quarta-feira, 17 de junho de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VII — Prudência de Tholomyés

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Terceiro — Em 1817




VII — Prudência de Tholomyés




Ao mesmo tempo que uns cantavam, outros falavam tumultuosamente, era uma verdadeira confusão. Por fim, Tholomyés interveio: 

— Não falemos ao acaso nem precipitadamente. Se queremos ser deslumbrantes, meditemos. O muito improvisar cansa e embrutece o espírito. Senhores, nada de pressas. Aliemos a majestade ao regabofe, comamos com comedimento, prolonguemos o banquete, não nos apressemos. Vejam a Primavera; se se adianta demais, cresta-se, isto é, gela-se. O excesso de zelo perde os pessegueiros e abrunheiros, anula a graça e o prazer dos bons jantares. Nada de zelo, senhores! Grimold de Ia Reynière é da opinião de Talleyrand.

No grupo manifestou-se surda rebelião.

— Tholomyés, deixa-nos tranquilos! — disse Blachevelle.

— Abaixo o tirano!

—exclamou Fameuil.

— Bombarda, Bombance e Bamboche! — gritou Listolier.

— Tholomyés, contempla «o meu sossego» (mon calme) — atalhou Blachevelle.

— Mas tu és o marquês deste título — respondeu Tholomyés. Este insignificante jogo de palavras fez o efeito de uma pedra a􀆟rada a um charco: todas as rãs se calaram. O marquês de Montcalm era então um realista célebre.

— Amigos — exclamou Tholomyés, no tom de quem reassumiu a perdida autoridade — tranquilizem-se! Não recebam com tamanha admiração um calemburgo caído das nuvens. Nem tudo o que aparece de semelhante modo é verdadeiramente digno de entusiasmo e respeito. O calemburgo é a imundície do espírito que voa. O epigrama cai seja onde for e o espírito, depois de uma tolice, vola􀆟liza-se. A nódoa esbranquiçada que se alastra num rochedo não impede o condor de pairar. Longe de mim insultar o calemburgo! Honro-o unicamente na proporção do seu mérito. Quanto tem havido de mais augusto, sublime e gracioso, tudo tem feito trocadilhos de palavras. Jesus Cristo fez um calemburgo a respeito de S. Pedro; Moisés, a respeito de Isaac; Ésquilo, a respeito de Polynice; Cleópatra, a respeito de Octávio. E notem que o calemburgo de Cleópatra precedeu a batalha de Accio e que, a não ser ele, ninguém hoje se lembraria da cidade de Torino, nome grego que quer dizer colher de caldo. Posto isto, volto à minha exortação. Repito, meus irmãos, nada de zelo, nada de excessos, nem gracejos, nem trocadilhos de palavras. Prestem-me atenção, porque eu possuo a prudência de Anfiarao e a calvície de César. É necessário um limite, mesmo nos enigmas. Est modus in rebus. Repito, tudo tem um termo, até os bons jantares. As meninas gostam de pastéis de fruta, mas não abusem. Até para comer é preciso arte e bom senso. A gulodice castiga o glutão. Gula punit Gulax. As indigestões são encarregadas por Deus de moralizar os estômagos. E, tomem sentido, cada uma das nossas paixões, mesmo o amor, tem um estômago, que não devemos encher de mais. Em todas as coisas é preciso escrever a tempo a palavra finis; quando isso se torna urgente é forçoso que cada um se contenha, que corramos os ferrolhos sobre o nosso apetite, que encarceremos a fantasia e que se prenda a si mesmo. O mais prudente é aquele que sabe num dado momento efetuar a sua própria prisão. Tenham confiança em mim. Eu conheço um poucochinho de Direito, segundo dizem as minhas certidões, porque sei a diferença que existe entre questão movida e questão pendente, porque sustentei uma tese em latim sobre o modo como eram torturados os delinquentes em Roma no tempo em que Munacio Demens era questor do Parricídio, porque estou em vésperas de ser doutor, não se segue necessariamente, no meu entender, que eu seja um parvo. Recomendo-lhes moderação nos seus apetites e, tão certo como eu chamar-me Félix Tholomyés, digo uma coisa acertada. Feliz aquele que, chegada a hora, toma uma resolução heroica, abdicando como Sylla ou Orígenes.

Favorita escutava com profunda atenção.

— Félix — disse ela — é um nome muito bonito! Em latim quer dizer Próspero.

