em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(g)
Só ia vê-la de noite, e nada sabia do emprego do seu tempo durante o dia, como nada sabia de seu passado, de modo que lhe faltava até esse insignificante dado inicial que, permitindo-nos imaginar o que não sabemos, nos dá desejos de o conhecer. Assim, não indagava consigo o que ela podia fazer nem qual fora a sua vida. Sorria apenas algumas vezes ao pensar que, anos antes, quando não a conhecia, lhe haviam falado de uma mulher que, se bem se lembrava, devia sem dúvida ser ela, como de uma cortesã, uma mulher sustentada, uma dessas mulheres a quem ele ainda atribuía, em vista de sua pouca convivência com elas, o caráter inteiriço, fundamentalmente perverso, com que por muito tempo as dotou a imaginação de certos romancistas. Considerava que basta muitas vezes tomar ao contrário as reputações que o mundo engendra para julgar exatamente uma pessoa, quando, a tal caráter, contrapunha o de Odette, bondosa, ingênua, idealista, quase tão incapaz de faltar com a verdade que, pedindo-lhe ele uma vez, para jantar a sós com ela, que escrevesse aos Verdurin alegando doença, vira-a no dia seguinte, quando a sra. Verdurin lhe perguntou se estava melhor, enrubescer, balbuciar, refletindo sem querer na fisionomia o desgosto e o suplício que lhe causava a mentira, e, enquanto multiplicava os detalhes fantasiosos sobre a pretensa indisposição da véspera, parecia pedir perdão, com os seus olhos súplices e a sua voz desolada, da falsidade de suas palavras.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Só ia vê-la de noite, e nada sabia do emprego do seu tempo durante o dia, como nada sabia de seu passado, de modo que lhe faltava até esse insignificante dado inicial que, permitindo-nos imaginar o que não sabemos, nos dá desejos de o conhecer. Assim, não indagava consigo o que ela podia fazer nem qual fora a sua vida. Sorria apenas algumas vezes ao pensar que, anos antes, quando não a conhecia, lhe haviam falado de uma mulher que, se bem se lembrava, devia sem dúvida ser ela, como de uma cortesã, uma mulher sustentada, uma dessas mulheres a quem ele ainda atribuía, em vista de sua pouca convivência com elas, o caráter inteiriço, fundamentalmente perverso, com que por muito tempo as dotou a imaginação de certos romancistas. Considerava que basta muitas vezes tomar ao contrário as reputações que o mundo engendra para julgar exatamente uma pessoa, quando, a tal caráter, contrapunha o de Odette, bondosa, ingênua, idealista, quase tão incapaz de faltar com a verdade que, pedindo-lhe ele uma vez, para jantar a sós com ela, que escrevesse aos Verdurin alegando doença, vira-a no dia seguinte, quando a sra. Verdurin lhe perguntou se estava melhor, enrubescer, balbuciar, refletindo sem querer na fisionomia o desgosto e o suplício que lhe causava a mentira, e, enquanto multiplicava os detalhes fantasiosos sobre a pretensa indisposição da véspera, parecia pedir perdão, com os seus olhos súplices e a sua voz desolada, da falsidade de suas palavras.
Certas tardes, no entanto, mas de raro em raro, ia ela à casa de Swann interromper as
suas cismas ou aquele ensaio sobre Vermeer a que ele voltara a dedicar-se ultimamente.
