Germinal
Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Segunda Parte
IV
.Quando Maheu voltou, depois de haver deixado Etienne na casa de Rasseneur, encontrou Catherine, Zacharie e Jeanlin à mesa acabando de tomar a sopa. Voltando da mina, a fome era tanta que comiam com roupa molhada e antes mesmo de se lavarem; e ninguém fazia cerimônia, a mesa permanecia posta da manhã à noite, sempre havia alguém sentado comendo sua ração, segundo as exigências do trabalho.
Da porta, Maheu vislumbrou as compras; não disse nada, mas seu
semblante iluminou-se. Durante toda a manhã, o vazio do guarda-comida, a
casa sem café e sem manteiga mantiveram-no preocupado, voltaram à sua
cabeça em ondas dolorosas enquanto cavava no veio, sufocado no fundo da
jazida. Como teria ela conseguido tudo aquilo? E que seria deles se ela
tivesse voltado para casa de mãos vazias? Ah, felizmente havia de tudo! Riu
de satisfação.
Catherine e Jeanlin já tinham acabado e bebiam seu café em pé, ao
passo que Zacharie, não satisfeito com a sopa, cortava uma grossa fatia de
pão e besuntava-a de manteiga. Viu o Chouriço num prato, mas não o
tocou: a carne, quando havia, era só para um, o pai. Todos terminavam a
refeição com um enorme copo de água fresca, em substituição à boa
aguardente dos fins de quinzena.
— Não tenho cerveja — disse a mulher, quando o marido sentou à
mesa. — Quis economizar um pouco... Mas, se estás com vontade, a
menina pode ir correndo buscar um litro.
Ele olhou-a assombrado. O quê? Também tinha dinheiro!
— Não, não — disse ele. — Já bebi um copo, chega.
E pôs-se a comer vagarosamente a mistura de pão, batatas, alho e
cebola disposta na gamela que lhe servia de prato. A mulher, sem largar
Estelle, inspecionava o trabalho de Alzire para que não faltasse nada,
empurrava para perto dele a manteiga e o queijo, punha novamente no fogo
seu café, para mantê-lo aquecido.
Ao mesmo tempo, ao lado do fogão, começava o banho, num tonei
cortado ao meio e que servia de tina. Catherine, que era a primeira a lavar
se, encheu-a de água tépida e começou a despir-se tranquilamente: tirou a
coifa, a jaqueta, as calças e a camisa, acostumada a isso desde os oito anos,
tendo crescido sem ver mal naquilo. Apenas se voltou de frente para o fogo
e começou a esfregar-se vigorosamente com sabão preto. Ninguém a
olhava; nem mesmo Lénore e Henri tinham mais curiosidade em ver como
ela era. Acabado o banho, subiu nua a escada, deixando a camisa molhada e
as outras peças do vestuário num monte no chão.
Em seguida, os dois irmãos começaram a discutir: Jeanlin correra
para entrar na tina, a pretexto de que Zacharie ainda estava comendo; este
empurrou-o, dizendo ser a sua vez, e que, se era bastante bondoso para
permitir que Catherine tomasse seu banho em primeiro lugar, não queria
lavar-se no resto de meninos sujos, tanto mais que água de banho daquele
ali só serviria depois para encher os tinteiros da escola. Terminaram por
lavar-se juntos, igualmente de frente para o fogo e até ajudando-se, um
esfregando as costas do outro. Depois, como a irmã, subiram nus a escada.
— Que sujeira fazem! — murmurou a mãe, apanhando as roupas do
chão para pô-las a secar. — Alzire, seca o chão, sim?
Uma algazarra do outro lado da parede cortou-lhe a palavra. Eram
pragas de homem, choro de mulher, um barulhão de briga, com pancadas
surdas que soavam como quedas de cabeças vazias.
— A mulher do Levaque está recebendo a sua dose — constatou
calmamente Maheu, que rapava o fundo da gamela com a colher. —
Engraçado, Bouteloup garantiu que a sopa estava pronta.
— Pronta! Essa não... — respondeu a mulher. — Eu vi os legumes
em cima da mesa; nem descascados estavam.
Os gritos eram cada vez mais fortes; houve um encontrão tão
violento que estremeceu a parede; em seguida voltou o silêncio. O mineiro,
então, engolindo sua última colherada, concluiu com ar justo e calmo:
— Se a sopa não estava pronta, bem fez ele.