Tholomyés prosseguiu:

Quirites, gentlemen, caballeros, amigos! Querem deixar de ser aguilhoados pelos desejos, passar sem leito nupcial e zombar do amor? Nada mais simples. Eis a receita: limonada, exercício violento, trabalho forçado, pegar em grandes pesos, levantar pedras, não dormir, velar; tomar beberagens nitrosas e tisanas nínfeas, saborear emulsões de papoilas e de agnus-castus, acompanhar isto com dieta rigorosa, até estalar de fome e juntar-lhe banhos frios, cintos de ervas, aplicação de uma chapa de chumbo, lavagens com licor de Saturno e fermentações de oxicrato.

— Gosto mais duma mulher! — disse Listolier.

— A mulher! — continuou Tholomyés.

— Desconfiem delas! Desventurado do que se entrega ao volúvel coração de uma mulher. A mulher é pérfida e tortuosa. Detesta a serpente por rivalidade de ofício. A serpente é a loja fronteira!

— Estás bêbedo, Tholomyés? — gritou Blachevelle.

— Eu, bêbedo? — retorquiu Tholomyés.

— Então estás alegre! — tornou Blachevelle.

— Concedo! — respondeu Tholomyés. E, levantando-se de copo cheio em punho, exclamou: — Glória ao vinho! Nunc te, Bacche, canam! Desculpem, meninas, isto é espanhol. E a prova, senhoritas, ei-la: tal povo, tal vasilha. A arroba de Castela contém dezasseis litros, o cântaro de Alicante doze, o almude das Canárias vinte e cinco, o quartin das Baleares vinte e seis, a bota do czar Pedro trinta. Viva o czar, que era grande, e viva a sua bota, que ainda era maior! Minhas senhoras, um conselho de amigo: se lhes não desagrada, façam que se enganam e mudem de parceiro. O erro é próprio do amor. A namorada deve servir para mais alguma coisa do que para estar acocorada e embrutecer-se como criada inglesa que tem calos nos joelhos. O doce namoro deve ser alegremente errante! Dizem que o erro é próprio do homem, eu digo que errar é próprio dos amantes. Minhas senhoras, adoro-as a todas! Ó Zefina, ó Josefina, cara mais que amarrotada, serias encantadora se não andasses de esguelha! A tua cara parece um formoso rosto em cima do qual alguém se sentou por engano! Quanto a Favorita, ó ninfas e musas! Um dia que Blachevelle ia a saltar a enxurrada da rua de Guérin Boisseau, viu uma bonita rapariga de meias brancas muito justas, que deixava ver as pernas. Agradou-lhe este prólogo e eis Blachevelle namorado. A escolhida do seu coração era Favorita. Ó Favorita, tens uns lábios jônios! Havia um pintor grego chamado Euforion, a quem puseram o nome de pintor de lábios. Só esse grego seria capaz de pintar a tua boca! Antes de ti, não existia criatura digna deste nome. Tu nasceste para aceitar o pomo como Vénus ou para o comer como Eva. A beleza teve princípio em ti! Falei agora em Eva: foste tu que a criaste. Mereces privilégio de invenção das formosas! Favorita, deixo de tratar-te por tu, porque passo da poesia para a prosa. Há um bocado, falava do meu nome. Enterneceu-me isso; porém, a todos digo, sejam quem forem, que se não deixem levar dos nomes, porque podem achar-se enganados. Eu chamo-me Félix e não sou feliz. As palavras são mentirosas. Não aceitemos cegamente as indicações que elas nos dão. Seria um erro escrever para Liége [2], pedindo rolhas, ou para Pau [3] mandando vir luvas. Miss Dália, no seu lugar, tomava o nome de Rosa. A flor deve cheirar bem e a mulher ser espirituosa. Em Fantine não falarei; é uma abstrata, uma sonhadora, uma melancólica, uma pensativa, uma sensitiva; é um fantasma com forma de ninfa e pudor de freira, que vive extraviada da vida de costureira, que se refugia nas ilusões, que canta e reza e fita a vista no céu sem bem saber o que vê nem o que faz, e que, de olhos fitos no ar, vagueia por um jardim onde há todos os pássaros que não existem. Ó Fantine, deves saber uma coisa: eu, Tholomyés, sou uma ilusão; mas querem ver que ela nem me escuta, a loira filha das quimeras? Não obstante, tudo nela é frescura, suavidade, juventude, fagueira claridade matutina. Ó Fantine, rapariga digna de ser Margarita ou Pérola, és a mulher mais belamente oriental que eu conheço! Outro conselho, minhas senhoras: não casem. O casamento é um enxerto, que ora pega, ora não; evitem semelhante risco... Mas para que estou aqui a perder tempo com as minhas pregações? As raparigas são incuráveis no assunto casamento; tudo o que nós dissermos, nós, os prudentes, não impedirá que essas costureiras e debruadeiras de botinhas, deixem de sonhar com maridos cobertos de diamantes! Enfim, seja assim; mas reparem bem, minhas belas, comem demasiado açúcar. Reparem no que lhes vou dizer: as mulheres não têm senão um defeito, é a gulodice. Ó amável sexo roedor, os vossos dentinhos alvos morrem de amor pelo açúcar! O açúcar é um sal. Todo o sal é dissecante. O açúcar é o mais dissecante de todos os sais. Suga os líquidos do sangue através das veias; daqui a coagulação, em seguida a solidificação do sangue; daqui os tubérculos do pulmão; depois a morte. É por isso que a diabetes confina com a tisica. Portanto, não comam açúcar e viverão! Volto-me agora para os homens. Senhores, façam conquistas! Roubem as amantes uns aos outros sem remorsos! Revezem-se. Em amor não há amigos! Onde houver uma mulher bonita estão abertas as hostilidades! Nada de quartel, guerra e mais guerra! Uma mulher bonita é um casus belli, é um flagrante delito. Todas as invasões de que reza e história foram causadas por saias. Rómulo roubou as Sabinas, Guilherme as Saxónias, César as Romanas. O homem que não é amado paira como abutre sobre as amantes dos outros. Da minha parte, a esses infelizes que se vêem viúvos, lanço a sublime proclamação de Bonaparte ao exército da Itália: «Soldados, falta-vos tudo, mas o inimigo está bem provido».