Vinham dizer-lhe que a sra. de Crécy o esperava na saleta. Swann ia ao seu encontro e,
quando abria a porta, pelo rosto róseo de Odette, logo que o avistava — mudando a
forma de sua boca, o mirar de seus olhos, o modelado de suas faces —, espalhava-se
um sorriso. Ficando a sós, revia Swann aquele sorriso, outro que ela tivera na véspera,
outro com que o acolher; em tal ou tal vez, aquele que lhe dera em resposta, no carro,
quando, ao arranjar-lhe as catleias, lhe perguntara ele se aquilo não lhe era desagradável;
e a vida de Odette, durante o resto do tempo, como ele não conhecia nada a seu respeito,
lhe aparecia com o seu fundo neutro e sem cor, semelhante a essas folhas de estudo de
Watteau, onde se veem aqui e ali, em todos os lugares, em todos os sentidos, desenhados
a três cores sobre o papel pardo, inumeráveis sorrisos. Mas às vezes, enchendo um
canto daquela vida que Swann via inteiramente vazia, embora o seu espírito lhe dissesse
que não o era, simplesmente porque não a podia imaginar, algum amigo que,
percebendo que eles se amavam, só se arriscaria a dizer coisas insignificantes a respeito
dela, descrevia-lhe o vulto de Odette, que ele avistara naquela mesma manhã, subindo a
pé a rua Abbattucci, com uma “visita” guarnecida de skunks, um chapéu à Rembrandt e
um ramo de violetas no peito.[1] Este simples croqui abalava Swann porque o fazia
aperceber-se de súbito de que Odette possuía uma vida que não era inteiramente dele;
queria saber a quem procurava ela agradar com aquela toalete que ele não conhecia;
resolvia perguntar-lhe aonde ia naquele momento, como se em toda a vida incolor —
quase inexistente, porque lhe era invisível — da sua amante não houvesse senão uma
coisa além de todos aqueles sorrisos a ele dirigidos: aquela saída de Odette, com um
chapéu à Rembrandt e um ramo de violetas no peito.
A não ser quando lhe pedia a frase de Vinteuil em vez da Valsa das rosas,[2] Swann
nunca a fazia tocar as coisas de que ele gostava, e nem em música, nem em literatura,
procurava corrigir o mau gosto de Odette. Bem sabia que ela não era inteligente. Ao
dizer a Swann que gostaria de que lhe falasse dos grandes poetas, Odette imaginara que
ia logo conhecer coplas heroicas e romanescas no gênero das do visconde de Borelli, ou
coisa mais emocionante ainda.[3] Quanto a Vermeer de Delft, indagou se ele não
sofrera por alguma mulher, se fora uma mulher que o inspirara, e, como Swann lhe
confessasse que nada se sabia a respeito, Odette perdeu todo interesse pelo referido
pintor. Costumava dizer: “A poesia? Sim, não duvido, não haveria nada de mais lindo se
fosse verdade, se os poetas pensassem tudo o que dizem. Mas em geral não há ninguém
mais interesseiro do que essa gente. Bem o sei, eu que tinha uma amiga que amava uma
espécie de poeta. Nos seus versos ele só falava do amor, do céu, das estrelas. Ah!, muito
lhe serviu a ela! O poeta devorou-lhe mais de trezentos mil francos”. Se então procurava
Swann ensinar-lhe em que consistia a beleza artística, como se deviam admirar os versos
ou os quadros, ao fim de um instante ela parava de escutar, dizendo: “Ah…, pois eu não
imaginava que fosse assim”. E Swann notava nela tal decepção que preferia mentir,
dizendo que tudo aquilo ainda não era nada, simples bagatela, que ele não tinha tempo de
abordar o fundo, que havia outra coisa. Mas Odette indagava vivamente: “Outra coisa?
O quê?… Dize-me então”. Mas ele não o dizia, sabendo o quanto aquilo lhe pareceria
insignificante e diferente do que ela esperava, menos sensacional e menos tocante, e
temendo também que Odette, desiludida da arte, também se desiludisse do amor.
E com efeito, Swann lhe parecia intelectualmente inferior ao que havia imaginado.
