segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Não estava no Prévost - f)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(f) 


     Não estava no Prévost; resolveu procurá-la nos demais restaurantes dos bulevares. Para ganhar tempo, enquanto visitava uns, mandou aos outros o seu cocheiro Rémi (o doge Loredano de Rizzo) que foi em seguida esperar — nada tendo encontrado por si mesmo — no ponto que lhe designara. O carro não vinha e Swann imaginava o próximo instante ao mesmo tempo como aquele em que Rémi lhe diria: “A senhora está ali”, e como o instante em que Rémi lhe diria: “A senhora não estava em nenhum dos cafés”. E, assim, o fim da sua noite se apresentava uno e ao mesmo tempo duplo, precedido pelo encontro de Odette, que aboliria a sua angústia, ou pela forçada renúncia a encontrá-la e a resignação em voltar para casa sem a ter visto.
     Voltou o cocheiro, mas, no momento em que parou diante de Swann, este não lhe disse: “Encontrou a senhora?”, e sim: “Lembre-se amanhã de encomendar lenha, creio que a provisão já está acabando”. Decerto considerava que, se Rémi tivesse encontrado Odette num café onde se achava à sua espera, o fim da noite nefasta estava já anulado porque se iniciava a realização do fim de noite feliz e que portanto não havia pressa em atingir uma felicidade capturada e em lugar seguro, que não mais escaparia. Mas também o fazia por força de inércia; tinha na alma a falta de agilidade que certas pessoas têm no corpo, essas que, no momento de evitar um golpe, de afastar uma chama da roupa, executar um movimento urgente, dão tempo ao tempo, começam por ficar um segundo na posição em que antes se achavam, como para ter um ponto de apoio e tomar impulso. E sem dúvida, se o cocheiro o tivesse interrompido dizendo-lhe: “A senhora está em tal parte”, ele responderia: “Ah!, é verdade… Eu o tinha encarregado de procurá-la… Quem diria?”, e continuaria a falar da provisão de lenha, para lhe ocultar a emoção que sentira e conceder-se tempo de romper com a inquietação e entregar-se à ventura.
     Mas o cocheiro veio dizer-lhe que não a encontrara em parte alguma, e deu a sua opinião, como velho criado:

— Creio que o melhor é voltar para casa.

     Mas a indiferença que Swann facilmente afetava quando Rémi em nada podia alterar a resposta que lhe trazia decaiu agora que o via induzi-lo a renunciar a sua esperança e a sua busca.

— Absolutamente! — exclamou. — Precisamos encontrar essa senhora. É muito importante. Ela ficaria muito aborrecida — trata-se de um negócio — e até ofendida se não me encontrasse.
— Não vejo como essa senhora poderia ficar ofendida — respondeu Rémi —, pois foi ela quem partiu sem esperar pelo senhor, foi ela quem disse que ia ao Prévost e lá não estava. 

