quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Émile Zola - Germinal: Segunda Parte - (III.a) Deram onze horas na igrejinha

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Segunda Parte

III
 .

      Deram onze horas na igrejinha do conjunto habitacional dos Deux Cent-Quarante, uma capela de tijolos onde o Padre Joire dizia missa aos domingos. Ao lado, na escola também de tijolos, ouviam-se as vozes balbuciantes das crianças, apesar das janelas fechadas por causa do frio do exterior. As ruas largas, divididas por pequenos jardins enfileirados, estavam desertas no perímetro dos quatro grandes quarteirões de casas uniformes; e esses jardins assolados pelo inverno expunham a tristeza de sua terra argilosa, que crestava e sujava os derradeiros legumes. Preparava se a sopa, as chaminés fumegavam, uma ou outra mulher surgia de repente ao longo das fachadas, abria uma porta e desaparecia. De um extremo ao outro da calçada, as calhas dos telhados pingavam nos tonéis, se bem que não chovesse, tanta umidade havia na atmosfera. E esse lugarejo, edificado de uma só vez no meio do vasto planalto, rodeado de estradas negras como tarjas de luto, não tinha outro enfeite além do franjado regular de suas telhas vermelhas, constantemente lavadas pelas chuvas.
     Voltando para casa, a mulher de Maheu fez um desvio para ir comprar batatas à esposa de um fiscal que ainda as tinha de sua colheita. Por trás de um horizonte de choupos mirrados, únicas árvores possíveis naqueles terrenos planos, havia um grupo de construções isoladas, com diversos lotes de quatro casas rodeadas de jardins. E, como a companhia reservara esse novo plano habitacional para os contramestres, os operários apelidaram esse recanto do povoado de conjunto habitacional dos Bas-de Soie {4}, assim como chamavam a aglomeração que lhes tocava de Paie-tes Dettes {5}, numa ironia bem-humorada para com a sua própria miséria.

— Ufa! até que enfim chegamos! — exclamou a mulher de Maheu, carregada de embrulhos, empurrando para dentro de casa Lénore e Henri, enlameados e cambaleantes.

     Diante do fogo, Estelle berrava, embalada nos braços de Alzire. Esta, tendo acabado o açúcar e não sabendo mais como fazê-la calar, decidira fingir que lhe dava de mamar. Esse simulacro costumava surtir efeito, mas desta vez, por mais que abrisse o vestido e lhe colasse a boca ao seu seio descarnado de enferma de oito anos, só conseguia enfurecer a criança, cansada de morder aquele peito seco.

 — Vamos, dá-me — gritou a mãe logo que se viu livre dos embrulhos. — De outra forma ela não nos deixará falar.

     Assim que puxou para fora do corpete um peito pesado como um odre e que a gritona se pendurou ao bico, subitamente emudecida, puderam enfim conversar. Tudo ia bem, a pequena dona-de-casa tinha alimentado o fogo, varrido, arrumado a sala. E no silêncio ouvia-se o roncar do avô no andar de cima, o mesmo ressonar compassado que não parara um instante. 

— Ah, quanta coisa! — murmurou Alzire, sorrindo para as provisões. — Se queres, mamãe, eu faço a sopa.

     A mesa estava cheia: um embrulho de roupas, dois pães, batatas, manteiga, café, chicória e meia libra de torresmos.

— Ai, a sopa! — disse a mulher, exausta. — E preciso ainda ir colher cebola e alho... Mas não, faço depois a sopa dos homens... Põe agora a cozer umas batatas, nós as comeremos com um pouco de manteiga. E café, hem? Não esqueças o café.

     De repente, lembrou-se do bolo; olhou para as mãos vazias de Lénore e Henri, a lutarem no chão, já descansados e bem dispostos. Será que esses comilões tinham devorado sorrateiramente o bolo pelo caminho? Deu-lhes alguns safanões, enquanto Alzire, que punha a panela no fogo, tentava acalmá-la. 

— Não tem importância, mamãe, se é por mim. Não ligo para bolos, tu sabes. Eles sentiram fome com a caminhada.