“Nunca perdes o sangue-frio, não consigo definir-te.” O que mais a espantava era a
indiferença de Swann pelo dinheiro, a sua polidez para com todos, a sua delicadeza. E de
fato, seguidamente acontece com pessoas de mais valor que Swann, com um sábio, com
um artista, se é apreciado pelos que o cercam, que o sentimento que vem provar que a
sua inteligência se impôs a eles não é a admiração por suas ideias, que lhes escapam, mas
o respeito por sua bondade. Era também um sentimento de respeito que inspirava a
Odette a situação que tinha Swann na alta sociedade, mas nunca desejou que ele
procurasse introduzi-la naquele ambiente. Pensava talvez que Swann não o conseguiria e
temia decerto que, só de falar nela, viesse ele a provocar terríveis revelações. A verdade é
que o fizera prometer que nunca pronunciaria o seu nome. A razão por que não queria
frequentar a sociedade, dissera-lhe certa vez, era uma briga que tivera um dia com uma
amiga sua, a qual para vingar-se começara a falar mal dela. “Mas essa tua amiga não
conhece todo mundo”, objetava Swann. “Sim, mas essas coisas se alastram como nódoa
de azeite, e o mundo é tão perverso…”. Por um lado Swann não compreendeu muito
bem a história, mas por outro lado sabia que estas proposições: “o mundo é tão
perverso”, “uma calúnia é como nódoa de azeite” são tidas geralmente como
verdadeiras; devia haver casos aos quais se aplicassem. E o caso de Odette seria um
desses? Indagava-o consigo, mas não por muito tempo, pois também era sujeito a essa
pesadez de espírito que se abatia sobre o seu pai quando se propunha um problema
difícil. Aliás, esse mundo que causava tanto medo a Odette talvez não lhe inspirasse
grandes desejos, pois se achava demasiado longe do mundo que conhecia para que o
pudesse imaginar nitidamente. No entanto, tendo-se conservado verdadeiramente
simples em alguns pontos (mantinha amizade, por exemplo, com uma costureirinha
retirada do ofício e subia quase que diariamente a escada íngreme, escura e malcheirosa
da casa de sua amiga), tinha sede de chique, mas não fazia disso a mesma ideia que as
pessoas da alta sociedade. Para estas, o chique é uma emanação de algumas raras pessoas
que o projetam num raio bastante amplo — e com maior ou menor força, segundo a
distância a que se está da sua intimidade — sobre o círculo dos seus amigos ou dos
amigos de seus amigos, cujos nomes formam uma espécie de repertório. As pessoas da
alta sociedade o guardam de memória, e têm sobre essas matérias uma erudição de que
tiram uma espécie de gosto e de tato peculiares, de modo que Swann, por exemplo, sem
necessidade de apelar para a sua ciência mundana, quando lia no jornal os nomes das
pessoas que se encontravam num jantar, podia dizer imediatamente a nuança de chique
desse jantar, como um letrado, à simples leitura de uma frase, aprecia exatamente a
qualidade literária de seu autor. Mas Odette era dessas pessoas (muito numerosas,
embora não o creiam os da alta sociedade, e como as há em todas as classes sociais) que,
como não possuem essas noções, imaginam um chique inteiramente diverso, que assume
diferentes aspectos conforme o meio a que pertencem, mas tem como característica
essencial — seja o chique com que sonhava Odette ou o chique ante o qual se inclinava a
sra. Cottard — a de ser diretamente acessível a todos. O outro, o das pessoas da alta
sociedade, também o é, mas demanda algum tempo. Dizia Odette de alguém:
— Só vai aos lugares chiques.
E se Swann perguntava o que queria dizer com isso, ela retrucava um tanto
desdenhosamente:
— Mas ora! Os lugares chiques! Se na tua idade é preciso que te ensinem o que são
lugares chiques… Que sei eu! Por exemplo, a avenida da Imperatriz nos domingos de
manhã, a margem do Lago às cinco horas, as quintas do Eden Teatro, as sextas do
Hipódromo, os bailes…[4]
— Mas que bailes?
