segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (3a) - Passava das onze horas

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

3.

      Passava das onze horas. O príncipe calculou que na residência dos Epantchín só encontraria o general que todavia poderia ter ficado na cidade, preso às suas obrigações, não estando ainda em casa. Viera-lhe o pensamento de que o general o pudesse levar até Pávlovsk: mas queria antes fazer uma visita na qual tinha particular interesse. Mesmo ante a hipótese de perder o General Epantchín e falhar em sua visita a Pávlovsk, ficando obrigado a adiá-la para o dia seguinte. decidiu o príncipe ir procurar a casa onde tanto desejava ir. E todavia essa visita, sob um dado aspecto, era arriscada. Ficou perplexo e cheio de hesitação. Sabia que descobriria a casa na Rua Gorókhovaia. não longe da Rua Sadóvaia; resolveu ir até lá, crente de que pouco a pouco o seu espírito se refizesse.
     Quando chegou ao ponto em que as duas ruas se cruzam. surpreendeu-se com a extraordinária emoção que estava sentindo: não esperava que o seu coração viesse a bater assim tão dobrosamente. Certo prédio, de longe, lhe atraiu a atenção, por causa, sem dúvida, de sua aparência esquisita; muito tempo depois o príncipe ainda se lembrava de se ter dito: “Deve ser aquela!” E com ar muito curioso caminhou nessa direção para verificar a sua conjetura: preferiria, fosse como fosse, não ter acenado no seu pressentimento.
     Era uma casa enorme e sinistra, de três andares, sem pretensões arquitetônicas, de uma cor verde suja. Uns poucos edifícios dessa espécie, construídos no fim do século passado, ainda permanecem sem modificação alguma em dadas ruas de Petersburgo (onde tudo se modifica tão depressa). São construídos solidamente, com largas paredes e raras janelas, muitas vezes com barras de ferro nas janelas do rés-do-chão. De hábito há sempre uma loja de câmbio, embaixo, e o dono, quase sempre da seita dos Skoptzy (que praticam a automutilação), trabalha na loja e mora em cima. Por dentro e por fora essas casas têm um como que aspecto inóspito e frígido.
     Dir-se-ia que conservam algo de sombrio e secreto, e seria difícil explicar, só pela simples impressão, por que sugerem isso. As linhas arquitetônicas possuem, sem dúvida, um segredo específico. E tais prédios são ocupados, em sua maioria, por gente de comércio.
     Tendo-se dirigido até à porta, o príncipe examinou a inscrição que nela havia, lendo: “Residência legada, hereditariamente, ao cidadão hereditário e honorário Rogójin”. Sem hesitar sequer, abriu a porta de vidro, que se fechou ruidosamente atrás dele, e subiu a grande escadaria até ao primeiro andar; uma escadaria de pedra, grosseiramente feita e muito escura; as paredes eram pintadas de vermelho. Ele sabia que Rogójin, com a mãe e o irmão ocupavam todo o segundo andar dessa casa lúgubre. O criado que abriu a porta ao príncipe fê-lo entrar sem lhe perguntar o nome, levando-o lá para dentro. Atravessaram uma enorme sala de visitas cujas paredes tinham sido pintadas fingindo mármore; o assoalho era de tacos de carvalho, e os móveis de 1820, rústicos e pesados. Passaram através de pequenas peças que obrigavam a virar e a desviar, ora subindo dois ou três degraus, ora descendo outros tantos, até que a empregada bateu em uma porta que foi aberta pelo próprio Parfión Semiónovitch.
     Ao ver o príncipe ficou tão pálido e petrificado que durante certo tempo permaneceu feito uma estátua, fixando-o com olhos de espanto e contraindo a boca em um sorriso de completa admiração, como se achasse na visita do príncipe algo de inacreditável e miraculoso. Apesar de preparado para isso. o príncipe ficou surpreendido.

- Parfión, dar-se-á o caso de eu ter vindo em hora inoportuna? Posso ir embora, seja franco - disse, por fim, com embaraço.

 - Absolutamente! Absolutamente! - tornou Parfión, refazendo-se. - Seja bem-vindo. Entre para cá.

