quinta-feira, 25 de junho de 2020

Susan Sontag - Objetos de Melancolia (03)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



OBJETOS DE MELANCOLIA



continuando...


Fotos, que transformam o passado num objeto de consumo, são um atalho. Qualquer coleção de fotos é um exercício de montagem surrealista e a sinopse surrealista da história. Assim como Kurt Schwitters e, mais recentemente, Bruce Conner e Ed Kienholz criaram magníficos objetos, quadros vivos e ambientes a partir de refugo, nós agora construímos uma história a partir de nossos detritos. E uma certa virtude, de um tipo cívico adequado a uma sociedade democrática, está vinculada a essa prática. O modernismo verdadeiro não é austeridade, mas uma plenitude de garagem bagunçada — a paródia intencional do magnânimo sonho de Whitman. Sob a influência dos fotógrafos e dos artistas pop, arquitetos como Robert Venturi seguem o ensinamento de Las Vegas e julgam a Times Square uma sucessora apropriada para a Piazza San Marco; e Reyner Banham louva “a arquitetura e a paisagem urbana instantâneas” de Los Angeles, em razão do seu dom para a liberdade, para uma vida boa, impossível em meio às belezas e às misérias da cidade europeia — exaltando a liberação proporcionada por uma sociedade cuja consciência é construída, ad hoc, de sucata e de refugo. Os Estados Unidos, este país surreal, estão repletos de objetos encontrados. Nosso refugo tornou-se arte. Nosso refugo tornou-se história.

As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside em também parecerem, num mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o status de objetos encontrados — lascas fortuitas do mundo. Assim, tiram partido simultaneamente do prestígio da arte e da magia do real. São nuvens de fantasia e pílulas de informação. A fotografia tornou-se a arte fundamental das sociedades prósperas, perdulárias e inquietas — uma ferramenta indispensável da nova cultura de massa que tomou forma, aqui, após a Guerra Civil, e só conquistou a Europa após a Segunda Guerra Mundial, embora seus valores tenham alcançado uma base sólida entre os ricos já na década de 1850, quando, segundo a descrição melancólica de Baudelaire, “nossa sociedade degradada” tornou-se narcisisticamente extasiada pelo “método barato de disseminar a aversão à história” criado por Daguerre.

O apego surrealista à história supõe também um refluxo da melancolia, bem como uma voracidade e uma insolência superficiais. Logo no início da fotografia, no fim da década de 1830, William H. Fox Talbot percebeu a faculdade especial da câmera para registrar “os estragos do tempo”. Fox Talbot referia-se ao que ocorre aos prédios e monumentos. Para nós, as abrasões mais interessantes não são de pedra, mas de carne. Por meio das fotos, acompanhamos da maneira mais íntima e perturbadora o modo como as pessoas envelhecem. Olhar para uma velha foto de si mesmo, de alguém que conhecemos ou de alguma figura pública muito fotografada é sentir, antes de tudo: como eu (ela, ele) era muito mais jovem na época. A fotografia é o inventário da mortalidade. Basta, agora, um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia póstuma. As fotos mostram as pessoas incontestavelmente presentes num lugar e numa época específica de suas vidas; agrupam pessoas e coisas que, um instante depois, se dispersaram, mudaram, seguiram o curso de seus destinos independentes. A reação diante das fotos tiradas por Roman Vishniac, em 1938, da vida cotidiana nos guetos na Polônia é irresistivelmente afetada pela consciência de que, pouco depois, todas aquelas pessoas seriam mortas. Para o errante solitário, todos os rostos nas fotos estereotipadas, aninhadas atrás de um vidro e presas a uma lápide nos cemitérios dos países latinos, parecem conter um presságio da sua morte. As fotos declaram a inocência, a vulnerabilidade de vidas que rumam para a própria destruição, e esse vínculo entre fotografia e morte assombra todas as fotos de pessoas. Alguns trabalhadores berlinenses no filme Menschen am Sonntag [Pessoas aos domingos] (1929), de Robert Siodmak, se fazem fotografar no fim de um passeio de domingo. Um a um, eles se põem diante da caixa preta do fotógrafo ambulante — dão um sorriso forçado, se mostram nervosos, brincam, olham fixamente. A câmera do filme se demora em closes para nos permitir saborear a mobilidade de cada rosto; em seguida, vemos o rosto congelado em sua última expressão, embalsamado numa imagem parada. As fotos chocam, no correr do filme — transmutam, num instante, o presente no passado, a vida na morte. E um dos filmes mais inquietantes já feitos, La jetée (1963), de Chris Marker, é a história de um homem que prevê a própria morte, inteiramente narrada com imagens paradas.

