domingo, 12 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (3c) - Por que está outra vez a sorrir

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

3.

- Por que está outra vez a sorrir olhando para o retrato de meu pai? - perguntou Rogójin que se pusera a vigiar todos os movimentos e alterações de atitude e de fisionomia do príncipe, tomado de intensa atenção.
- Por que estou sorrindo? É que me veio agora a impressão de que se não fosse essa desgraça, isto é, esse seu amor, você muito provavelmente ficaria como seu pai e isso em tempo muito rápido, é. Você se estabeleceria aqui, sossegadamente, moraria aqui em cima, com uma esposa obediente e submissa. Seria secarrão, pouparia as palavras, não confiaria em ninguém, nem sentiria quaisquer desejos. Não faria mais do que juntar dinheiro, em um sinistro isolamento. No máximo se comprazeria com velhos livros e se interessaria pela maneira por que os “Velhos Crentes” se benzem... Mas isso, é claro, somente já em idade mais madura... 
- Ria-se... Mas, quer saber, ela também disse a mesma coisa. não há muito, quando esteve a olhar para aquele retrato ali. É esquisito que ela e o senhor hajam chegado a dizer a mesma coisa.  
- Como assim? Então ela esteve aqui, em sua casa? - indagou o príncipe, com interesse. 
- Esteve.

     E olhou muito tempo para o retrato e me fez perguntas a respeito de meu pai.
“Serás exatamente como ele foi”, disse a rir. “Tens temperamento apaixonado, Parfión Semiónovitch, paixões temperamentais que dariam contigo na Sibéria se não fosses suficientemente sagaz. Sim, sagaz, lá isso és, e até muito”.
     (Estas foram as palavras dela, textuais. Palavra de honra, foi a primeira e única vez que a vi analisar-me neutramente.)
“Se não fosse isso, se deixasses todas essas tolices, e como não tens instrução quase nenhuma, começarias desde logo a economizar dinheiro e te arranjarias muito bem, conforme se deu com teu pai, com os teus inquilinos da seita dos Skoptzy. Quem sabe até se não te converterias à crença deles? Sim, talvez te convertesses à crença deles e desses em amontoar dinheiro a tal ponto que em vez de dois milhões viesses a ter uns dez milhões até, muito embora morresses de fome entre os sacos de moedas. Sim, pois em tudo és apaixonado. A mínima coisa te leva à paixão”.
     Foi como ela conversou, quase que com estas mesmas palavras. E, antes, jamais me havia falado assim. O senhor sabe, ela não dá confiança de conversar senão trivialidades comigo, só me ridicularizando; e de fato, desta vez, também começou a rir. Sentia-se mal aqui. Andou pela casa toda, prestando atenção em tudo e pareceu assustada, a ponto de eu dizer: “Mudarei tudo isto aqui, transformarei tudo. Ou, se quiseres, compro outra casa antes de nos casarmos”.
“Não, não”, disse ela. “Nada deve ser transformado, moraremos aqui como está. Quero morar com tua mãe, quando eu vier a ser tua esposa”.
     Levei-a até minha mãe. Mostrou-se muito respeitosa diante dela, mais do que se fosse sua própria filha. Há já uns dois anos para cá que minha mãe não está em seu juízo perfeito (está doente) e desde que meu pai morreu, ela virou uma verdadeira criança: não fala, não anda, só sabe inclinar a cabeça para quem lhe aparece. Se a deixassem de alimentar creio até que nem daria conta disso, nem mesmo três dias depois.
     Então peguei na mão direita de minha mãe, dobrei-lhe os dedos. “Mãe, abençoa-a! Ela vai para o altar comigo”.
     Ela beijou então a mão de minha mãe, com sentimento, e me fez este reparo: “Quanto sofrimento não deve ter tua mãe suportado!”
     Depois viu este livro aqui.
“O quê? Começaste então a ler a história russa?”
      (Já certa vez, em Moscou, me dissera: “Não sabes nada. Precisas te instruir. Lê ao menos a História da Rússia de Solovióv”.) 
“Está muito bem. Continua a ler. Vou escrever uma lista de livros que deves ler primeiro. Achas que vale a pena eu fazer essa lista?”
     Sim, antes, nunca me havia falado desta maneira. Fiquei admiradíssimo. Pela primeira vez respirei como um homem que enfim está vivendo!

- Fico muito contente com isso, Parfión - disse o príncipe com sinceridade. - Muito contente mesmo. Quem sabe se depois de tudo Deus não ligará mesmo vocês dois direito?
- Isso nunca se dará! - afirmou Rogójin veementemente.
- Escute, Parfión, desde que você a ama assim, acabará ganhando o respeito dela. Não quer você isso? Se quer, por que não há de ter essa esperança? Eu disse, ainda há pouco, que não podia compreender que ela casasse com você. Mas, mesmo que eu não entenda isso, não tenho dúvidas de que possa ser uma razão suficiente essa questão de sua sensibilidade. Ela está convencida do seu amor e deve acreditar em algumas de suas boas qualidades, também. Nem pode ser diferentemente, e o que você acaba de me contar vem confirmar ainda mais essa minha impressão. Você próprio diz que ela achou um modo de lhe falar e de o tratar, inteiramente diverso daquele a que você está acostumado. Você anda desconfiado e ciumento e é isso que faz com que exagere tudo quanto tem notado erroneamente. Naturalmente ela não pensa tão mal a seu respeito quanto você diz. Se pensasse, seria o mesmo que deixar-se deliberadamente afogar ou degolar. E isso não é possível! Que pessoa existe que deliberadamente se deixe afogar ou degolar?

     Parfión escutava com um sorriso amargo as palavras impetuosas do príncipe. A sua convicção nem assim se abalava.