     Deu meio-dia; ouviram-se os tamancos das crianças que saíam da escola. As batatas estavam cozidas e o café, engrossado com uma boa quantidade de chicória, passava no coador com um ruído cantante de gotas grossas. Limparam uma ponta da mesa, onde só a mãe comeu, enquanto as três crianças ficaram no seu colo; o menino, que era de uma voracidade muda, olhava sem dizer nada para o torresmo, cujo papel engordurado o excitava.
     A mulher de Maheu tomou seu café aos golinhos, com ambas as mãos em volta do copo, para aquecê-las. Nesse momento, desceu o velho Boa-Morte; geralmente levantava-se mais tarde, encontrando sempre o almoço no fogão. Nesse dia pôs-se a resmungar porque não havia sopa. Depois, quando sua nora lhe disse que nem todos os dias se comia o prato preferido, devorou as batatas em silêncio. De vez em quando levantava-se para ir cuspir nas cinzas, por asseio; e voltava a encolher-se na sua cadeira para remoer vagarosamente a comida, de cabeça baixa e olhar ausente. 

— Ah, ia esquecendo! Mamãe, a vizinha esteve aqui — disse Alzire.

      A mãe interrompeu-a: 

— Aquela chata!

      Era um rancor surdo contra a mulher de Levaque, que viera, na véspera, chorar suas misérias só para não lhe emprestar nada. E ela sabia muito bem que a outra tinha dinheiro na ocasião, porque o seu inquilino, Bouteloup, pagara adiantado a quinzena. Nesse conjunto habitacional era assim, quase nada se emprestava de casa para casa. 

— Agora me lembro... — continuou a mãe — estou devendo café desde anteontem à mulher do Pierron. Embrulha um pouco, que vou levá-lo.

     Apanhando o embrulho feito pela filha, disse que já voltava para preparar a sopa dos homens. Saiu com Estelle nos braços, deixando o velho Boa-Morte a mastigar lentamente suas batatas, enquanto Lénore e Henri se engalfinhavam para comer as cascas caídas no chão.
     A mulher, em vez de dar a volta, atravessou pelos jardins, para evitar a vizinha, que aborrecia. O jardim dela era continuação do dos Pierron, e havia, na velha cerca que os separava, um buraco por onde passavam quando se visitavam. Era ali o poço comum de que se serviam quatro famílias. Ao lado, por trás de um pé de lilás quase murcho, elevava se um galpão baixo cheio de ferramentas velhas e onde eram criados, um a um, os coelhos para serem comidos nos dias de festa.
     Bateu uma hora: era a hora do café, não se via viv‘alma nas portas ou janelas; apenas um operário do desaterro, esperando a hora da descida, capinava sua pequena horta sem levantar a cabeça. Quando a mulher atravessou a rua e se encontrou em frente às casas do outro quarteirão, ficou surpreendida de ver aparecer junto à igreja um homem acompanhado de duas senhoras. Estacou um segundo e reconheceu-os: era a Sra. Hennebeau, que mostrava o conjunto habitacional dos mineiros aos seus convidados, o homem condecorado e a senhora de capa de peles. 

— Ora, não precisava incomodar-se! — exclamou a mulher de Pierron quando a outra lhe devolveu o café. — Não tinha pressa...

      Tinha vinte e oito anos, passava por ser a mulher mais bonita do conjunto habitacional: morena, testa pequena, olhos grandes e boca bem feita; muito elegante, andava sempre limpa como uma gata; os seios continuavam belos, porque não tinha tido filhos. Sua mãe, a Queimada, viúva de um britador que morrera na mina, após ter posto a filha a trabalhar numa fábrica, jurando que esta jamais casaria com um mineiro, ficara furiosa ao vê-la casada tardiamente com Pierron, que ainda por cima era viúvo e tinha uma filha de oito anos. O casamento, no entanto, dera certo, e o casal vivia feliz, apesar dos mexericos e das histórias que corriam a respeito da complacência do marido e dos amantes da mulher; nenhuma dívida, carne duas vezes por semana, uma casa tão limpa que as caçarolas poderiam servir de espelho. Para cúmulo da sorte, graças a algumas proteções, a companhia autorizara-a a vender doces e biscoitos, que ela expunha em frascos sobre duas tábuas por trás dos vidros da janela. Com isso ganhava seis ou sete soldos por dia, às vezes doze, aos domingos. A única discrepância nessa felicidade toda era a mãe, a Queimada, que vivia berrando na sua fúria de velha revolucionária, que tinha de vingar a morte do seu homem, pela qual os patrões eram os responsáveis. Quem perdia com tudo isso era a filha de Pierron, a pequena Lydie, que recebia frequentes bofetadas dessa família enérgica. 