Assim como o fascínio exercido pelas fotos é um lembrete da morte, é também um convite ao sentimentalismo. As fotos transformam o passado no objeto de um olhar afetuoso, embaralham as distinções morais e desarmam os juízos históricos por meio do páthos generalizado de contemplar o tempo passado. Um livro recente organiza em ordem alfabética as fotos de um incoerente grupo de celebridades como se fossem bebês ou crianças. Stalin e Gertrude Stein, dispostos em duas páginas vizinhas, parecem igualmente solenes e mimosos; Elvis Presley e Proust, outro par de jovens vizinhos de página, parecem-se ligeiramente; Hubert Humphrey (três anos) e Aldous Huxley (oito anos), lado a lado, têm em comum o fato de ambos já apresentarem os vigorosos exageros de caráter pelos quais viriam a ser conhecidos quando adultos. Nenhum retrato no livro é destituído de interesse e de encanto, em vista daquilo que conhecemos (incluindo as fotos, em muitos casos) sobre as criaturas famosas que aquelas crianças viriam a se tornar. Para essa e outras ousadias similares da ironia surrealista, instantâneos ingênuos ou os retratos de estúdio mais convencionais são extremamente eficazes: tais imagens parecem ainda mais estranhas, comoventes, premonitórias.

Reabilitar fotos antigas, atribuindo a elas um contexto novo, tornou-se um importante ramo na indústria do livro. Uma foto é apenas um fragmento e, com a passagem do tempo, suas amarras se afrouxam. Ela se solta à deriva num passado flexível e abstrato, aberto a qualquer tipo de leitura (ou de associação a outras fotos). Uma foto também poderia ser descrita como uma citação, o que torna um livro de fotos semelhante a um livro de citações. E um modo cada vez mais comum de apresentar fotos em forma de livro consiste em associar fotos a citações.

Um exemplo: Down home (1972), de Bob Adelman, um retrato de um condado rural do Alabama, um dos mais pobres do país, realizado num período de cinco anos, na década de 1960. Exemplo da contínua predileção da fotografia documental pelos perdedores, o livro de Adelman descende de Let us now praise famous men, cuja graça era justamente ter por tema não pessoas famosas, mas sim esquecidas. Porém as fotos de Walker Evans vinham acompanhadas de uma prosa eloquente escrita (às vezes de modo rebuscado) por James Agee, que tencionava aprofundar a empatia do leitor com a vida dos meeiros. Ninguém pretende falar em nome dos temas de Adelman. (É típica das simpatias liberais que animam o livro sua pretensão de não adotar nenhum ponto de vista — ou seja, de ser uma visão inteiramente imparcial, sem empatia com seus temas.) Down home poderia ser considerado uma versão em miniatura, em escala municipal, do projeto de August Sander: compilar um registro fotográfico objetivo de todo um povo. Mas aqueles espécimes falam, o que atribui a essas fotos despretensiosas um peso que não teriam por si sós. De par com suas palavras, suas fotos caracterizam os cidadãos do condado de Wilcox como pessoas obrigadas a proteger ou a expor seu território; sugerem que essas vidas são, no sentido literal, uma série de posições ou de poses.

Outro exemplo: Wisconsin death trip (1973), de Michael Lesy, que também constrói, com a ajuda de fotos, o retrato de um município rural — mas o tempo é o passado, entre 1890 e 1910, anos de grave recessão e de dificuldades econômicas, e o condado de Jackson é reconstruído por meio de objetos encontrados, que datam dessas décadas. Consistem em uma seleção de fotos tiradas por Charles Van Schaik, o fotógrafo comercial mais importante no condado, de quem cerca de 3 mil negativos de vidro se encontram guardados na Sociedade Histórica Estadual de Wisconsin; e em citações de fontes da época, sobretudo jornais locais e registros do hospício municipal, além de obras de ficção sobre o Meio-Oeste. As citações nada têm a ver com as fotos, mas estão relacionadas a elas de um modo aleatório, intuitivo, como as palavras e os sons compostos por John Cage se combinam, na hora da apresentação, com os movimentos de dança já coreografados por Merce Cunningham.

