de forma um pouco exagerada a Norbert; mas, de um modo geral, todos gostaram de seu olhar.
O marquês devia ter falado do tipo de educação que Julien recebera, pois um dos convivas o interrogou sobre Horácio: foi justamente ao falar de Horácio que fui bem-sucedido junto ao bispo de Besançon, pensou Julien; aparentemente, eles só conhecem esse autor. A partir desse momento, sentiu-se seguro. Essa atitude foi facilitada porque ele acabava de decidir que a srta. de La Mole nunca seria uma mulher a seus olhos. Desde o seminário, fazia pouco caso dos homens e dificilmente deixava-se intimidar por eles. Teria desfrutado de todo o seu sangue-frio se a sala de jantar estivesse mobiliada com menos magnificência. Havia, de fato, dois espelhos de três metros de altura cada um, e nos quais ele olhava às vezes seu inter - locutor falando de Horácio, que lhe impunham mais uma vez. Suas frases não eram demasiado longas para um provinciano. O brilho de seus belos olhos aumentava com a timidez um pouco trêmula ou feliz, quando ele respondia bem. Acharam-no agradável. Essa espécie de exame trazia um pouco de interesse a um jantar grave. Por um sinal, o marquês convidou o interlocutor de Julien a pressioná-lo. Seria possível que ele soubesse alguma coisa, pensava?
Julien respondeu improvisando suas ideias, e perdeu muito de sua timidez para mostrar, não espírito, algo impossível para quem não conhece a linguagem que usam em Paris, mas formulou ideias novas, embora apresentadas sem graça nem propósito, e viram que ele sabia perfeitamente o latim.
O adversário de Julien era um acadêmico das Inscrições que, por acaso, sabia latim; ele viu em Julien um bom humanista, não receou mais fazê-lo corar e procurou realmente embaraçá-lo. No calor do combate, Julien esqueceu por fim a mobília magnífica da sala de jantar, passou a expor sobre os poetas latinos ideias que o interlocutor não lera em parte alguma. Como homem honesto, reconheceu o mérito ao jovem secretário. Por felicidade, iniciou-se uma discussão sobre a questão de saber se Horácio fora pobre ou rico: um homem amável, voluptuoso e despreocupado, que fazia versos para divertir-se, como Chapelle, o amigo de Molière e de La Fontaine? Ou um pobre poeta laureado, que acompanhava a corte e fazia odes para o dia de nascimento do rei, como Southey, o acusador de lorde Byron? Falou-se do estado da sociedade no tempo de Augusto e de Jorge IV; nas duas épocas a aristocracia era todo-poderosa; mas, em Roma, seu poder era arrancado por Mecenas, um simples cavaleiro, enquanto na Inglaterra ela havia reduzido Jorge IV mais ou menos à condição de um doge de Veneza. Essa discussão pareceu tirar o marquês do estado de torpor em que o aborrecimento o mergulhava no começo do jantar.
Julien nada compreendia desses nomes modernos como Southey, lorde Byron, Jorge IV, que ele ouvia pronunciar pela primeira vez. Mas não escapou a ninguém que, sempre que se falava de fatos passados em Roma, e cujo conhecimento podia deduzir-se das obras de Horácio, Marcial, Tácito etc., ele mostrava uma incontestável superioridade. Julien apoderou-se sem escrúpulos de várias ideias que aprendera com o bispo de Besançon, na famosa discussão que tivera com esse prelado; não foram as menos apreciadas.
Quando se cansaram de falar de poetas, a marquesa, que se impunha o dever de admirar tudo o que divertia o marido, dignou-se olhar para Julien. As maneiras desajeitadas desse jovem padre talvez escondam um homem instruído, disse à marquesa o acadêmico que se achava ao lado dela, e Julien ouviu alguma coisa. As frases feitas convinham muito ao espírito da dona da casa; ela adotou a seguinte sobre Julien, satisfeita de ter convidado o acadêmico para jantar: ele diverte o sr. de La Mole, pensou.



continua página 174...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (III)




Literatura Fundamental - O Vermelho e o Negro
- Isabellla Santucci





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