     Aliás, começavam a apagar as luzes em toda parte. Sob as árvores dos bulevares, em misteriosa escuridão, erravam os mais raros transeuntes apenas discerníveis. Às vezes, a sombra de uma mulher que se aproximava de Swann, murmurando-lhe uma frase ao ouvido, pedindo-lhe que a levasse consigo, fazia-o estremecer. Ele roçava ansiosamente por todos aqueles corpos obscuros, como se pelo reino das sombras, entre os fantasmas dos mortos, estivesse à procura de Eurídice.[1]  
     De todos os modos de produção do amor, de todos os agentes de disseminação do mal sagrado, um dos mais eficazes é esse grande torvelinho de agitação que às vezes sopra sobre nós. Então a sorte está lançada, e a criatura com quem nesse momento nos comprazemos será a criatura amada. Nem mesmo é necessário que até então nos tenha agradado mais que as outras, ou tanto como as outras. O que era preciso é que nossa inclinação por ela se tornasse exclusiva. E essa condição se realiza quando — no instante em que ela nos faltou — sentimos em nós não o desejo de buscar os prazeres que seu convívio nos proporciona, mas uma necessidade angustiosa, que tem por objeto essa mesma criatura, uma necessidade absurda, que as leis deste mundo tornam impossível de satisfazer e difícil de curar — a necessidade insensata e dolorosa de possuí-la.
     Swann fez-se conduzir aos últimos restaurantes; calma, só a tivera ao encarar a hipótese da felicidade; agora já não ocultava a agitação, o valor que dava àquele encontro e prometeu, em caso de sucesso, uma recompensa ao cocheiro, como se, inspirando-lhe o mesmo desejo que tinha de encontrá-la, pudesse fazer com que Odette, no caso em que já estivesse deitada, se encontrasse no entanto nalgum restaurante do bulevar. Foi até a Maison Dorée, entrou duas vezes no Tortoni, e saía sem havê-la encontrado, do Café Inglês, com ar carrancudo e a grandes passadas, em busca do carro que o esperava na esquina do bulevar dos Italianos, quando topou com uma pessoa que vinha em sentido contrário: era Odette; explicou-lhe ela mais tarde que, não tendo encontrado lugar no Prévost, fora cear na Maison Dorée, num recanto onde ele não a tinha encontrado, e que agora se dirigia para o seu carro.[2]
     Tão inesperado fora para Odette aquele encontro que teve um sobressalto. Quanto a Swann, correra Paris, não porque julgasse possível encontrá-la, mas porque lhe era demasiado cruel renunciar a isso. Mas essa alegria, que sua razão não cessara de julgar irrealizável naquela noite, tanto mais real lhe parecia agora, pois, não havendo ele colaborado com a previsão das verossimilhanças, ela lhe permanecia exterior; não tinha necessidade de tirar de seu espírito, para lhe fornecer — dela mesma é que emanava, ela mesma é que protelava para ele — aquela verdade que irradiava a ponto de dissipar como um sonho o isolamento que ele temera, e sobre a qual apoiava, descansava, sem pensar, o seu feliz encantamento. Assim um viajante, chegado por um belo tempo à margem do Mediterrâneo, incerto da existência dos países que acaba de percorrer, deixa, de preferência a olhar, que a vista se ofusque com os raios que emite para ele o azul luminoso e resistente das águas.
     Subiu no carro de que ela dispunha e disse a seu cocheiro que os seguisse.
     Tinha ela na mão um buquê de catleias e Swann viu, sob o véu de renda que lhe cobria os cabelos, flores dessa mesma orquídea presas a uma egrete de penas de cisne. Trazia sob a mantilha um amplo vestido de veludo negro que, num arrepanhado oblíquo, punha a descoberto o largo triângulo de uma saia de seda branca e deixava ver o mesmo forro de seda branca na abertura do corpinho decotado, onde estavam postas outras catleias. Mal se refizera do susto que Swann lhe causara, quando um obstáculo fez o cavalo desviar-se. Foram violentamente sacudidos, ela lançou um grito e quedou toda palpitante, sem respiração.

— Não é nada, não tenha medo — disse ele.
 
     E segurava-a pelo ombro, apoiando-a contra si para sustê-la; depois disse-lhe:

— Antes de tudo, não me fale, só responda por gestos para não se sufocar ainda mais. Não lhe incomoda que eu endireite as flores do seu decote que se desarranjaram com o choque? Tenho medo que as perca, desejaria introduzi-las mais um pouco. 

     Odette, que não estava habituada a que os homens fizessem tantos rodeios com ela, respondeu a sorrir:

— Não, não me incomoda, absolutamente.

     Mas ele, intimidado com a resposta, e talvez também porque parecera sincero ao valer-se daquele pretexto, ou começando já a crer que o fora, exclamou: 

— Oh!, não, não fale, vai sufocar-se mais, pode responder-me por gestos, eu compreenderei. Sinceramente, não a incomodo? Olhe, há um pouco… penso que foi pólen que se espalhou, permite que o espane com a mão? Não bato muito forte, não estou sendo um pouco brutal? Está sentindo cócegas? Mas é que eu não queria tocar o veludo para não o amarrotar. Mas, veja, na verdade era preciso prendê-las, senão cairiam; e assim, eu mesmo empurrando-as um pouco… Falando sério, não lhe estou sendo desagradável? E se as cheirasse, para ver se é verdade que não têm perfume? Eu nunca o senti. Posso, mesmo?

