sexta-feira, 12 de junho de 2020

O Brasil Nação - V2: §§ 76 – Liberdade... - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8



A Revolução Republicana



§ 76 – Liberdade...



No apreciar a liberdade como condição de progresso, é preciso distinguir – progresso político e evolução social. Aquele se pode realizar plenamente dentro de uma mesma classe dirigente, desde que haja realidade de livre democracia, desde que a mesma classe seja sincera e leal para com a nação. Mas, tanto não basta para vencer as etapas da evolução social, que, em vista das tradições de classe, tem de fazer-se com a substituição integral dos dirigentes, incorporados aos respectivos programas. Ainda aí, a liberdade tem função essencial – assegurando a propaganda, familiarizando as consciências com as novas formas sociais reclamadas. Um momentâneo eclipse da ostensiva democracia não a elimina; se a conquista política ou social corresponde à realidade da justiça, será um futuro de mais liberdade e verdadeira democracia. A livre propaganda tem de fazer de cada revolução – solidariedade, reparação de iniquidades, iniciativa de consciências, autonomia de pensamento, franca expansão de corações. Uma coisa é o efeito de uma revolução socialista, realização de princípios conhecidos e proclamados há um século, outra é o que saiu da marcha sobre Roma, surpresa de reação, e que só se definiu quando já era crescente a tirania fascista, para um futuro que nunca será – nem liberdade, nem justiça. O problema da liberdade, fecunda e necessária afirmação das personalidades, só tem solução incluindo essas mesmas crises de desenvolvimento social. Fora daí, a política será de morte, no fatal suicídio dos regimes que se fecham em coação. Um Fustel de Coulanges, ou um Mommsen, não podem ser tidos como revolucionários, ou demagogos. Leiam-se as páginas em que eles contemplam as organizações políticas mais completas e mais fecundas da idade clássica: aquele, para acentuar a impropriedade do regime em vista do progresso, nos dirá: “... o despotismo só tem remédio no despotismo...” Mommsen, em face da sociedade romana, ao extinguir-se a República – aquele patriciado de privilegiados na exploração do mundo, refratários a toda ideia de justiça, proclama o direito de revolução:


Em regra, o restabelecimento da oligarquia, começava com um mau governo, tanto após da queda dos Grachos, como depois de Mario e de Saturnino; mas nunca se vira um governo, ao mesmo tempo, tão forte e tão mole, tão corrompido e tão corruptor como esse... É triste que um governo incapaz e perigoso possa calcar aos pés, assim, a felicidade e a honra do país, sem que haja homens que se apoderem das armas que ele forja contra si mesmo, e, com apoio dos honestos, e o assentimento de todos, provocar uma revolução, que, em tal caso, é legitima.


Degradados no despotismo, ignorantes da sua degradação, os partidários da autoridade contra a liberdade vão ao ponto de reclamar diferenciações políticas, e uma essencial distinção, para maior ignomínia – governantes, como função de irrecusável superioridade... E alegam, na impavidez de ignorantes, que tal acontece na sociedade dos insetos, como se houvesse qualquer analogia nas respectivas condições, socializantes! No Homem, a sociedade resulta de instintos, já lúcidos nas consciências, que se reconhecem semelhantes, sem que haja, de fato, diferença de organização fisiológica, ou psíquica; ao passo que, nos insetos, a socialização resulta diretamente de diferenciações estruturais e fisiológicas. Ponderando nessas coisas, um sociólogo, também naturalista, Ward, qualifica a liberdade como a condição mesma do progresso humano:


A verdade inteira é que..., só a iniciativa particular podendo produzir grandes resultados (de progresso), deve ser livre, e que, sob a influência das forças normais e naturais da sociedade, e tendo em consideração o conjunto da natureza humana, essa iniciativa não pode ser livre se as vias da sua atividade não lhe são abertas pelo poder da sociedade. [1] 

[1] Pure Sociology, II, 369.