— Mas os bailes que dão em Paris, os bailes chiques, quero eu dizer. Sabes o
Herbinger, aquele que trabalha com o agiota? Sim, deves conhecer, é um dos homens
mais em moda de Paris, um rapaz alto, loiro, muito esnobe, tem sempre uma flor na
lapela, uma risca atrás, e paletós claros; anda com aquela velhota que ele leva a todas as
estreias. Pois bem! No outro dia ele deu um baile, havia lá tudo o que há de chique em
Paris! Como eu gostaria de ter ido! Mas era preciso apresentar o convite à porta, e eu
não pude conseguir nenhum. Bem, no fundo, prefiro mesmo não ter ido, havia tanta
gente que eu não poderia ver nada. Era só para poder dizer que já estive no Herbinger.
Tu sabes, a vaidade! De resto, podes acreditar, de cem pessoas que dizem que foram,
metade não estava lá… Mas espanta-me que tu, um homem tão pschutt, não tenhas
ido.[5]
Mas Swann não procurava absolutamente fazer com que Odette modificasse esse
conceito do chique; considerando que o seu conceito não era mais verdadeiro, mas
igualmente tolo e sem importância, não achava nenhum interesse em instruir a amante a
esse respeito, tanto assim que, após alguns meses, ela só se interessava pelas relações de
Swann quanto às entradas que ele poderia obter para o Hipódromo ou as estreias de
teatro. Desejava que ele cultivasse relações tão úteis, mas inclinava-se a julgá-las muito
pouco chiques, depois que vira passar na rua a marquesa de Villeparisis com vestido
preto de lã e touca de fitas.
— Mas ela tem o ar de uma operária, de uma porteira, darling. Uma marquesa,
aquilo! Eu não sou nenhuma marquesa, mas teriam de pagar-me muito bem para que eu
saísse daquele jeito!
Não compreendia que Swann morasse naquela casa do cais de Orléans que, sem
ousar confessá-lo, achava indigna dele.
Tinha a pretensão de amar as “antiguidades” e tomara um ar extasiado para dizer
que adorava passar um dia inteiro a “bibelotar”, a procurar bricabraque, coisas
“antigas”. Embora timbrasse, como por uma questão de honra (e como se obedecesse a
algum preceito de família) em nunca responder às interrogações nem “prestar contas”
quanto ao emprego dos seus dias, falou uma vez a Swann de uma amiga que a convidara
e em cuja casa era tudo “de época”. Mas Swann não conseguiu que ela lhe dissesse qual
era a época. Contudo, depois de refletir, respondeu que era “medieval”. Queria dizer
com isso que havia revestimentos de madeira nas paredes. Algum tempo depois tornou a
falar-lhe da sua amiga e acrescentou, no tom hesitante e com o ar entendido de quem cita
alguém com quem jantou na véspera e cujo nome nunca ouvira antes mas que os
anfitriões pareciam considerar uma personagem tão famosa que é de esperar que o
interlocutor saiba de quem se trata: “Ela tem uma sala de jantar do… século xviii!”. De
resto, achava aquilo horrível, muito desnudado, como se a casa não estivesse acabada, as
mulheres pareciam horríveis naquele ambiente e a moda não pegaria. Pela terceira vez
enfim falou neste assunto e mostrou a Swann o endereço do homem que fabricara a sala
de jantar e a quem desejava mandar chamar quando tivesse dinheiro, para ver se não
poderia fazer-lhe, não uma igual, mas a que ela sonhava e que infelizmente as dimensões
de seu pequeno apartamento não comportavam, com altos aparadores, móveis
Renascença e lareiras como as do castelo de Blois. Naquele dia, deixou escapar diante de
Swann o que pensava do seu apartamento do cais de Orléans: como ele houvesse
criticado que a amiga de Odette desse, não para o estilo Luís XVI, pois, dizia ele, embora
seja coisa que não se fabrique, bem pode ser encantador, mas para o falso antigo: “Não
hás de querer que ela viva, como tu, no meio de móveis quebrados e tapetes gastos”,
disse-lhe ela, pois o convencionalismo da burguesia mais uma vez dominava o
diletantismo da cocote.
