em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
continuando...
Apesar de tudo, bem diversas nisto daquilo que eu pudera sentir diante dos espinheiros alvares ou degustando uma madeleine, as histórias que ouvira na casa da duquesa eram-me estranhas. Tendo penetrado no instante em mim, que só fisicamente era possuído por elas, ter-se ia que (de natureza social e não individual) estavam impacientes por sair, me agitava no carro, como uma pitonisa. Esperava um novo jantar em que pudesse tornar-me uma espécie de príncipe X, da Sra. de Guermantes, recontá-las. Enquanto esperava, elas faziam trepidar meus lábios, que balbuciavam, e em vão tentava recobrar meu espírito vertiginosamente arrastado por uma força centrífuga. Foi assim, com a febril impaciência não carregar por mais tempo o seu peso, solitário num carro, onde ali compensava a falta de conversação falando em voz bem alta, que toquei campainha da porta do Sr. de Charlus, e foi em longos monólogos comigo mesmo, onde repetia me tudo o que iria lhe contar e já não pensava no que podia ele ter a me dizer, que passei o tempo todo que permanecendo num salão aonde me conduzira um lacaio, e que, de qualquer modo, estava agitado demais para observar. Sentia uma tal necessidade de que o Sr. Charlus escutasse os relatos que eu ardia por lhe contar, que fiquei cruelmente decepcionado ao pensar que o dono da casa talvez dormisse e que me seria necessário voltar a cozer no meu quarto minha embriaguez de palavras. Com efeito, acabava de verificar que fazia vinte e cinco minutos que ali estava, que talvez me houvessem esquecido naquele salão, do qual, não obstante a longa espera, podia pelo menos dizer que era imenso, verdoengo, com alguns retratos. A necessidade de falar não impede apenas de escutar, mas de ver; e, nesse caso, a ausência de toda descrição do meio exterior já é uma descrição de um estado interno. Ia sair do salão para tentar chamar alguém e, se não encontrasse pessoa alguma, refazer o caminho até as antecâmaras e mandar que me abrissem a porta, quando, no momento mesmo em que acabara de me erguer e dar alguns passos no chão de mosaico, surgiu um lacaio com ar preocupado:
- O Sr. barão teve encontros até agora – disse-me - Ainda há várias pessoas que o
aguardam. Vou fazer todo o possível para que receba o senhor. Já mandei telefonar duas vezes
ao secretário.
- Não, não se incomode, tinha um encontro com o Sr. barão, mas já é muito tarde e, desde
que está ocupado esta noite, voltarei outro dia.
- Oh! não se vá senhor! - exclamou o criado. - O senhor barão poderia ficar descontente.
Vou tentar de novo.
Lembrei-me do que ouvira contar acerca dos criados do Sr. de Charlus e de seu
devotamento ao patrão. Não se podia dizer dele exatamente como o príncipe de Conti, que
procurava agradar tanto ao criado como ao ministro, mas de tal modo soubera fazer das menores
coisas que pedia uma espécie de favor que, à noite, reunidos os criados a seu redor a uma
respeitosa distância, depois de havê-los percorrido com o olhar, dizia: "Coignet, o castiçal!" ou:
"Ducret, a camisa!", e era com resmungos de inveja que os outros se retiravam, enciumados
daquele que acabava de ser distinguido pelo patrão. Até dois deles, que se detestavam, cuidavam
cada qual de retirar o favor ao outro, indo sob o pretexto mais absurdo, dar recados ao barão, se
este subira mais cedo, na esperança de ser incumbido aquela noite de levar o castiçal ou a
camisa de dormir. Se o barão dirigia diretamente a palavra a um deles sobre qualquer coisa que
não se relacionasse com o serviço, mais ainda, se, durante o inverno, no jardim, sabendo que um
dos cocheiros estava gripado, lhe dizia ao cabo de dez minutos: "Cubra-se!", os outros ficavam
quinze dias sem falar ao doente, por ciúme, devido à graça que lhe fora concedida.
Ainda esperei dez minutos e, depois de me pedirem que não demorasse muito porque o
Sr. barão, cansado, precisara mandar embora diversas pessoas importantes, que haviam
marcado encontro há longo tempo introduziram-me à sua presença. Tal encenação em torno ao
Sr. de Charlus, me parecia ter muito menos grandeza que a simplicidade de seu irmão
Guermantes, mas a porta já estava aberta, e eu acabava de ver o barão de chambre chinês, colo
desnudo, estendido num canapé. Impressionou-me, no mesmo instante a vista de uma cartola
huit-reflets sobre uma cadeira, e uma peliça, como se o barão tivesse acabado de chegar. O
lacaio se retirou. Julguei que o Sr. de Charlus viesse ao meu encontro. Sem fazer um; movimento,
fixou em mim o olhar implacável. Aproximei-me dele e o cumprimentei não me estendeu a mão,
não me correspondeu, nem me disse que pegasse uma cadeira. Ao fim de um momento
perguntei-lhe, como se faria um médico mal-educado, se era necessário que eu ficasse de pé.