E depois de beber um copo cheio de água, passou ao Chouriço;
cortava-o em pedacinhos, espetava-os com a ponta da faca e ia comendo,
depois de colocá-los sobre o pão, sem garfo. Enquanto o pai comia,
ninguém falava; ele mesmo guardava silêncio, degustando o Chouriço, no
qual não encontrava o sabor característico do de Maigrat. Sim, devia ter
vindo de outro lugar... Mas assim mesmo não interrogou a mulher a esse
respeito. Perguntou-lhe apenas se o velho ainda estava dormindo. Não, o
avô já tinha saído para o passeio habitual. E o silêncio baixou novamente
sobre a sala.
O cheiro da carne açulara o olfato de Lénore e Henri, que se
divertiam fazendo córregos no chão com a água derramada. Ambos foram
para perto do pai, o menor na frente. Seguiam com os olhos cada pedaço;
cheios de esperança, viam-nos partir do prato e, consternados, assistiam ao
desaparecimento deles na boca do pai. Finalmente, o homem notou o desejo
voraz que chegava a torná-los pálidos e lhes punha água na boca.
— As crianças já comeram disto? — perguntou. E como a mulher
hesitasse:
— Sabes bem que não gosto dessas injustiças. Tira-me o apetite vê-los ao meu redor, mendigando um pedaço.
— Mas claro que já comeram! — exclamou ela, encolerizada.
— Se começas a apiedar-te acabas dando o que te toca e mais a
parte dos outros, e eles comerão até estourar. Alzire! Não é verdade que
todos nós já comemos Chouriço?
— É, sim, mamãe — respondeu a corcundinha, que naqueles casos
mentia com a desfaçatez de um adulto.
Lénore e Henri permaneceram imóveis, surpresos, revoltados ante
tal mentira, eles, que eram açoitados quando não diziam a verdade. Com a
revolta no coração, sentiram uma enorme vontade de protestar, de dizer que
não estavam presentes quando os outros tinham comido.
— Vamos, saiam já daqui — gritou a mãe, enxotando-os para o
outro extremo da peça. — Deveriam ter vergonha de estar sempre querendo
a comida do seu pai. E se fosse só ele a comer, não seria justo? Não é ele
quem trabalha? Vocês não passam de dois inúteis que fazem despesas e
estão cada vez mais gordos!
Maheu chamou-os de volta, sentou Lénore na sua perna esquerda e
Henri na direita e acabou o Chouriço repartindo-o em pedacinhos com as
crianças, que o devoraram deliciadas. Ao terminar, disse à mulher:
— Não, não quero o café agora, vou lavar-me primeiro... Ajuda-me
a despejar esta água suja.
Agarraram a tina pelas alças e despejavam-na na sarjeta em frente à
porta quando jeanlin desceu vestindo roupas secas: umas calças e uma blusa
de lã enormes, da medida do irmão. Vendo-o escapar sorrateiramente pela
porta aberta, a mãe chamou-o.
— Aonde vais?
— Ali...
— Ali, aonde? Tu vais é colher um molho de dente-de-leão para a
salada da ceia, ouviste? Se não trouxeres a verdura, vais arranjar-te comigo.
— Está bem, está bem!
Jeanlin partiu de mãos nos bolsos, arrastando os tamancos,
gingando o traseiro magro de subnutrido de dez anos, mais parecendo um
velho mineiro. Zacharie desceu por sua vez, mas mais bem cuidado,
vestindo um suéter de malha de lã preta listrado de azul. Seu pai gritou-lhe
que não voltasse tarde e ele saiu balançando a cabeça, de cachimbo na boca,
sem responder.
A tina foi outra vez cheia de água morna. Maheu começou a tirar
lentamente a jaqueta. A um olhar deste, Alzire levou Lénore e Henri para
brincar na rua. O homem não gostava de se lavar diante da família, como
era a prática em muitas casas do conjunto habitacional. Aliás, ele não
censurava ninguém, dizia apenas que tomar banho na frente dos outros só
era admissível para crianças.
— Que é que estás fazendo aí em cima? — gritou a mulher junto da
escada.
— Estou remendando meu vestido, que se rasgou ontem —
respondeu Catherine.
— Pois fica aí, não desce, teu pai está-se lavando.
continua na página 95...
____________________
Segunda Parte - (IV.a) Quando Maheu voltou
____________________
O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário