quinta-feira, 11 de junho de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (19)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XIX – LUÍSA DE CHAULIEU À SRA. DE L’ESTORADE



Pois bem, minha Renata, és um amorzinho, e estou agora de acordo em que é direito enganar: estás contente? De resto, o homem que nos ama pertence-nos; temos o direito de fazer dele um tolo ou um homem de gênio; mas, entre nós, na maioria das vezes fazemos dele um tolo. Tu farás do teu um homem de gênio e guardarás teu segredo: duas magníficas ações. Ah! Se não houvesse paraíso ficarias bem lograda, pois te votas a um martírio voluntário. Queres torná-lo ambicioso, conservando-o apaixonado! Mas, criança que és, já era bastante mantê-lo apaixonado. Até que ponto o cálculo é virtude ou a virtude é cálculo? Hein? Não brigaremos por esse assunto, pois que Bonald aí está. Somos e queremos ser virtuosas; neste momento, porém, creio que apesar das tuas encantadoras tratantices, vales mais do que eu. Sim, sou uma mulher terrivelmente falsa: amo Felipe e escondo-lhe meu amor com uma infame dissimulação. Quisera vê-lo saltando de sua árvore para o muro e daí para a minha sacada e, se ele fizesse o que desejo, fulminá-lo-ia com o meu desprezo. Vês? Sou de uma boa-fé terrível. Quem me detém? Que potência misteriosa me impede de dizer a esse querido Felipe toda a felicidade que ele esparge em torrentes sobre mim, com o seu amor puro, inteiro, grande, secreto, amplo? A sra. de Mirbel [134] está fazendo meu retrato, e tenho a intenção de dar-lho a ele, querida. O que me surpreende mais cada dia é a atividade que o amor comunica à vida. Que interesse adquirem as horas, as ações, as mais pequenas coisas! E que admirável confusão do passado, do futuro no presente! Vive-se nos três tempos do verbo. Será ainda assim depois que se foi feliz? Oh! Responde-me, dize-me o que é a felicidade, se ela acalma ou irrita. Sinto uma mortal inquietude, não sei mais como proceder: há no meu coração uma força que me arrasta para ele apesar da razão e das conveniências. Enfim, compreendo tua curiosidade com Luís, estás contente? A felicidade de Felipe em me pertencer, seu amor a distância e sua obediência impacientam-me tanto quanto seu profundo respeito me irritava, quando ele era apenas meu professor de espanhol. Sou tentada a gritar-lhe quando ele passa: “Imbecil, se me amas na tela, que seria se me conhecesses?”. 

Oh! Renata, queimas as minhas cartas, não? Eu queimarei as tuas. Se outros olhos que não os nossos lessem essas coisas que transvazamos de coração para coração, eu diria a Felipe que os fosse vazar e, para maior segurança, matasse um pouco os donos.




Segunda-feira


Ah! Renata, como sondar o coração de um homem? Meu pai ficou de me apresentar o sr. Bonald, e uma vez que ele é tão sábio, eu lho perguntarei. Deus é bem feliz por poder ler no fundo dos corações. Continuarei a ser um anjo para esse homem? Eis a questão.

Se um dia, num gesto, num olhar, no acento de uma palavra, eu percebesse uma diminuição do respeito que ele tinha por mim, quando era meu professor de espanhol, sinto que teria forças para tudo esquecer! “Para que essas palavras solenes, essas grandes resoluções?”, perguntarás. Ah! Aí está, querida. Meu encantador pai, que me trata como um velho cavaleiro servidor a uma italiana, mandou retratar-me pela sra. de Mirbel, conforme já te disse. Consegui uma cópia bem executada para dá-la ao duque e mandei o original a Felipe. Esse envio foi feito ontem, acompanhado pelas três linhas seguintes: “Dom Felipe, respondo ao seu devotamento com uma confiança cega: o tempo dirá se não é isso atribuir demasiada grandeza a um homem”.

A recompensa é grande, tem ares de promessa e, coisa horrível, de um convite: mas o que te vai parecer mais horrível ainda é que eu quis que a recompensa exprimisse promessa e convite sem chegar ao oferecimento. Se na sua resposta ele puser “Minha Luísa”, ou mesmo “Luísa”, ele estará perdido!




Terça-feira


Não, ele não está perdido! Esse ministro constitucional é um amante adorável. Aqui vai a sua carta:

“Todos os instantes que eu passava sem vê-la, eu os passava pensando em si, com os olhos cerrados às demais coisas e presos pela meditação sobre sua imagem, que nunca se desenhava de modo suficientemente rápido no escuro palácio onde vivem os sonhos e onde a senhora espalha luz. Doravante minha vista repousará sobre esse maravilhoso marfim, sobre esse talismã, devo dizer: pois que para mim seus olhos azuis se animam, e a pintura torna-se logo realidade. O atraso desta carta é devido à minha solicitude em gozar dessa contemplação, durante a qual eu lhe dizia tudo o que devo calar. Sim, desde ontem, encerrado sozinho consigo, entreguei-me, pela primeira vez na vida, a uma felicidade integral, completa, infinita. Se pudesse ver onde a coloquei, entre a virgem e Deus, compreenderia as angústias em que passei a noite: mas, ao dizer-lho, não quisera ofendê-la, pois que haveria tantas tormentas para mim num olhar despido daquela angelical bondade que me faz viver que de antemão lhe peço me perdoe. Se, portanto, rainha de minha vida e de minha alma, quisesse conceder-me um milésimo do amor que lhe dedico!