As pessoas fotografadas em Down home são as autoras das declarações que lemos nas páginas de abertura. Negros e brancos, pobres e ricos, que apresentam pontos de vista contrastantes (em especial, no que concerne a classe e a raça). Mas enquanto as afirmações que acompanham as fotos de Adelman contradizem-se mutuamente, os textos que Lesy coligiu dizem todos a mesma coisa: que um espantoso número de pessoas, nos Estados Unidos da virada do século, era propenso a se enforcar nos estábulos, a jogar seus bebês dentro do poço, a cortar a garganta do cônjuge, a tirar a roupa no meio da rua principal, a queimar a colheita do vizinho e a cometer vários outros atos passíveis de levá-las à prisão ou ao hospício. No caso de alguém pensar que foi o Vietnã e todo o temor doméstico e a degradação da última década que tornaram os Estados Unidos um país de esperanças sombrias, Lesy argumenta que o sonho entrou em colapso no fim do século XIX — não nas cidades desumanas, mas nas comunidades rurais; que o país inteiro ficou enlouquecido, e por um longo tempo. É claro, Wisconsin death trip na verdade não prova nada. A força de seu argumento histórico é a força da colagem. Para as fotos perturbadoras, elegantemente erodidas pelo tempo, tiradas por Van Schaick, Lesy poderia ter encontrado outros textos do período — cartas de amor, diários — a fim de dar uma impressão diferente, talvez menos desesperada. Seu livro é estimulante, de um pessimismo polêmico ao gosto da moda e totalmente extravagante como história.

Vários autores americanos, em especial Sherwood Anderson, escreveram de forma igualmente polêmica sobre as misérias da vida nas cidades pequenas, aproximadamente na mesma época focalizada pelo livro de Lesy. Mas, embora obras de foto ficção como Wisconsin death trip expliquem menos do que muitos contos e romances, convencem mais, hoje, porque têm a autoridade de um documento. Fotos — e citações —, porque são tidas como pedaços da realidade, parecem mais autênticas do que amplas narrativas literárias. A única prosa que parece confiável para um número cada vez maior de leitores não é a escrita refinada de alguém como Agee, mas o registro cru — fala, editada ou não, registrada em fitas de gravador; fragmentos ou textos integrais de documentos subliterários (atas de tribunal, cartas, diários, relatos de casos psiquiátricos etc.); relatos desleixados, auto-depreciativos, não raro paranoicos, feitos em primeira pessoa. Existe uma suspeita rancorosa nos Estados Unidos em torno de tudo o que pareça literário, para não falar de uma crescente relutância, da parte dos jovens, em ler o que quer que seja, mesmo legendas em filmes estrangeiros ou o texto na contracapa dos discos, o que em parte explica o novo apetite por livros com poucas palavras e muitas fotos. (É claro, a fotografia em si reflete, cada vez mais, o prestígio do tosco, do auto-depreciativo, do improvisado, do indisciplinado — do “anti-fotográfico”.)

“Todos os homens e mulheres que o escritor conheceu tornaram-se grotescos”, diz Anderson no prólogo de Winesburg, Ohio (1919), título que deveria ser, na origem, The book of the grotesque [O livro do grotesco]. E continua: “Os grotescos não eram todos horríveis. Alguns eram engraçados, outros, quase belos”. O surrealismo é a arte de generalizar o grotesco e depois descobrir as nuances (e os encantos) nisso. Nenhuma atividade está mais bem equipada do que a fotografia para exercitar o modo surrealista de olhar, e, no fim, acabamos por olhar todas as fotos de maneira surrealista. As pessoas andam revirando seus sótãos e os arquivos da cidade e as sociedades históricas estatais à cata de fotos antigas; redescobrem-se os fotógrafos mais obscuros e esquecidos. Os livros de fotos formam pilhas cada vez mais altas — reavaliando o passado perdido (daí a ascensão da fotografia amadora), tomando a temperatura do presente. As fotos oferecem história instantânea, sociologia instantânea, participação instantânea. Mas existe algo notavelmente anódino nessas novas formas de empacotar a realidade. A estratégia surrealista, que prometia um novo e empolgante posto de observação para a crítica radical da cultura moderna, transformou-se numa ironia fácil que democratiza todos os dados, que equipara sua dispersão de dados à história. O surrealismo só consegue oferecer um juízo reacionário; só consegue obter da história um acúmulo de singularidades, uma piada, uma paixão pela morte.





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.


Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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