Daqueles que gostavam de objetos de arte, apreciavam os versos, desprezavam os
cálculos mesquinhos, sonhavam com honra e amor, fazia ela uma elite superior ao resto
da humanidade. Não era necessário que tivessem realmente esses gostos, contanto que o
proclamassem; de um homem que lhe confessara, à mesa, que gostava de flanar, de
empoeirar os dedos nas velhas lojas, que nunca seria apreciado por este século
comercial, pois não lhe preocupavam os seus interesses e pertencia por isso a outra
época, dizia ela, na volta: “Um espírito adorável! Que sensibilidade! Eu não tinha
notado!”, e sentia por aquele homem um imenso e repentino afeto. Mas aqueles que
tinham esses mesmos gostos e nunca se referiam a isso, como era o caso de Swann,
deixavam-na indiferente. Por certo era obrigada a confessar que Swann não ligava ao
dinheiro, mas acrescentava com ar amuado: “Mas, quanto a ele, é outra coisa”; com
efeito, o que lhe falava à imaginação não era a prática do desinteresse, mas seu
vocabulário.
Vendo que muitas vezes não podia realizar os sonhos de Odette, ao menos
procurava fazer com que ela se sentisse bem na sua companhia, e não contrariava aquelas
ideias vulgares, aquele mau gosto que ela possuía em todas as coisas, e que ele aliás
amava como tudo que provinha dela, que o encantavam até, pois eram traços peculiares
graças aos quais a essência daquela mulher se lhe tornava aparente e visível. Assim,
quando tinha Odette um ar feliz porque devia ir à Reine Topaze,[6] ou quando o seu
olhar se tornava sério, inquieto e voluntarioso, porque tinha medo de perder a festa das
flores,[7]ou simplesmente a hora do chá, com mufins e toasts, no “Chá da Rua
Royale”,[8] cuja frequentação achava indispensável para consagrar a reputação de
elegância de uma mulher, Swann, arrebatados como ficamos nós com a naturalidade de
uma criança ou a verdade de um retrato que só falta falar, de tal modo sentia a alma de
sua amante aflorar-lhe ao rosto que não podia resistir à tentação de ir tocá-la com os
lábios. “Ah!, com que então a pequena Odette quer que a levem à festa das flores, quer
fazer-se admirar? Pois bem! Nós a levaremos, só temos de ceder a seus desejos.” Como
era um pouco fraco de vista, Swann teve de resignar-se a usar óculos para trabalhar em
casa e adotar em público o monóculo, que o desfigurava menos. Da primeira vez em
que o viu com ele, Odette não pôde conter a alegria: “Acho que para um homem, não há
o que dizer, é muito chique! Como ficas bem assim! Tens o ar de um verdadeiro
gentleman. Só te falta um título!”, acrescentou, com uma nuança de pesar. Gostava que
Odette fosse assim, da mesma forma que, se estivesse enamorado de uma bretã,
estimaria mais vê-la de touca e ouvi-la dizer que acreditava em fantasmas. Até então,
como muitos homens cujo gosto artístico se desenvolve independentemente da
sensualidade, houvera uma estranha disparidade entre as satisfações que concedia a uma
e outra coisa, gozando, na companhia de mulheres cada vez mais grosseiras, a sedução
de obras mais e mais refinadas, levando, por exemplo, uma criadinha a um camarote
reservado, para assistir à representação de uma peça decadente que ele tinha vontade de
ouvir ou a uma exposição de pintura impressionista, e persuadido, aliás, de que uma
mulher do mundo cultivado não compreenderia muito mais do que a criada, mas não
saberia calar-se tão gentilmente. Pelo contrário, desde que amava Odette, era-lhe tão
grato simpatizar com ela e aspirar a não ter mais que uma alma para ambos, que
procurava gostar das coisas que ela preferia, e tanto mais profundamente se comprazia
não só em imitar seus hábitos, mas em adotar suas opiniões, porquanto, como não
tinham nenhuma raiz em sua própria inteligência, apenas lhe lembravam o seu amor,