     Sorrindo, ela ergueu levemente os ombros, como quem diz: “Não seja tolo, bem vê que isso me agrada”. 
     Swann deslizava a outra mão ao longo da face de Odette; ela olhava-o fixamente, com esse ar lânguido e grave que têm as mulheres do mestre florentino com as quais lhe achara semelhança; à flor das pálpebras, brilhantes, rasgados e finos como os daquelas, seus olhos pareciam prestes a destacar-se como duas lágrimas. Ela pendia o pescoço, como o vemos fazerem todas elas, tanto nas cenas pagãs como nos quadros religiosos. E, numa atitude que decerto lhe era habitual, que sabia adequada a tais momentos e que timbrava em não esquecer, ela parecia ter necessidade de todas as suas forças para reter seu rosto, como se uma força invisível o atraísse para Swann. E foi Swann quem, antes que Odette o deixasse tombar, como sem querer, sobre os lábios dele, o reteve um instante, a alguma distância entre ambas as mãos. Queria Swann deixar a seu pensamento o tempo de acorrer, de reconhecer o sonho que tão longamente acariciara e de assistir a sua realização, como uma parenta a quem se chama para compartilhar do sucesso de uma criança a quem ela muito amou. Talvez Swann também fitasse naquele rosto de uma Odette ainda não possuída, e nem mesmo beijada, que via pela última vez, esse olhar com que desejaríamos levar, na hora da partida, uma paisagem que vamos deixar para sempre. 
     Mas era tão tímido com ela que, tendo-a afinal possuído naquela noite, começando por arranjar as suas catleias — ou por medo de parecer que mentira retrospectivamente, ou por falta de audácia para formular uma exigência maior que aquela (e que podia renovar, pois não incomodara Odette da primeira vez) —, nos dias seguintes ele sempre usou do mesmo pretexto. Se ela trazia catleias no peito, Swann dizia: “Que pena! Esta noite as catleias não precisam ser arranjadas; não saíram do lugar, como na outra noite; mas parece-me que esta não está muito direita. Posso ver se elas não cheiram como as outras?”. Ou, então, se ela não as tinha: “Oh!, nada de catleias esta noite? Impossível dedicar-me a meus arranjos”. De sorte que, durante algum tempo, não se modificou a ordem que ele seguira na primeira noite, começando por contatos de dedos e de lábios no colo de Odette, e assim iniciavam sempre as carícias; e muito mais tarde, quando o arranjo ou simulacro de arranjo das catleias já tombara em desuso, a metáfora “fazer catleia”, tornada uma simples expressão que empregavam sem pensar quando queriam referir-se ao ato da posse física (no qual aliás não se possui nada), sobreviveu na sua linguagem, onde ela o comemorava, àquele uso esquecido. E talvez aquela maneira particular de dizer “fazer amor” não significasse exatamente a mesma coisa que seus sinônimos. Por muito farto que se esteja de mulheres, considerando a posse das mais diferentes como sempre a mesma e de antemão conhecida, quando se trata de mulheres muito difíceis — ou que assim julgamos — converte-se a posse em prazer novo, e cremo-nos então obrigados a imaginar que resultou de algum episódio imprevisto de nossas relações com elas, como o arranjo das catleias no caso de Swann. Esperava, a tremer, naquela noite (mas Odette, pensava ele consigo, jamais saberia do seu ardil, se conseguisse enganá-la), que a posse daquela mulher saísse dentre as largas pétalas malvas das catleias; e o prazer que já experimentava e que Odette talvez só tolerasse, pensava, porque não o tinha reconhecido, parecia-lhe, por causa disso — como pareceu ao primeiro homem que o desfrutou entre as flores do paraíso terrestre —, um prazer que não existira até então, que ele procurava criar, um prazer — assim como o nome especial que lhe deu guardou-lhe a marca — inteiramente particular e novo. 
     Agora, todas as noites, quando a levava até em casa, tinha de entrar e muitas vezes ela saía de robe para acompanhá-lo até o carro e beijava-o na frente do cocheiro, dizendo: “Que é que tem? Que me importam os outros?”