Nessas páginas, e nas de todos que realmente se inspiram da ciência e da história, a evolução moral e social se patenteia como humanização de instintos e emancipação de consciências. E sempre, e por toda parte, as duas condições se aproximam: prática da liberdade para uma perfeita justiça. Yves Guyot é peremptório: “O progresso está na razão inversa da ação coercitiva do homem sobre o homem, e na razão direta da ação humana sobre as coisas...” Em mais completos desenvolvimentos, esse economista teria formulado:...a mesma ação sobre as coisas depende diretamente da liberdade, porque o homem precisa sentir-se livre – organizar convenientemente a sua atividade, e tirar das suas capacidades o máximo e o ótimo que elas podem dar. Vem daí, em aspecto oposto, o defeito na atividade do escravo, porque todo entrave à liberdade é um inibitório da ação. Nem se diga, como o fazem os sociólogos a serviço do cativeiro, que, escravizado, o homem aprendeu a trabalhar... Outras vantagens morais e sociais teria trazido a instituição do cativeiro, menos a educação do trabalho. Qualquer que seja o treino do escravo, grande destreza que ele adquira: não será isto, nunca, legítima educação da atividade... Ainda quando a raça escravizadora é de cultura superior, do seu senhorio resultará boa técnica para o escravo, e mais nada. Educação do trabalho significa: amá-lo, apurá-lo sempre; dar sem desgosto as horas de esforço necessário; sentir o prazer de produzir; associar trabalho e inteligência na constante alerta da iniciativa. Em vez disto, a escravidão degradou o trabalho, fê-lo odiento, matou os seus melhores estímulos associando, implacavelmente, trabalho e dor, castigo, humilhação, domínio, fadiga sem compensação... Atividade e liberdade têm de ser irmanadas, para que o trabalho tenha ação educativa.

A eficácia da ação humana estará sempre na livre plenitude das iniciativas. O seu manancial de energias é o desejo, só potente na consciência que se sente livre de qualquer coerção. O instinto do labor, o sublime esforço da invenção, anulam-se fora da liberdade. O homem forte – que concentra energias, é incompatível com a coação. Não há nada, no livre desenvolvimento do indivíduo, que não tenha valor moral, assim como não há atentado contra a liberdade que não seja, finalmente, desmoralizador e degradante. Hoffding, apenas psicólogo e moralista, depois de definir “liberdade é a vontade governada por motivos morais”, sintetiza: Há tantos deuses quanto há de homens livres. De fato: as grandes virtudes individuais – justiça, afirmação pessoal, orgulho fecundo... só na liberdade podem valer. Em si mesma, a liberdade é apenas uma condição; mas tal o seu poder, que não podemos pensar nela sem que a mente se dilate, numa irradiação de felicidade. Nesse aspecto, para o domínio moral, a liberdade se torna a maior força do espírito, pois que, existir humanamente, para realizações profícuas, exige, iniludivelmente, o querer, que livremente se projeta sobre a realidade. Em compensação, quando se qualifica moralmente a liberdade, logo se reconhece que o ótimo da livre existência está na capacidade, em cada um, de reconhecer-se – para dominar-se. No impulso, ninguém é livre. Ter a consciência válida e lúcida sobre o ímpeto e a veemência, transformar em efeitos sãos a violência da paixão... tal nos impõe a própria condição de humanos; mas que tudo isto seja esforço íntimo, movido na própria liberdade, condição essencial para a coragem de viver, a moralidade própria às qualidades que a natureza nos deu, divino legado, que, apurado, devemos religiosamente guardar e respeitar.

Destarte, necessária à boa organização política e à eficácia da socialização, a liberdade é a base mesma da disciplina moral. Apliquemos ao Brasil estas verdades. Continuada do torvo despotismo bragantino, eivada dele desde sempre, a nossa política ofende e contraria uma coisa e a outra: a disciplina ativa e a solidariedade fecunda. Ontem, uma liberdade de favor, por isso mesmo falha, desmoralizante; hoje, o tripúdio da irresponsabilidade bestial por sobre tudo que lembra liberdade e justiça. Para os orçamentos que devoram, os bandos políticos acumulam leis, como fazem e refazem constituições: que valem, para nós, constituições e leis, apenas copiadas de povos que compreendem a liberdade?... O manifesto desacordo entre as fórmulas escritas e a realidade, ainda é uma causa de desmoralização... Com os costumes políticos de sempre, e as práticas confessadas nessas almas de feitores servis, o mister de governar deturpa-se e perverte-se de mais em mais. Assim, a nação veio a ter, na República, a consagração agravada de todas as infâmias do bragantismo. E, como sem possibilidade de eficaz renovação política e social, vivemos num regime virtual de castas: famílias que se assenhorearam do poder para os fins dos orçamentos, oligarcas de acaso, incapazes, improbos, despudorados, desfrutadores... Com isso, a miséria física e moral, quanta injustiça, nesta preamar de privilégios e rapinas, garantidos pelas mesmas leis e códigos que falam de democracia e direitos políticos!... Sob o regime da chamada a mais liberal das constituições, antes ou depois de emendada (e tão insincera que ninguém lhe sentiu tais emendas), sob o titular regime de liberdade e democracia, vivemos sob o arbítrio, no espetáculo das torpezas impunes. Em verdade, o que a República nos dá são os milhares de códigos, leis, decretos, avisos, regulamentos... para manter e proteger a injustiça, o privilégio, a fiscalidade extorsiva, a opressão... razão de ser dos governantes mais ineptos e corruptos que têm explorado um povo bom. Para comentário, basta ler, colocando-a na época, e a par dos fatos, essa lei de imprensa, que nos leva para trás do século de Thomaz Antonio e Linhares. Passamos por esses dias que se continuam, e sentimo-lo na agonia de um ideal que se esvai, com a alma de um povo a desesperar em silêncio.

Como não ser assim?!... A ação vital liberdade está na convicção com que a ela nos entregamos, e na sinceridade com que a aplicamos. Ora, se há qualidade que, desde sempre, falte aos nossos dirigentes é a convicção – para as práticas sinceras. Nasceram de transigências... e existem condenados a não saírem delas. Transigências de princípios, oscilação de forma, torpeza de ação... está definida a conduta dos governantes brasileiros, que, na República, eliminaram, de liberdade, até as aparências. Hierarquia de mandões, promovidos por servilismo, à margem do brio, os desfrutadores da República assentaram-na em contraste com a livre democracia e a honestidade de propósitos. República que, se por um dia sequer, suprimiu a liberdade, renegou a si mesma: quantos dias de liberdade se contam na vida do Brasil republicano? Por definição, esse é o regime que realiza, de fato, a soberania da nação, soberania que é a própria consciência nacional – livre de manifestar o seu querer e de organizar a sua atividade... Ora, na República em que vivemos, nada faz lembrar, nem democracia, nem consciência nacional; as práticas políticas abafaram-nas. Em tal bafio, toda aspiração de democracia e dignidade se reputa um ataque ao santuário da autoridade, à existência do regime... E, com razão, que autoridade e regime são eles mesmos, incompatíveis com a liberdade. Por isso, nos momentos em que a ceva se embaraça um pouco, mesmo os bem-intencionados dentre os republicanos, não lembram outro remédio senão a ditadura, isto é, o miserável recurso da tirania, do autocracismo em transe. Tanto valeria recomeçar a vida política para chegar ao mesmo resultado, pois que outra coisa não tem sido o governo do Brasil – ditadura, mais ou menos frouxa, de irresponsáveis, mais ou menos ruins. Nem se lembram – talvez nem sabem: que todas as verdadeiras expansões do nosso patriotismo têm sido movimentos em prol da liberdade: independência da nação, eliminação do príncipe estrangeiro, libertação dos escravos, República. Não sabem, porque nunca meditaram tais coisas. Do Brasil, basta-lhes o usufruto... Então, para tais dirigentes, o regime ideal seria essa ordem definitiva, com eliminação de toda liberdade: tirania – garantia da posse; ordem – perpetuidade dos privilégios deles... E, perpetuada, essa ordem significaria extinção da nacionalidade, morte do patriotismo. Só pode haver pátria para quem a sente como sua, e a possui em motivos de amor! Como poderá o brasileiro se sentir na sua pátria, se é um dominado, espoliado em todos os direitos de soberania, qual o vencido de outras eras? A pátria não é abstração – para simples objeto de culto. Quem não a explora, para admitir as suas exigências, tem de reconhecê-la como garantia de realização pessoal, e de senti-la como explícito motivo de apego e gratidão. Por isso mesmo, não há patriotismo sem nacionalismo, que é a identificação do indivíduo com a tradição a que pertence. Pode o brasileiro sentir-se em sua pátria, quando a nação em que se inclui é, apenas, o apanágio dos dirigentes que dela vivem como o pastor vive do rebanho?... 

Participando de uma pátria, admitindo em nome dela até o supremo sacrifício, o homem quer que isto o dignifique; quer ser conduzido pela consciência, na livre aceitação dos deveres. Fora daí, é o cativeiro, no aviltamento. Quem não é capaz de dirigir um governo livre, e conduzir uma nação solidarizada em motivos de justiça, é um tropeiro, válido pela força e o relho. De quem aspira e aceita o poder, exige-se: que tenha uma obra a realizar, e que seja capaz de cumpri-la em franca e livre cooperação com a nação. Bem ao contrário disto, os nossos estadistas só têm uma obra em mente – a satisfação dos apetites, e só sabem governar pela força. 

Vêm todas estas páginas plenas de truísmo e são indispensáveis para acentuar a distância em que eles ficam, da função em que se privilegiaram.




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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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