Falei sem má intenção, mas o ar de cólera fria do Sr. de Charlus pareceu agravar-se mais ainda.
Eu ignorava, aliás, que na sua casa de campo, no castelo de Charlus, ele tinha o hábito de, após
o jantar de tanto que gostava de se fazer de rei; instalar-se numa poltrona no fumoir, deixando os
convidados de pé a seu redor. Pedia o fogo a um, a outro oferecia um charuto e após alguns
instantes, dizia:
- Mas d'Argencourt, sente-se, pegue uma cadeira meu caro, etc. -, tendo feito questão de
prolongar o tempo deles em pé apenas para lhes mostrar que era dele que emanava a permissão
de se sentarem. - Sente-se na poltrona Luís XIV - respondeu-me com ar imperioso e mais para
me obrigar a afastar-me dele que como um convite para que me sentasse. Peguei uma poltrona
que não se achava distante. - Ah! Eis o que o senhor chama uma poltrona Luís XIV! Vejo que é
um rapaz instruído exclamou com escárnio.
Eu estava de tal modo estupefato que não me mexi, nem para ir embora, como deveria,
nem para mudar de assento como ele desejava.
- Senhor - disse-me ele, pesando todas as palavras e fazendo preceder as mais
impertinentes de um duplo par de consoantes a entrevista que condescendi em lhe dar, a
instâncias de uma pessoa quer deseja ou não ser nomeada, há de marcar coisa melhor; talvez
forçasse um pouco o sentido dos vocábulos, o que não se deve fazer, mesmo que ignore o seu
valor, e pelo simples respeito por si mesmo, ao lhe dizer que sentirei simpatia pelo senhor.
Entretanto, creio que "benevolência", no seu sentido mais eficazmente protetor, não excederia
nem o que eu sentia nem o que me propunha a manifestar. - Desde meu regresso a Paris, eu lhe
fizera saber: mesmo em Balbec, que o senhor podia contar comigo. - Eu, que me lembrava com
que despropósito o Sr. de Charlus se separara de mim em Balbec esbocei um gesto de recusa. -
Como? - gritou ele encolerizado (e na verdade o seu rosto convulso e branco diferia tanto de sua
fisionomia ordinária como o mar, quando, numa manhã de tempestade, percebemos, em vez da
sorridente superfície habitual, mil serpentes de baba e de espuma) - O senhor afirma que não
recebeu minha mensagem (quase uma declaração) para ter de se lembrar de mim? Que havia
como decoração em torno ao livro que lhe fiz chegar às mãos?
- Uns entrelaçamentos historiados muito bonitos - disse-lhe.
- Ah! - respondeu ele com ar de desprezo - os jovens franceses conhecem pouco as obras
primas de nosso país. Que se diria de um jovem berlinense que não conhecesse A Valquíria?
Aliás, é preciso que o senhor tenha mesmo olhos de não ver, pois me disse que havia passado
duas horas diante dessa obra-prima. Vejo que não é maior conhecedor de flores que de estilos;
não proteste quanto aos estilos - gritou ele num tom de raiva extremamente agudo -, o senhor
nem sequer sabe sobre o que está sentado, oferece ao seu traseiro um banquinho de estilo
Diretório por uma bergere Luís XIV. Qualquer dia há de tomar os joelhos da Sra. de Villeparisis
por um lavabo e nem se sabe o que fará neles. Da mesma forma, o senhor nem mesmo
reconheceu na encadernação do livro de Bergotte o dintel de miosótis da igreja de Balbec.
Existiria um modo mais límpido de lhe dizer: "Não se esqueça de mim"?
Eu encarava o Sr. de Charlus. Certamente, sua cabeça magnífica, e que repugnava,
levava contudo vantagem sobre a de todos os seus; dir-se-ia um Apolo envelhecido; porém uma
escuma olivácea, hepática, parecia estar a ponto de escorrer de sua boca ruim. Quanto à
inteligência, não se podia negar que a sua, por um vasto ângulo de compasso, abarcava muitas
coisas que estariam para sempre desconhecidas do duque de Guermantes. Mas, por mais que
algumas belas palavras colorissem todos os seus ódios, sentia-se que, ainda que em seu discurso
houvesse ora orgulho ofendido, ora um amor decepcionado, ou um rancor, sadismo,
impertinência, uma idéia fixa, aquele homem era capaz de assassinar e de provar, à força de
lógica e de hábeis palavras, que tivera razão em fazê-lo e nem por isso era menos superior em
cem côvados ao seu irmão, à sua cunhada, etc., etc...