. Nas noites em que não ia à casa dos Verdurin (coisa mais frequente desde que podia vê-la de outro modo), nas noites cada vez mais raras em que ele ia a alguma reunião mundana, Odette lhe pedia que viesse a sua casa antes de recolher-se, a qualquer hora que fosse. Era primavera, uma primavera seca e gelada. Ao sair da reunião, subia ele a sua vitória, estendia uma coberta sobre as pernas, respondia aos amigos que saíam ao mesmo tempo e o convidavam para ir com eles que não seguia para o mesmo lado, e o cocheiro, sabendo o seu destino, arrancava a trote largo. Os outros se espantavam e, de fato, Swann já não era o mesmo. Não mais recebiam cartas suas em que pedisse para ser apresentado a alguma mulher. Não prestava mais atenção a nenhuma, abstinha-se de ir aos lugares onde se encontravam. Num restaurante, no campo, mantinha uma atitude contrária àquela pela qual, ainda ontem, seria reconhecido e que parecia constituir a sua atitude definitiva. De tal modo uma paixão é, para nós, como um caráter momentâneo e diferente, que substituiu o outro, abolindo os sinais até então invariáveis com que se expressava! Em compensação, o invariável agora era que, onde quer que se achasse, Swann nunca deixava de ir ter com Odette. O trajeto que o separava dela, esse era o que inevitavelmente percorria, e que era como que a própria vertente, irresistível e rápida, da sua vida. A falar verdade, demorando-se às vezes nalguma reunião mundana, preferiria ir diretamente para casa, sem fazer aquele longo desvio e só ver Odette no dia seguinte; mas o próprio fato de sair da sua comodidade a uma hora tão anormal para ir vê-la, de adivinhar que os amigos diziam ao deixá-lo: “Sempre tem que fazer, há decerto alguma mulher que o obriga a ir à sua casa a qualquer hora”, fazia-o sentir que levava a vida dos homens que têm um caso de amor na existência, e que o sacrifício que fazem de sua tranquilidade e de seus interesses a um voluptuoso capricho lhes dá um encantamento interior. Depois, sem que se desse conta, a certeza de que Odette o esperava, de que não estava em outra parte com terceiros, de que ele não se recolheria sem vê-la, neutralizava aquela angústia esquecida mas sempre prestes a renascer que experimentara na noite em que Odette já se havia retirado dos Verdurin, angústia tão apaziguada agora que bem se poderia chamar de felicidade. Talvez a essa angústia devia Swann a importância que Odette tomara para ele. As criaturas nos são de ordinário tão indiferentes que, quando atribuímos a uma delas grandes possibilidades de dor e de alegria, já nos parece pertencer a um outro universo, e cercar-se de poesia, fazendo de nossa vida como que uma vasta e fremente extensão, onde estará mais ou menos próxima de nós. Swann não podia deixar de inquietar-se quando indagava consigo o que Odette se tornaria para ele nos anos vindouros. Às vezes, ao ver, da sua vitória, naquelas belas noites frias, a lua brilhante que expandia a sua claridade entre seus olhos e as ruas desertas, pensava naquela outra face clara e levemente rósea como a da lua, que um dia lhe surgira na alma e desde então projetava sobre o mundo a misteriosa luz dentro da qual ele o contemplava. Se chegava depois da hora em que Odette mandava os criados se recolherem, em vez de chamar ao portão do jardim, ia primeiro à rua paralela para onde dava, entre outras janelas iguais, mas escuras, a janela, a única iluminada, do quarto de Odette, no andar térreo. Batia à vidraça, e ela, prevenida, ia esperá-lo do outro lado, à porta de entrada. Achava aberta sobre o piano alguma das músicas prediletas de Odette: a Valsa das rosas ou Pobre louco de Tagliafico (que, segundo o seu testamento, deviam executar durante o seu enterro),[3] e pedia-lhe para tocar em vez delas a pequena frase da sonata de Vinteuil, embora Odette tocasse muito mal, mas a visão mais bela que nos fica de uma obra é muitas vezes a que se elevou acima dos sons falsos arrancados por dedos inábeis a um piano desafinado. Para Swann, a pequena frase continuava associada ao amor que tinha a Odette. Bem sentia que aquele amor era alguma coisa que não correspondia a nada de exterior, de verificável por outro que não ele; reconhecia que as qualidades de Odette não justificavam que encarecesse tanto os momentos passados em sua companhia. E muitas vezes, quando lhe predominava no espírito a inteligência positiva, desejava ele não mais sacrificar tantos interesses intelectuais e sociais àquele prazer imaginário. Mas a pequena frase, logo que a ouvia, sabia libertar no seu íntimo o espaço a ela necessário, modificando assim as proporções da alma de Swann; ficava-lhe reservada uma margem para um prazer que tampouco correspondia a nenhum objeto exterior e que no entanto, em vez de ser puramente individual como o do amor, impunha-se a Swann como uma realidade superior às coisas concretas. A sede de um desconhecido encanto despertava-a nele aquela frase, mas não lhe trazia nada de preciso para aplacá-la. De sorte que as partes da alma de Swann em que a frase apagara o cuidado dos interesses materiais, as considerações humanas e válidas para todos, tinham ficado vagas e em branco, e ele era livre de ali inscrever o nome de Odette. Depois, ao que a afeição de Odette pudesse ter de um pouco