     Dirigiram-se um ao outro, como amigos íntimos. Já em Moscou tinham muitas vezes passado horas juntos, e esses encontros haviam deixado eterna memória em seus corações. Desde três meses não se encontravam. O rosto de Rogójin não perdeu a sua palidez e havia ainda um ligeiro repuxamento bem perceptível. Embora recebesse bem o visitante, a sua extraordinária confusão persistia. Ao introduzir o príncipe e ao convidá-lo a sentar em uma poltrona, este se virou para ele e continuou de pé, impressionado com aquele olhar estranho e pesado. Era como se qualquer coisa transfixasse o príncipe e como se, ao mesmo tempo, certa recordação lhe viesse de novo, de algo recente, sinistro e angustiante. Sem se sentar, e sem se mover, ficou olhando por algum tempo Rogójin, bem nos olhos. E foi como se aqueles olhos brilhassem com mais fulgor. Por fim Rogójin sorriu, embora ainda bastante embaraçado e não sabendo direito o que estava fazendo.

 - Por que é que o senhor está me olhando tão atentamente? Sente-se.

     O príncipe sentou-se.

- Parfión - falou ele -, diga-me com sinceridade: você sabia que eu devia chegar hoje a Petersburgo, ou não sabia?

 - Pensei que o senhor viesse e, como vê, não me enganei - ajuntou Rogójin, com um sorriso sarcástico. - Mas como poderia eu dizer que seria hoje?

     O príncipe ainda ficou mais chocado por certo feitio abrupto que demonstrava a irritabilidade estranha dessa resposta.

- Mesmo que você soubesse que eu chegaria hoje, por que esse feitio irritado, ao me responder? – sussurrou o príncipe, de modo gentil, embora ainda mais confuso.

- A minha pergunta tem alguma coisa demais?

- É que, ao desembarcar, hoje, na estação, vi dois olhos que me olhavam como você fez agora mesmo!

- Não diga! Uns olhos? Quais? De quem? - perguntou Rogójin com ar desconfiado. 

     E ao príncipe pareceu ter ele tremido. 

- Não sei; talvez fosse uma alucinação; dei agora para imaginar coisas, sempre. Quer saber, Parfión, meu amigo, sinto-me de novo como há cinco anos atrás, quando tinha ataques. 

- Bem, talvez fosse imaginação sua. Como hei de eu saber? -balbuciou Rogójin. 

     Aquele sorriso amistoso, em seu rosto, não era muito adequado àquele momento, e sim forçado, e por mais que tentasse não o conseguia endireitar.

- Pensa ir de novo para o estrangeiro? - perguntou, ajuntando logo, inopinadamente. 

- Lembra-se daquela vez, quando eu vinha de Pskóv? Vínhamos no mesmo vagão, juntos; foi no último outono. Eu vinha para cá, e o senhor.., com a sua capa, lembra-se, e aquelas polainas!

     E Rogójin de repente deu uma risada; mas desta vez havia franca malícia, e estava satisfeito em a haver podido evidenciar por esse modo.

- Mora aqui, definitivamente? 

- Sim, estou na minha casa. Onde haveria eu de estar? 

 - Há quanto tempo não nos víamos! Ouvi muitas coisas a seu respeito, que eu custo a acreditar.

- Essa gente sempre tem o que contar - observou ele, secamente.

- Com que então você mandou embora todos aqueles indivíduos que não o largavam, instalou-se aqui em sua velha residência e vive sossegadamente! Bravo, isso é muito bom. Esta casa é sua, ou pertence a vocês todos em comum?

- É de minha mãe. Os cômodos dela são para lá do corredor. 

- E seu irmão, onde é que vive? 

- Meu irmão Semión Semiónovitch mora no pavilhão.

- Ele é casado? 

- Viúvo. Por que quer saber?

     O príncipe olhou-o e não respondeu; ficara pensativo, e foi como se não tivesse ouvido a pergunta. Rogójin esperou e não insistiu. Ficaram calados, por algum tempo.

- No caminho para cá adivinhei, à distância de uns cem passos. que era esta a sua casa - confessou o príncipe.

- Como assim?

- Não sei como foi. A casa de vocês tem o ar da sua família, e lembra a sua maneira de vida, Rogójin. Mas se você me perguntasse como cheguei a essa conclusão, eu não lhe saberia explicar. É uma impressão assim aérea, creio eu. E até me indispôs ter-me ela perturbado tanto. Eu antes já fazia idéia de que você viveria em uma casa assim. E logo que a vi, mesmo de longe, pensei: “É, nem mais nem menos, a espécie de casa que ele deve habitar.” 

- Pois é! - Rogójin sorriu de modo distraído, não tendo compreendido bem o pensamento obscuro do príncipe. - Foi meu avô quem construiu esta casa - acrescentou. -Esteve sempre alugada, embaixo, aos Khludiakóv, que são Skoptzy. e que continuam como inquilinos.

- Mas é tão sombria! Você mora em uma escuridão! - observou o príncipe, olhando para a sala. 