- Assim como em As Lanças de Velásquez - continuou ele -, o vencedor avança na direção
do mais humilde, como deve fazê-lo todo indivíduo nobre, visto que eu era tudo e o senhor não
era nada, fui eu que dei os primeiros passos na sua direção. O senhor respondeu bobamente ao
que não me cabia denominar grandeza. Mas não me deixei desanimar. Nossa religião prega a
paciência. A que tive para com o senhor me será creditada, espero como igualmente o ter apenas
sorrido daquilo que poderia ser tachado de impertinência, se estivesse a seu alcance ser
impertinente com alguém que o ultrapassa de tantos côvados; mas enfim, senhor, já não se trata
mais disso. Submeti-o à prova que o único homem eminente do nosso mundo chama, com
espírito, prova da excessiva amabilidade e declara de direito ser a mais terrível de todas, a única
em condições de separar o joio do trigo. Eu lhe censuraria somente o tê-la suportado sem pois os
que triunfam dela são muito raros. Mas pelo menos, e essa conclusão que pretendo tirar das
últimas palavras que havemos de tratar aqui na Terra, julgo estar ao abrigo de seus intentos
caluniadores.
Até então, não havia imaginado que a cólera do Sr. de Charlus pudesse ter sido causada
por alguma frase desabonadora que lhe houvesse repetido. Interroguei minha memória; não falara
dele a ninguém. O malvado a construíra com todas as letras. Garanti ao Sr. de Charlus
absolutamente não dissera coisa alguma a seu respeito.
- Não creio ter podido aborrecê-lo ao dizer à Sra. de Guermantes que era ligado ao senhor.
Ele sorriu com desdém, fez altear-se a voz aos mais extremos registros e de lá ferindo com
doçura a nota mais aguda e insolente:
- Oh, senhor falou com extrema lentidão e em tom natural, como que se encantando, de
passagem, com as estranhezas dessa graça - descendente -, acho que o senhor prejudica a si
mesmo ao se acusar ter dito que possuímos "ligações". Não espero uma grande exatidão de
alguém que facilmente tomaria um móvel de Chippendale por uma cadeira rococó, mas enfim não
penso - acrescentou com afagos vocais à voz, mais maliciosos e que faziam flutuar em seus
lábios até mesmo urgir um sorriso encantador -, não penso que o senhor tenha dito, nem julgado;
que éramos ligados! Quanto ao fato de se ter gabado de ter sido apresentado à mim, de ter
conversado comigo, de me conhecer um pouco, de ter obtido, quase sem solicitação, a
possibilidade de um dia ser meu protegido; acredito pelo contrário, muito natural e inteligente que
o tenha feito. A enorme diferença de idade que existe entre nós permite-me reconhecer, sem
ridicularizar que essa apresentação, essas conversas, esse vago princípio de relação sejam para
o senhor, não me cabe dizer uma honra, mas enfim, pelo menos uma vantagem, e que julgo foi
tolice de sua parte não o tê-la divulgado, mas sim não ter sabido conservá-la. Acrescentarei até
disse ele, pensando bruscamente, e por um instante, da cólera altaneira a uma doçura de tal
modo repassada de tristeza que pensei fosse começar a chorar - que quando deixou sem
resposta a proposição que lhe havia feito em Paris, me pareceu de tal forma inaudito da parte do
senhor, pessoa que se afigurava de boa educação e de boa família burguesa (apenas neste
aditivo a sua voz teve um pequeno assobio de impaciência), que tive a ingenuidade de acreditar
em todas as historietas que não ocorrem nunca, nas quadras extraviadas, nos erros de endereço.
Reconhecia ser de minha parte uma grande ingenuidade, porém São Boaventura preferia crer que
pudesse voar a que um religioso mentisse. Enfim, tudo isso acabou, a coisa não o satisfez, não se
fala mais no assunto. Unicamente, parece-me que o senhor poderia ter-me escrito (e havia
mesmo um tom de choro em sua voz), nem que fosse apenas em consideração à minha idade. Eu
imaginara, em relação ao senhor, coisas infinitamente sedutoras, que evitara lhe contar. O senhor
preferiu recusar sem saber, é problema seu. Mas, como lhe digo, sempre se pode escrever. Eu,
em seu lugar, e mesmo no meu, o teria feito. Por causa disso, prefiro o meu lugar ao seu, e digo
por causa disso porque acredito que todos os lugares são iguais, e sinto mais simpatia por um
operário inteligente do que por muitos duques. Mas posso dizer que prefiro o meu lugar porque na
minha vida inteira, que já principia a ser bastante longa, sei que jamais fiz o que o senhor fez.