estreito e decepcionante, vinha a frase acrescentar, amalgamar a sua essência misteriosa. A julgar pela fisionomia de Swann enquanto escutava a frase, dir-se-ia que estava ele absorvendo um anestésico que lhe dava maior amplitude à respiração. E o prazer que lhe dava a música e que em breve ia criar nele uma verdadeira necessidade, assemelhava-se com efeito, em tais momentos, ao prazer que sentiria ao experimentar perfumes, ao entrar em contato com um mundo para o qual não fomos feitos, que nos parece sem forma porque nossos olhos não o percebem, sem significado porque escapa à nossa inteligência, e nós só o atingimos por um único sentido. Que grande repouso, que misteriosa renovação para Swann — ele cujos olhos, embora delicados amadores de pintura, cujo espírito, embora fino observador de costumes, carregavam para sempre a marca indelével da secura de sua vida — sentir-se assim transformado numa criatura estranha à humanidade, desprovida de faculdades lógicas, quase um fantástico licorne, uma criatura quimérica que percebia o mundo apenas pelo ouvido. E como na pequena frase, entretanto, procurava um sentido a que sua inteligência não podia descer, que estranha embriaguez sentia em despojar o mais íntimo de sua alma de todos os recursos do raciocínio e fazê-la passar sozinha pelo filtro obscuro do som! Começava a dar-se conta de tudo o que havia de doloroso, talvez mesmo de secretamente intranquilo no fundo da doçura da frase, mas não sofria. Que importa que ela lhe dissesse que o amor é frágil, se o seu era tão forte? Entretinha-se com a tristeza que ela expandia, sentia-a passar sobre si, mas como uma carícia que tornava mais profundo e suave o sentimento que tinha de sua felicidade. Fazia Odette tocá-la dez, vinte vezes, exigindo ao mesmo tempo que não cessasse de beijá-lo. Cada beijo chama um outro beijo. Ah!, nos primeiros tempos do amor, nascem tão naturalmente os beijos! Acorrem, apertando-se uns contra os outros; e ter-se-ia tanta dificuldade em contar os beijos dados numa hora como as flores de um campo no mês de maio. Então ela fazia menção de parar, dizendo: “Como queres que eu toque, se me seguras? Não posso fazer tudo ao mesmo tempo. Trata ao menos de saber o que queres: que eu toque ou te faça carinhos?”. Ele incomodava-se e ela explodia num riso que se transformava e retombava sobre ele numa chuva de beijos. Ou então olhava-o com um ar sério e ele revia um rosto digno de figurar na Vida de Moisés de Botticelli, onde o situava, dando ao pescoço de Odette a inclinação necessária; e depois de a ter pintado assim a têmpera, no século XV, sobre a parede da Capela Sistina, a ideia de que ela no entanto continuava ali, perto do piano, no momento atual, prestes a ser beijada e possuída, a ideia de sua materialidade e sua vida vinha embriagá-lo com tal força que, com o olhar extraviado, as mandíbulas estendidas como para devorar, precipitava-se sobre aquela virgem de Botticelli e punha-se a beliscar-lhe as faces.[4] Depois, quando a deixava, não sem ter voltado para beijá-la ainda, porque havia esquecido de levar na lembrança alguma particularidade de seu odor ou de seus traços, regressava na vitória, abençoando Odette por lhe permitir aquelas visitas cotidianas, que decerto não deviam constituir grande alegria para ela, mas que, preservando-o do ciúme — tirando-lhe o ensejo de sofrer novamente do mal que se declarara na noite em que não a tinha encontrado nos Verdurin —, o auxiliariam a chegar, sem mais crises como aquela primeira que fora tão dolorosa e permaneceria a única, ao fim daquelas horas singulares da sua vida, horas quase encantadas, à feição daquelas em que atravessava Paris ao luar. E observando, na volta, que o astro se achava deslocado em relação a ele, quase nos confins do horizonte, sentindo que o seu amor também obedecia a leis imutáveis e naturais, perguntava a si mesmo se aquele período em que entrara ainda duraria muito tempo, se em breve o seu pensamento não iria ver a querida face ocupando apenas uma posição longínqua e diminuída, e prestes a deixar de expandir o seu encanto. Pois desde que se enamorara, Swann achava encanto nas coisas, como nos tempos de adolescente, em que se julgava artista; mas agora não era o mesmo encanto, este era só Odette que o conferia às coisas. Sentia renascerem dentro de si as inspirações da juventude que uma vida frívola dissipara, mas traziam todas o reflexo, a marca de um ser particular; e nas longas horas que sentia agora um delicado prazer em passar em casa, a sós com sua alma em convalescença, Swann pouco a pouco voltava a ser o que era, mas com uma outra alma. 