- Que maneira horrível essa com que está me olhando, Parfión!

     E havia no príncipe um como que sentimento de medo.

- Deixar-se afogar ou degolar! - disse, afinal, Rogójin. -Ah! Ora, é justamente para isso que ela se quer casar comigo! Porque espera ser morta! Então o senhor quer me dizer, Príncipe, que nunca chegou a ter compreensão da raiz de tudo isso?
- Não estou compreendendo você! 
- Bem, talvez não me compreenda mesmo. Eh! Eh! Dizem por aí que o senhor não é lá... muito certo. Ela ama um outro homem. Compreenda bem isto! Assim como eu a amo agora, assim ela ama. agora, um outro homem. E quer o senhor saber quem é esse homem? É o senhor! Como? Não sabia? 
- Eu?
- O senhor! Ela ama-o desde aquele dia do aniversário dela. Só que acha impossível casar-se com o senhor, porque cuida que o desgraçaria e que arruinaria toda a sua vida. “Todo o mundo sabe quem eu sou”, diz ela. E teima nisso. Disse-me uma vez tudo isso direitinho, na minha cara. Ela receia desgraçar e arruinar o senhor. Mas eu, eu não valho nada; comigo ela pode se casar! E para o que eu lhe sirvo! Repare só.
- Mas por que foi, então, que ela fugiu de você para mim.., e de mim...
- E do senhor para mim! Ah! Ora, uma porção de coisas lhe vêm à cabeça. Anda agora sempre com uma espécie de febre. Gritara uma vez: “Quero acabar comigo, caso-me! Marca logo o casamento!” Ela própria apressa as coisas, fixa a data, mas quando o dia se aproxima fica com medo, ou lhe sobrevêm outras ideias! Só Deus sabe! O senhor tem visto. Dá em chorar, em rir, em tremer com febre. E que é que há de estranho em ela ter fugido? Fugiu do senhor naquela ocasião porque percebeu quanto o amava. E não pôde continuar com o senhor. Disse-me, príncipe, ainda agora, que a andei procurando em Moscou. Não é verdade. Foi ela quem veio diretamente para mim, fugida do senhor. “Marca o dia. Estou pronta. Dá-me champanha! Vamos até aos ciganos!”, gritava. Ela já se teria afogado desde muito, se não tivesse a mim. Eis a verdade. Ainda não fez isso porque me acha, decerto, mais terrível do que a água. É por despeito que se vai casar comigo. Se casar comigo garanto-lhe que será por despeito. 
- E como é que você.., como é que você...

     E logo o príncipe se calou, encarando Rogójin com verdadeiro pavor.

- Acabe a frase, vamos! - replicou este último, arreganhando os dentes. - Se quiser, poderei dizer-lhe em que é que está pensando bem neste momento: “Como, depois de tudo isso, pode ela ser sua mulher? Como foi que eu permiti que ela chegasse a isso?” Eu sei que o senhor está pensando nisso.
- Não vim aqui com essa ideia, Parfión. Digo-lhe que não era isso que eu tinha no meu espírito... 
- Pode ser que o senhor não tenha vindo com essa ideia e que nem ela estivesse em seu espírito, mas agora certamente a sua ideia é essa. Tornou-se essa! Ah! Ah! Bem, basta. Por que está o senhor tão confuso? Realmente, o senhor então não sabia? O senhor está mais é me surpreendendo! 
- Tudo isso é ciúme. Tudo isso é doença. Você exagerou tudo isso imensamente - murmurou o príncipe agitadíssimo. - Por que é que está pegando na minha mão?
- Deixe isso quieto - disse Parfión, de modo rápido, tirando da mão do príncipe uma faca que ele pegara de cima da mesa. E a colocou onde estava antes, ao lado do livro.
- Bem que ao vir para Petersburgo eu já previa isto - continuou o príncipe. - Bem que eu não queria vir aqui. Bem que quis esquecer tudo, arrancar tudo do meu coração. Bem, então, adeus! Mas por que se incomoda de eu pegar nisto?

     É que enquanto falava, o príncipe tinha outra vez, de modo distraído, pegado a mesma faca, de cima da mesa, e de novo Rogójin lha tirava da mão e a atirava sobre o móvel. Era uma faca lisa, em forma de punhal, com cabo de chifre e uma lâmina de 3 1/2 verchóki de comprimento e espessura usual. E vendo que o príncipe havia posto um reparo especial na faca por duas vezes lhe ter sido tirada da mão, Rogójin tornou a pegar nela, muito sério, enfiou-a dentro do livro e atirou com este para cima de uma outra mesa.

- Você corta as páginas com ela? - indagou o príncipe, como que maquinalmente, absorvido em profundos pensamentos.
- Sim.
- Mas não é uma faca de jardim? Dessas de podar? 
- É sim. Então não se pode cortar as folhas de um livro com uma faca de jardim?
- Mas é... uma faca quase nova em folha!
- E que tem que seja nova? Não posso comprar uma faca nova? - perguntou Rogójin. 

     E a sua cólera crescia a cada palavra do príncipe. Este estremeceu e encarou bem Rogójin. 

- Arre! Que dois que nós somos!

     Riu de repente, e se levantou. 

- Desculpe-me, irmão, quando fico com a minha cabeça pesada como está agora. é sinal de que a minha doença está querendo voltar... Ando me tornando, ultimamente, muito distraído! É tão ridículo! O que eu lhe queria perguntar era uma coisa bem diferente... esqueci agora. Adeus!...
- Por aí, não - disse Rogójin.
- Tinha esquecido... 
- Por aqui, por aqui! Vou lhe mostrar. 

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