devido ao qual lhes dera preferência. Se ia duas vezes a Serge Panine,[9] se procurava
ensejo de ouvir Olivier Métra dirigir uma orquestra, era pela doçura de ser iniciado em
todas as concepções de Odette e sentir-se participante de todos os seus gostos. Esse
encanto de o aproximar de Odette, que tinham as obras ou os lugares que ela amava, lhe
parecia mais misterioso que o encanto intrínseco a coisas mais belas, mas que não lhe
lembravam Odette. Tendo aliás deixado enfraquecerem as crenças intelectuais da sua
juventude, e havendo o seu ceticismo de mundano penetrado até elas, sem que o
soubesse, pensava (ou pelo menos o pensara tanto tempo que ainda o dizia) que os
objetos do nosso gosto não possuem em si mesmos um valor absoluto, mas que tudo é
questão de época, de classe, tudo consiste em modas, as mais vulgares das quais valem
tanto como as que passam por mais distintas. E como achava que a importância que
atribuía Odette ao arranjo de um convite para a vernissage não era em si mesma alguma
coisa de mais ridículo que o prazer que ele sentia outrora em almoçar com o príncipe de
Gales, tampouco pensava que a admiração que ela dedicava a Monte Carlo ou ao Righi
fosse mais desarrazoada que o gosto que tinha ele pela Holanda, que ela imaginava feia,
e por Versalhes, que ela achava triste. [10] Abstinha-se, assim, de ir a esses lugares, e
sentia prazer em pensar que o fazia por ela, que apenas com ela queria sentir e amar as
coisas deste mundo.
continua na página 166...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Só ia vê-la de noite - g)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] O termo “visita” refere-se a um casaco curto e skunks, à pele de gambá. No
segundo volume, o herói descobrirá um “croqui” de Odette da mesma época e com o
mesmo traje, descortinando ele próprio todo um período da vida dela que, muito
provavelmente, escapava aos olhos de Swann. Será mais um exemplo da revelação súbita
de “linhas invisíveis” que desenham cenários insuspeitados do “tempo perdido”. [n.
e.]
[2] Composição de Olivier Métra, autor muito admirado por Odette. [n. e.]
[3] O poeta Borelli, três vezes agraciado pela Academia Francesa, aparece como
sinônimo de poesia fácil e de exaltação gratuita já no primeiro “romance” inacabado de
Proust, Jean Santeuil. [n. e.]
[4] A avenida da Imperatriz perde esse nome com a queda do Segundo Império e se
transforma na avenida do Bois, posterior avenida Foch. O “lago” é justamente o do
Bois de Boulogne. O teatro Eden, situado na rua Boudreau, perto da Ópera, era a sala
de espetáculos mais luxuosa de Paris. Já o Hipódromo era um grande circo com pista
oval, podendo receber até 10 mil espectadores. Os “lugares chiques” de Odette eram do
interesse da Terceira República, lugares totalmente fora do Faubourg Saint-Germain,
frequentado por Swann. [n. e.]
[5] Pschutt: neologismo que significa “chique”, “elegante”. [n. e.]
[6] Ópera-cômica de Victor Massé — o narrador citará uma série de obras de menor
valor e hoje esquecidas, sublinhando o mau gosto artístico de Odette e seu apego às
novidades. [n. e.]
[7] A festa das flores acontecia em junho na alameda das Acácias, no Bois de
Boulogne. [n. e.]
[8] Elegante casa de chá à moda inglesa. [n. e.]
[9] Drama de Georges Ohnet envolvendo falsidade, casamento por interesse e
assassinato redentor — mais adiante, a sra. Cottard externará sua admiração pela
intensidade dramática desses ingredientes. [n. e.]
[10] Monte Carlo e Righi aparecem como referências ao turismo de luxo, a Holanda
por sua tradição de pintores, e Versalhes pelo interesse de Swann pela corte de Luís xiv,
já exemplificado por suas leituras das Memórias do duque de Saint-Simon, no início de
“Combray”. [n. e.]
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