continua na página 161...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Não estava no Prévost - f)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] Comparação a Orfeu, que vai aos Infernos em busca da amada Eurídice. Importante notar que ele não conseguirá trazer a amada de volta. [n. e.]
[2] Ou seja: na versão de Odette, ela estava em um lugar em que ele podia muito bem tê-la encontrado — a Maison Dorée, restaurante de onde partira aquela primeira carta dela para ele. A graça das referências espaciais fica por conta do suposto lugar de origem de Odette, o Café Prévost: é o único dos quatro estabelecimentos nomeados que não ficava na mesma esquina. Porque, tanto a Maison Dorée quanto o Café Inglês e o Café Tortoni ficavam um de frente para o outro, na esquina do bulevar dos Italianos com as ruas Lafitte, Taitbout e Marivaux. O ponto de fuga desse triângulo era o Café Prévost, que ficava na rua de Clichy. [n. e.]
[3] A Valsa das rosas era composição de Olivier Métra, diretor dos bailes do Châtelet (1867), da orquestra das Folies Bergère (1872) e dos bailes da Opéra (1878). Tagliafico era barítono, empresário e compositor italiano. [n. e.]
[4] Charles Swann é o eterno idólatra da vida, aquele que nunca conseguirá levar a sério a arte. [n. e.]

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