     Era um salão alto e sem luz, atulhado de móveis de todos os feitios, quase que em sua maioria grandes mesas de negócios, escrivaninhas e aparadores, onde estavam guardadas uma porção de livros comerciais e uma enorme papelada. Um largo sofá, forrado de marroquim, com certeza servia de cama ao dono da casa. O príncipe reparou na existência de uns dois ou três livros sobre a mesa junto da qual Rogójin o fizera sentar-se. Um deles, justamente a História, de Solovióv, estava aberto tendo uma marca dentro. Pelas paredes pendiam alguns quadros a óleo, com molduras douradas bastante gastas. Os quadros eram escuros e manchados e dificilmente se descobriria o que representavam. Um retrato de corpo inteiro atraiu a atenção do príncipe.
      Representava um homem de cerca de cinquenta anos, metido em uma sobrecasaca muito longa, de talhe ocidental; duas medalhas lhe pendiam do pescoço. Tinha uma barba grisalha muito rala, e uma cara enrugada, com olhos desconfiados, melancólicos, desses que não fixam ninguém.

- É seu pai?

- É, sim - respondeu Rogójin, com um movimento de boca que revelava desagrado, como se esperasse qualquer gracejo provocado pela fisionomia paterna. 

- Pertencia aos “Velhos Crentes”?

- Não; ia sempre à igreja; mas, na verdade, costumava dizer que a antiga forma de crer era mais verdadeira. Tinha também muito respeito para com os Skoptzy. Aqui era o escritório dele. Mas, por que perguntou o senhor se ele era um “Velho Crente”?  

- O seu casamento vai ser aqui?

- S... sim - respondeu Rogójin, logo se sobressaltando ante tão inesperada interrogação. 

- E vai ser já? 

- O senhor sabe muito bem que isso não depende de mim.

 - Parfión, eu não sou seu inimigo, e não tenho a intenção de interferir em coisa alguma que lhe diga respeito. Digo-lhe o que já uma vez lhe disse, quase que em idênticas circunstâncias. Quando o seu casamento estava acertado, em Moscou, eu não impedi, você bem sabe disso. A primeira vez ela veio ter a mim, fugida, no dia em que deviam ser as núpcias; mas veio porque quis, e até rogando que eu a salvasse de você. Estou lhe repetindo as próprias palavras dela. Depois ela fugiu também de mim. Você a achou, outra vez, e estava de novo para se casar com ela quando me disseram que ela tornou a fugir. Foi mesmo? Liébediev me contou. Eis por que vim. Mas que vocês estavam juntos outra vez, só vim a saber ontem, no trem, por intermédio de um de seus primitivos amigos, um tal Zaliójev, se lhe interessa saber. E foi certo desígnio que me trouxe até aqui, em Petersburgo. Queria persuadi-la a ir para o estrangeiro, por causa da saúde. Ela não está nada bem, física e mentalmente. Do cérebro, principalmente; e a meu ver precisa ter muita cautela. Não quero dizer com isso que fosse comigo para o estrangeiro, sendo o meu plano que devia ir sem mim. Estou-lhe contando a absoluta verdade. Mas se é certo que vocês já se acomodaram, não me farei ver, e jamais, tampouco, tornarei a vê-la. Você sabe que não o estou enganando, pois sempre fui correto e sempre me abri com você. Nunca lhe ocultei o que eu penso sobre isso, e sempre tenho dito que casar-se com você seria a perdição dela. E a sua, também... maior, talvez, do que a dela. Se vocês viessem a separar-se, de novo, eu ficaria muito satisfeito; mas não pretendo atrapalhar nada e nem tentarei, eu próprio, separá-los. Não se zangue e não desconfie de mim. Você próprio sabe se eu era realmente rival seu, mesmo quando ela fugiu, me largando. Agora você está rindo. Eu sei de que é que você está rindo. Sim, moramos separados, em cidades diferentes e você sabe tudo isso com exatidão. Já lhe expliquei antes que eu não a amo com amor e sim com piedade. Creio que a minha definição é exata. E naquela ocasião você me disse que compreendia o que eu estava dizendo. Não foi verdade? Não compreendeu? E agora você, aqui, está me olhando com ódio! Então escute, eu vim para o tranquilizar, pois você me é muito caro. Gosto muito de você, Parfión. E com isto me vou embora e nunca mais voltarei aqui. Adeus!

     O príncipe levantou-se.

- Fique mais um pouco comigo - disse Parfión, mansamente, continuando sentado em seu lugar, com a cabeça descansando sobre a mão direita. - Há quanto tempo que eu não o via! 

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