“O se desta constante súplica devastou-me a alma. Eu estava entre a crença e o erro, entre a vida e a morte, entre as trevas e a luz. Um criminoso não fica tão agitado durante a deliberação de sua sentença, como eu o estou enquanto me acuso desta audácia na sua presença. O sorriso impresso em seus lábios e que a todo momento eu ia rever acalmava as tormentas provocadas pelo temor de lhe desagradar. Desde que existo, ninguém, nem mesmo minha mãe, me sorriu. A bela jovem, que me era destinada, repeliu meu coração e apaixonou-se por meu irmão. Meus esforços, em política, fracassaram. Nunca, nos olhos de meu rei, vi senão um desejo de vingança; e somos tão inimigos desde nossa mocidade que ele considerou uma injúria cruel o voto pelo qual as Cortes me ergueram ao poder. Por mais forte que fosse uma alma, por muito menos a dúvida a invadiria. De resto, faço-me justiça: conheço a desgraciosidade do meu aspecto e sei quanto é difícil apreciar meu coração através de semelhante invólucro. Ser amado não era mais do que um sonho, quando a vi. Por isso, quando me prendi à senhora, compreendi que somente a dedicação poderia desculpar minha ternura. Ao contemplar esse retrato, ao escutar aquele sorriso cheio de divinas promessas, uma esperança, que a mim mesmo não consentia, brilhou na minha alma. Essa claridade de aurora é incessantemente combalida pelas trevas da dúvida, pelo temor de ofendê-la, se a deixo transparecer. Não, ainda não me pode amar, sinto-o; mas, à medida que tiver posto à prova o poder, a duração, a amplitude de meu inesgotável afeto, a senhora lhe dará um pequeno lugar em seu coração. Se minha ambição é uma injúria, diga-me sem cólera, que eu tornarei a encerrar-me no meu papel; mas, se quiser tentar amar-me, não o faça sem minuciosas precauções para aquele que fazia consistir a felicidade de sua vida unicamente em servi-la”.

Ao ler estas últimas palavras, minha querida, pareceu-me vê-lo pálido como ele estava, na noite em que lhe disse, ao mostrar-lhe a camélia, que aceitava os tesouros de sua dedicação. Vi nessas frases submissas coisa completamente diversa de uma simples flor de retórica para uso dos amantes e, em mim mesma, senti, como que um grande movimento, o frêmito da felicidade.

Está um tempo horroroso, não me foi possível ir ao Bois de Boulogne sem dar margem a estranhas suspeitas, porque minha mãe, que sai muitas vezes apesar da chuva, ficou em casa.




Quarta-feira à noite


Acabo de vê-lo na Ópera. Querida, não é mais o mesmo homem: veio ao nosso camarote, apresentado pelo embaixador da Sardenha. Depois de ter visto em meus olhos que sua audácia não desagradava, pareceu-me como se estivesse embaraçado com o próprio corpo e chamou a marquesa d’Espard de senhorita. Seus olhos tinham olhares que projetavam uma luz mais viva do que a dos lustres. Finalmente, saiu como um homem que teme cometer uma extravagância.

— O barão de Macumer está apaixonado! — disse a sra. de Maufrigneuse à minha mãe.

— É tanto mais de admirar por ser um ministro derrubado — respondeu minha mãe.

Tive forças para olhar a sra. d’Espard, a sra. de Maufrigneuse e minha mãe, com a curiosidade de uma pessoa que não conhece uma língua estrangeira e que quisera adivinhar o que estão dizendo; mas, interiormente, experimentava uma alegria voluptuosa na qual parecia banhar-se minha alma. Só uma palavra pode explicar-te o que eu sentia: encantamento. Felipe ama tanto que acho-o digno de ser amado. Sou exatamente o princípio de sua existência e tenho em minhas mãos o fio que guia seu pensamento. Enfim, se nos devemos dizer tudo, há em mim o mais violento desejo de vê-lo franquear todos os obstáculos, chegar até a mim, para pedir-me a mim mesma, a fim de saber se esse furibundo amor voltará a ser humilde e calmo, a um só de meus olhares.

Ah! Minha querida, detive-me e estou toda trêmula. Quando estava te escrevendo ouvi aí fora um ligeiro ruído e me levantei. Da minha janela, vi-o caminhando sobre o muro, com risco de cair e morrer. Fui à janela de meu quarto e fiz-lhe apenas um sinal, ele saltou do muro que tem dez pés de altura: depois correu pela estrada até a distância em que eu o podia ver, para mostrar-me que não se machucara. Essa atenção, no momento em que devia estar aturdido pela queda, comoveu-me tanto que choro sem saber por quê. Pobre feio! Que vinha ele buscar? Que me quereria dizer?

Não me animo a escrever meus pensamentos e vou deitar-me, mergulhada na minha alegria, sonhando em tudo que nos diríamos se estivéssemos juntos. Adeus, bela muda. Não tenho tempo de te repreender pelo teu silêncio, mas faz mais de um mês que não tenho notícias tuas! Estarás, por acaso, feliz? Não terás mais esse livre-arbítrio que te deixava tão orgulhosa e que, esta noite, quase me abandonou?




pg 277...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[134]A sra. de Mirbel (1796-1849): personagem real, retratista da alta sociedade.
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A Comédia Humana #1: Chat Qui Pelote (Honoré de Balzac)
 | Tatiana Feltrin






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