Tholomyés interrompeu-se:

— Toma fôlego, Tholomyés! — disse Blachevelle. E, dizendo isto, Blachevelle, acompanhado por Listolier e Fameuil, em tom de queixume entoou uma dessas canções de oficina, compostas das primeiras palavras que ocorrem, rimadas a torto e a direito e vazias de sentido como o vergar de uma árvore e o sussurro do vento, nascidas do fumo dos cachimbos e dissipando-se com ele. Eis o que o grupo respondeu à arenga de Tholomyés:



Uns pobres patetas deram
A certo agente dinheiro.
Impondo como condição
Clermont-Tonerre fazer
Papa eleito em S. Jean
Mas ele por não ser padre,
Não pôde a Papa chegar
E o agente com tristeza
Foi o dinheiro entregar.



Pouco próprio era isto para acalmar o improviso de Tholomyés. O rapaz, contudo, esvaziou o copo, tornou a enchê-lo e continuou:

— Abaixo a sabedoria! Façam de conta que não ouviram nada do que eu disse. Não sejamos nem graves, nem prudentes, nem práticos. Proponho um brinde à alegria, sejamos alegres! Completemos o nosso curso de Direito, comendo e fazendo loucuras. Indigestão e digesto! Seja Justiniano o varão e Ripaille a fêmea! Haja alegria até às profundidades! O mundo é um grande diamante. Sinto-me feliz. Os pássaros são admiráveis. Que festa por toda a parte! O rouxinol é um Elleviou grátis. Eu te saúdo, ó Verão! ó Luxemburgo, ó geórgicas da rua da Madame e da álea do Observatório! Ó graciosas criadinhas que olhais para as crianças que trazeis a passeio e vos entreteis a dar-lhes princípio! Gostaria dos pampas da América, se não tivesse as arcadas do Odéon. A minha alma voa para as savanas e para as florestas virgens! É tudo belo! As moscas zumbem no meio da luz. O sol espirrou o beija-flor. Dá-me um beijo, Fantine!

Mas enganou-se e beijou Favorita.




________________________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


_________________________

Leia também:

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine I — O abade Myriel
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bem-vindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine III — A bom bispo, mau bispado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IV — As palavras semelhantes às obras
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine V — Como Monsenhor Bem-vindo poupava as suas batinas
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VI — Quem guardava a casa do prelado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VII — Gravatte, o salteador
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VIII — Filosofia de sobremesa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IX — O caráter do irmão descrito pela irmã
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 1
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 2
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XI — Restrição
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XII — Solidão de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIII — Quais eram as crenças do bispo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIV — O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha (2)
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda II — A prudência aconselha a sabedoria
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda III — Heroísmo da obediência passiva
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IV — Pormenores sobre as queijeiras de Pontarlier
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, V — Tranquilidade
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VI — Jean Valjean
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VII — O interior do desespero
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VIII — A onda e a sombra
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IX — Novos agravos
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, X — O hóspede acordado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XI — O que ele faz
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XII — O bispo trabalha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XIII — O pequeno Gervásio
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, II — Quatro pares
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, III — A quatro e quatro
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, V — Em casa de Bombarda
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VI — Capítulo consagrado ao amor
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo


_________________



Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)




Então, mais uma resenha e junto antecipando algumas surpresas...

Os Miseráveis (Victor Hugo) | Tatiana Feltrin





Nenhum comentário:

Postar um comentário