domingo, 30 de maio de 2021

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Rainha Marguerite (X)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo X

A RAINHA MARGUERITE




Amor! Em que loucura não nos fazes encontrar prazer?

CARTAS DE UMA RELIGIOSA PORTUGUESA





JULIEN RELEU SUAS CARTAS. Quando ouviu a sineta do almoço, pensou: Como devo ter sido ridículo aos olhos dessa boneca parisiense! Que loucura dizer-lhe realmente aquilo em que eu pensava! Mas talvez loucura não tão grande. A verdade, naquele momento, era digna de mim.
Por que vir interrogar-me sobre coisas íntimas? A pergunta foi indiscreta da parte dela, foi uma falta de educação. Meus pensamentos sobre Danton não fazem parte do serviço para o qual seu pai me paga.
Ao chegar à sala de jantar, o mau humor de Julien foi surpreendido pelo luto pesado da srta. de La Mole, que o impressionou ainda mais porque nenhuma outra pessoa da família estava vestida de preto.
Depois do almoço, viu-se completamente livre do acesso de entusiasmo que o obsedara durante a jornada. Por sorte, o acadêmico que sabia latim estava presente. É o homem que menos zombará de mim, pensou, se, como presumo, minha pergunta sobre o luto da srta. de La Mole for descabida.
Mathilde olhava-o com uma expressão singular. Aí está a coqueteria das mulheres desta cidade, tal como a sra. de Rênal me havia pintado, pensou Julien. Não fui amável com ela esta manhã, não cedi à sua vontade de conversar. Assim aumento de valor aos olhos dela. Certamente o diabo nada perde com isso. Mais tarde, sua altivez desdenhosa saberá vingar-se. Desafio-a a fazer pior. Que diferença em relação àquela que perdi! Sua naturalidade encantadora! Sua ingenuidade! Eu sabia seus pensamentos antes dela, via-os nascer; meu único antagonista, em seu coração, era o medo da morte dos filhos; era uma afeição razoável e natural, amável mesmo para mim, que padecia com ela. Fui um tolo. As ideias que eu fazia de Paris impediram-me de apreciar aquela mulher sublime.
Que diferença, meu Deus! E o que encontro aqui? Vaidade seca e orgulhosa, todos os matizes do amor-próprio e nada mais.
Deixavam a mesa. Não posso perder meu acadêmico, pensou Julien. Aproximou-se dele quando passavam ao jardim, assumiu um ar afável e submisso e partilhou seu furor contra o sucesso de Hernani.

– Se ainda estivéssemos no tempo das ordens de prisão emitidas pelo rei!... ele disse.

– Então ele não teria ousado, exclamou o acadêmico, com um gesto à Talma.

A propósito de uma flor, Julien citou algumas palavras das Geórgicas, de Virgílio, e achou que nada se comparava aos versos do abade Delille. Em suma, adulou o acadêmico de todas as maneiras, para então dizer, com o ar mais indiferente:

– Suponho que a srta. de La Mole recebeu a herança de um tio pelo qual veste o luto.

– Como! O senhor é da casa, disse o acadêmico, estacando, e não conhece essa mania? Em realidade, é estranho que sua mãe permita tais coisas; mas, cá entre nós, não é precisamente pela força de caráter que se brilha nesta casa. A srta. Mathilde tem essa força por todos eles, e os dirige. Hoje é 30 de abril! E o acadêmico deteve-se, olhando para Julien com um ar esperto. Julien sorriu do jeito mais espirituoso que pôde.

Que relação pode haver entre dirigir toda uma família, usar um vestido preto e o dia 30 de abril?, ele pensava. Devo ser ainda mais ignorante do que imaginava.

– Confesso-lhe..., disse ao acadêmico, e seu olhar continuava a interrogar.

– Vamos dar uma volta pelo jardim, disse o acadêmico, entrevendo com entusiasmo a ocasião de fazer uma longa narração elegante. Então é possível que não saiba o que se passou em 30 de abril de 1574?

– E onde?, perguntou Julien, espantado.

– Na praça de Grève.