— Como está gorda! — exclamou a mulher de Pierron, brincando com Estelle. 
— A trabalheira que isso dá, nem te digo! — respondeu a outra. — Considera-te feliz de não Teles... Pelo menos podes andar limpa.

      Embora na casa dela tudo andasse em ordem, e mesmo a lavasse todos os sábados, não podia deixar de olhar com inveja aquela sala tão clara e jeitosa, onde havia até vasos dourados sobre o guarda-comida, um espelho, três gravuras emolduradas.
     A mulher de Pierron tomava café sozinha; toda a sua família estava na mina. 

— Vais tomar um copo comigo — disse ela. 
— Não, obrigada, acabo de beber o meu. 
— Não tem importância, toma outro.

     Realmente, não tinha importância; e ambas se puseram a beber lentamente. Por entre os frascos de biscoitos e doces, seus olhares pousaram nas casas da frente, com suas janelas de cortinas, cuja maior ou menor alvura falava das virtudes das suas respectivas proprietárias. As cortinas dos Levaque estavam imundas, verdadeiros esfregões, parecia terem servido para limpar o fundo das panelas. 

— Como é possível viver com tal sujeira! — murmurou a mulher de Pierron.

     A outra, então, começou a falar e não parou mais. Ah! Se ela tivesse um inquilino como esse Bouteloup, veriam como andaria limpa a sua casa! Para quem sabia fazer as coisas, um hóspede era um negócio excelente; mas nada de dormir com ele, isso não. Mas aqueles... O marido bebia, batia na mulher, vivia atrás das cantoras dos cafés-concerto de Montsou... 
     A mulher de Pierron fez um gesto de nojo. Essas cantoras transmitiam todas as doenças. Em Joiselle havia uma que tinha contaminado os mineiros de uma galeria inteira. 

— O que me espanta é que tenhas deixado teu filho andar com a filha deles. 
— Ora! E como impedir? O jardim deles é ligado ao nosso; no verão, Zacharie levava a Philomène para trás dos lilases, e faziam de tudo no galpão sem se incomodar com a gente; não se podia tirar água no poço sem tropeçar neles.

     Era a história comum das promiscuidades do conjunto habitacional, rapazes e moças apodrecendo juntos, jogando-se de costas, como eles diziam, sob o teto baixo e em declive do galpão, assim que anoitecia. Todas as operadoras de vagonetes geravam ali o primeiro filho, quando não se davam ao trabalho de ir fazê-lo em Réquillart ou nos trigais. Mas isso não era considerado uma catástrofe, casavam-se depois; as mães zangavam-se quando os rapazes começavam muito cedo, já que um filho casado deixava de trazer dinheiro para a família. 

— No teu lugar, poria fim nisso — continuou ajuizadamente a mulher de Pierron. — O teu Zacharie já a embarrigou duas vezes e vão acabar amigando-se... Bem, de qualquer maneira, o dinheiro está perdido.

     A outra mulher fez um gesto furioso com as mãos. 

— Escuta, eu amaldiçoo os dois se eles se amigarem. Então Zacharie não nos deve respeito? E custou-nos dinheiro, não foi? Pois então, que nos pague o que deve antes de se grudar a uma mulher... O que seria de nós se nossos filhos, mal começando a trabalhar, tivessem de sustentar os outros? Ah! melhor seria morrer!

     Depois dessa explosão, acalmou-se. 

— Falo de modo geral, mais tarde é que se verá... O teu café está realmente forte, pões a dose exata.

     E, após mais um quarto de hora de novas histórias, levantou-se e saiu correndo, gritando que a sopa dos homens ainda não estava feita. Encontrou na rua as crianças que retornavam à escola; algumas mulheres estavam paradas nas soleiras das portas, vendo a Sra. Hennebeau, que caminhava ao longo de um dos blocos de casas, mostrando o conjunto habitacional a seus convidados. Essa visita começava a abalar a pacatez do lugarejo. O homem do desaterro parou de capinar por um momento, duas galinhas assustadas correram pelos jardins.

continua na página 89...
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Segunda Parte - (III.a) Deram onze horas na igrejinha
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
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{4}Bas-de-Soie: meias de seda. (N. do E.).
{5}Paie-tes-Dettes: pague suas dívidas. (N. do E.).

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