Julien estava tão espantado que nada associou a esse nome. A curiosidade, a expectativa de uma informação trágica, tão de acordo com seu caráter, davam-lhe aqueles olhos brilhantes que um narrador tanto gosta de ver na pessoa que o escuta. O acadêmico, encantado de encontrar um ouvido virgem, contou longamente como, em 30 de abril de 1574, o moço mais bonito de seu século, Boniface de La Mole, e seu amigo Annibal de Coconasso, fidalgo piemontês, foram decapitados na praça de Grève. La Mole era o amante adorado da rainha Marguerite de Navarra; e observe, acrescentou o acadêmico, que a srta. de La Mole chama-se Mathilde-Marguerite. La Mole era ao mesmo tempo o favorito do duque d’Alençon e amigo íntimo do rei de Navarra, depois Henrique IV, marido de sua amante. Na terça-feira gorda daquele ano de 1574, a corte achava-se em Saint-Germain com o pobre rei Carlos IX, que estava morrendo. La Mole quis libertar os príncipes, seus amigos, que a rainha Catarina de Médicis retinha como prisioneiros na corte. Fez avançar duzentos cavalos contra os muros de Saint-Germain; o duque d’Alençon teve medo, e La Mole foi entregue ao carrasco.

– Mas o que comove a srta. Mathilde, o que ela mesma confessou-me, há sete ou oito anos, quando tinha apenas doze, pois é uma inteligência, uma inteligência!... e o acadêmico ergueu os olhos ao céu, o que a impressionou nessa catástrofe política é que a rainha Marguerite de Navarra, escondida numa casa da praça de Grève, ousou mandar pedir ao carrasco a cabeça do amante. E na noite seguinte, à meia-noite, foi ela mesma enterrá-la numa capela ao pé da colina de Montmartre.

– Será possível?, exclamou Julien, comovido.

– A srta. Mathilde despreza o irmão, porque, como vê, ele não dá a menor importância a essa história antiga e não veste luto em 30 de abril. Foi depois desse famoso suplício, e para lembrar a amizade íntima de La Mole por Coconasso – o qual, como italiano que era, chamava-se Annibal –, que todos os homens desta família passaram a ter esse nome. E o acadêmico acrescentou, baixando a voz: esse Coconasso, no dizer do próprio Carlos IX, foi um dos mais cruéis assassinos do 24 de agosto de 1572. Mas como é possível, meu caro Sorel, que ignore essas coisas, o senhor, comensal da casa?

– Eis então por que, duas vezes no jantar, a srta. La Mole chamou seu irmão de Annibal. Julguei ter ouvido mal.

– Era uma censura. É estranho que a marquesa tolere tais manias... O marido dessa moça inteligente terá muitas surpresas!

Essa tirada foi seguida de cinco ou seis frases satíricas. A satisfação e a intimidade que brilhavam nos olhos do acadêmico chocaram Julien. Parecemos dois criados a falar mal dos patrões, pensou. Mas nada deve espantar-me da parte desse homem de academia.
Um dia, Julien surpreendera-o ajoelhado ante a marquesa de La Mole; pedia-lhe um emprego de fiscal de tabaco para um sobrinho da província. À noite, uma camareira da srta. de La Mole, que o cortejava, como Elisa outrora, fez Julien pensar que o luto da patroa não era para chamar a atenção. Essa esquisitice tinha fundamento em seu caráter. Ela amava realmente aquele La Mole, amante da rainha mais inteligente de seu século, e que morreu por ter querido dar a liberdade aos amigos, e que amigos! O príncipe herdeiro e Henrique IV.
Acostumado à naturalidade perfeita que brilhava na conduta da sra. de Rênal, Julien via apenas afetação nas mulheres de Paris; e, mesmo quando não se aborrecia com elas, nada encontrava para lhes dizer. A srta. de La Mole foi uma exceção.
Ele começava a não mais tomar como secura de coração esse tipo de beleza associado à nobreza do porte. Teve longas conversas com a srta. de La Mole, que, às vezes depois do almoço, passeava com ele pelo jardim, ao longo das janelas abertas do salão. Um dia ela disse-lhe que estava lendo a história de d´Aubigné, e Brantôme. Leitura singular, pensou Julien; e a marquesa não lhe permite ler os romances de Walter Scott!
Um dia ela contou, com aqueles olhos brilhantes que provam a sinceridade da admiração, um episódio que acabara de ler nas Memórias, de l’Étoile: durante o reinado de Henrique III, uma dama, ao descobrir a infidelidade do marido, o apunhalou.
O amor-próprio de Julien sentia-se lisonjeado. Uma pessoa cercada de tantos respeitos, e que, nas palavras do acadêmico, dirigia toda a casa, dignava-se falar-lhe de um jeito que podia quase parecer amizade.
Eu estava enganado, pensou logo em seguida Julien; não se trata de familiaridade, sou apenas um confidente de tragédia, é a necessidade de falar. Sou tido por sábio nesta família. Vou ler Brantôme, d’Aubigné, l’Étoile, assim poderei contestar algumas das anedotas de que me fala a srta. de La Mole. Quero deixar esse papel de confidente passivo.
os poucos, suas conversas com essa moça, de um porte tão imponente e ao mesmo tempo tão desembaraçado, tornaram-se mais interessantes. Ele esquecia seu triste papel de plebeu revoltado. Achava-a uma pessoa culta, e mesmo razoável. Suas opiniões no jardim eram muito diferentes das que ela mostrava no salão. Às vezes tinha com ele um entusiasmo e uma franqueza que formavam um contraste perfeito com sua maneira de ser usual, tão orgulhosa e fria.
As guerras da Liga são os tempos heroicos da França, disse ela um dia, com olhos faiscantes de gênio e de entusiasmo. Cada um combatia então para obter uma certa coisa desejada, para fazer triunfar seu partido, e não para ganhar vulgarmente uma medalha como no tempo do seu imperador. Convenha que havia menos egoísmo e mesquinhez. Gosto daquele século.

– E Boniface de La Mole foi seu herói, disse ele.

– Pelo menos, foi amado como talvez seja doce sê-lo. Que mulher atualmente viva não teria horror de tocar a cabeça de seu amante decapitado?

A sra. de La Mole chamou a filha. A hipocrisia, para ser útil, deve ocultar-se; e Julien, como se percebe, fizera à srta. de La Mole uma semiconfidência sobre sua admiração por Napoleão.
Eis a imensa vantagem que eles têm sobre nós, pensou Julien, tendo ficado a sós no jardim. A história de seus antepassados os eleva acima dos sentimentos vulgares, e eles não precisam pensar em sua subsistência! Que miséria! Acrescentava com amargor, sou indigno de pensar sobre esses grandes assuntos. Minha vida não passa de uma série de hipocrisias, porque não tenho mil francos de renda para manter-me.

– Em que está pensando, senhor?, disse-lhe Mathil de, que retornava correndo.

Julien estava cansado de desprezar-se. Por orgulho, disse francamente o que pensava. Corou muito ao falar de sua pobreza a uma pessoa tão rica. Procurou mostrar claramente, por seu tom orgulhoso, que não estava pedindo nada. Ele nunca parecera tão belo a Mathilde, que viu nele uma expressão de sensibilidade e de franqueza que com frequência lhe faltava.
Menos de um mês depois, Julien passeava pensativo pelo jardim da mansão de La Mole; mas seu rosto não tinha mais a dureza e a arrogância filosófica que nele imprimia o sentimento contínuo de sua inferioridade. Acabava de reconduzir até a porta do salão a srta. de La Mole, que dizia ter torcido o pé ao correr com seu irmão.
Ela apoiou-se em meu braço de um modo bastante singular!, dizia-se Julien. Sou um presumido ou seria verdade que ela gosta de mim? Escuta-me com um ar tão doce, mesmo quando lhe confesso os sofrimentos de meu orgulho! Logo ela, tão orgulhosa com todo o mundo! Ficariam muito espantados no salão se lhe vissem tal fisionomia. Essa expressão doce e amável, é certo que não a tem com ninguém.
Julien procurava não exagerar essa singular amizade, comparando-a a um comércio armado. Todo dia ao reencontrarem-se, antes de retomarem o tom quase íntimo da véspera, era como se perguntassem: seremos hoje amigos ou inimigos? Julien compreendera que deixar-se ofender impunemente uma única vez por aquela jovem orgulhosa era perder tudo. Se devo indispor-me, não será melhor que seja desde o início, defendendo os justos direitos de meu orgulho, e não repelindo as marcas de desprezo que logo acompanhariam o menor abandono do que devo à minha dignidade pessoal?
Várias vezes, em dias de mau humor, Mathilde tentou adotar com ele o tom de uma grande dama, o que fazia com rara delicadeza; mas Julien repelia rudemente essas tentativas.
Certo dia, ele a interrompeu bruscamente:

– A senhorita de La Mole tem alguma ordem a dar ao secretário de seu pai?, perguntou. Ele deve escutar suas ordens e executá-las com respeito; mas, de resto, não tem a obrigação de dirigir-lhe a palavra. Ele não é pago para comunicar-lhe seus pensamentos.

Essa maneira de ser e as dúvidas singulares de Julien fizeram desaparecer o tédio que ele sentia regularmente naquele salão magnífico, onde havia um medo de tudo e onde não era conveniente fazer qualquer gracejo.
Seria divertido se ela me amasse. Quer me ame ou não, continuava Julien, tenho por confidente íntima uma mulher de espírito, diante da qual vejo tremer a casa inteira e, mais do que todos, o marquês de Croisenois, esse jovem polido, amável, corajoso, que reúne todas as vantagens de nascimento e de fortuna, das quais uma só já deixaria meu coração tão à vontade! Ele está loucamente apaixonado, quer casar com ela. Quantas cartas o sr. de La Mole fez-me escrever aos dois notários para arranjar o contrato! E eu, que me vejo tão subalterno ao redigi-las, duas horas depois, aqui no jardim, triunfo desse jovem tão amável: pois, enfim, as preferências são visíveis, diretas. Pode ser também que ela odeie nele um futuro marido. Tem bastante altivez para isso. E as amabilidades que demonstra comigo, obtenho-as a título de confidente subalterno.
Mas não, ou estou louco, ou ela me corteja; quanto mais mostro-me frio e respeitoso com ela, mais ela me procura. Isso poderia ser uma atitude fingida; mas vejo seus olhos animarem-se quando apareço de improviso. Sabem as mulheres de Paris fingir a esse ponto? Que importa! Tenho a aparência a meu favor, desfrutemos das aparências. Meu Deus, como ela é bela! Como seus grandes olhos azuis me agradam, vistos de perto, e olhando-me como o fazem com frequência! Que diferença entre esta primavera e a do ano passado, quando eu vivia infeliz e sustentando-me à força de caráter, em meio a trezentos hipócritas perversos e sórdidos! Eu estava ficando quase tão perverso quanto eles.
Nos dias de desconfiança, Julien pensava: Essa moça zomba de mim. Está de conluio com o irmão para ludibriar-me. Mas ela dá a impressão de desprezar tanto a falta de energia desse irmão! Ele é corajoso, nada mais que isso, ela me disse. Não tem um pensamento que ouse afastar-se da moda. Sou sempre eu que sou obrigada a defendê-lo, eu, uma moça de dezenove anos! Com essa idade, pode-se ser fiel, a cada instante do dia, à hipocrisia prescrita?
Por outro lado, sempre que a srta. de La Mole fixa em mim seus grandes olhos azuis com uma certa expressão singular, o conde Norbert afasta-se. Isso é suspeito; ele não deveria indignar-se com o fato de a irmã distinguir um cria do de sua casa? Foi com essa palavra que ouvi o duque de Chaulnes referir-se a mim. A tal lembrança, a cólera substituía em Julien qualquer outro sentimento: Esse duque maníaco diz isso por amor à linguagem antiga?
Bem, mas ela é bonita! continuava Julien, com olhares de tigre. Eu a terei, depois cairei fora, e ai de quem perturbar-me em minha fuga!
Essa ideia tornou-se a única preocupação de Julien, não conseguia mais pensar noutra coisa. Seus dias passavam como horas.
A todo instante, buscando ocupar-se de algum assunto sério, seu pensamento abandonava tudo, e ele despertava um quarto de hora depois, o coração palpitando, a cabeça confusa, e sonhando com esta ideia: ela me ama?


continua página 214...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Rainha Marguerite (X)


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