(Sua cabeça estava virada para a sombra, eu não podia ver se de seus olhos escorriam lágrimas,
como a sua voz dava a entender.) Dizia-lhe que dei cem passos em sua direção o que teve por
efeito que o senhor desse duzentos para trás. Agora é a minha vez de me afastar e nós não nos
conheceremos mais. Não guardei o seu nome, e sim o seu caso, para que, nos dias em que for
tentado a crer que os homens têm coração, cortesia ou simplesmente a inteligência de não deixar
escapar uma oportunidade sem igual, eu me lembre que isto será situá-los muito alto. Não, que o
senhor tenha dito que me conhecia quando isso era verdadeiro pois agora vai deixar de sê-lo só
posso achar que seja natural e o tenho por homenagem, ou seja, por agradável. Infelizmente,
noutro local e em circunstâncias diversas, o senhor teve palavras bem diferentes.
- Senhor, juro-lhe que não disse nada que pudesse ofendê-lo.
- E quem disse que me senti ofendido? - gritou ele com fúria, erguendo-se violentamente
no canapé onde até então permanecera imóvel, enquanto, ao passo que se crispavam as lívidas
serpentes escumosas de seu rosto, sua voz tornava-se alternadamente aguda e grave como uma
borrasca desencadeada e ensurdecedora. A força com que de hábito falava, e que fazia os
desconhecidos se virarem na rua, estava centuplicada como o é de um forte se, ao invés de ser
tocado ao piano, é executado pela orquestra e cada vez mais se transforma em fortíssimo. O Sr.
de Charlus uivava. - Pensa que está em condições de me ofender? Por acaso não sabe com
quem está falando? Julga que a saliva envenenada de quinhentos sujeitinhos seus amigos,
empilhados uns sobre os outros, conseguiria babar sequer sobre meus augustos artelhos?
Desde um momento, ao desejo de convencer o Sr. Charlus de que jamais dissera nem
ouvira dizer mal dele, havia sucedido uma raiva louca, provocada pelas palavras que lhe ditava
apenas, segundo achava, o seu imenso orgulho. Talvez fossem elas, aliás, ao menos em parte, o
efeito desse orgulho. Quase tudo o mais provinha de um sentimento que eu ignorava e ao qual,
portanto, não tinha culpa de não atribuir seu respeitável papel. Poderia ao menos, à falta do
sentimento desconhecido, mesclar de orgulho, se me lembrasse das palavras da Sra. de
Guermantes, um tom de loucura. Mas naquele momento, a idéia de loucura nem sequer me
apareceu ao espírito. Segundo achava, não havia nele mais que orgulho, e em apenas furor. Este
furor (no momento em que o Sr. de Charlus deixou de uivar para falar de seus augustos artelhos,
com uma majestade acompanhada de um esgar, uma expressão de vômito pelo nojo que lhe
causavam obscuros blasfemadores), este furor não se conteve mais. Com um movimento
impulsivo, eu quis quebrar alguma coisa, e, como um resto de discernimento me fazia respeitar
um homem tão mais velho que eu, e devido à sua dignidade artística, as porcelanas alemãs
colocadas a seu redor, precipitei-me para a cartola nova do barão, atirei-a ao assoalho, pisoteei
encarnicei-me em rebentá-la totalmente, arranquei-lhe o forro, rasguei a aba, sem escutar as
vociferações do Sr. de Charlus que continuavam, atravessando a peça para ir embora, abri a
porta. Para meu grande espanto, a cada lado desta, se mantinham dois lacaios que se afastaram
devagar para dar a impressão de que ali se achavam unicamente de passagem de serviço. (Mais
tarde soube seus nomes, um se chamava Burnier e o Charmel.) Não me enganei um só instante
com a explicação que seu ar despreocupado parecia me propor. Era inverossímil; três outras me
pararam menos: uma, que o barão recebia, por vezes, hóspedes contra quem poderia necessitar
de auxílio (mas por quê?), julgando necessário ter posto de socorro por perto; a outra, que,
atraídos pela curiosidade, tinha-se posto à escuta, não imaginando que eu saísse tão depressa; a
terceira que toda a cena que me fizera o Sr. de Charlus fora preparada e representada, e ele
próprio lhes pedira que escutassem, por amor ao espetáculo, junto a um erudito de que todos
tirariam proveito. Minha cólera não acalmara a do barão; mas a minha saída do que pareceu
causar-lhe viva dor. Chamou-me, mandou me chamar e, afinal, esquecendo que um momento
antes, ao falar de "seus augustos artelhos acreditara me fazer o testemunho de sua própria
deificação, correu as pressas, alcançou-me no vestíbulo e barrou-me a porta.
- Vamos, não se faça de criança, volte por um minuto; quem muito ama, bem diga, e, se o
castiguei muito, foi porque o amo de fato. -
Minha cólera passara, deixei seguir o verbo "castigar" e acompanhei o barão que,
chamando um lacaio, mandou, sem nenhum amor-próprio, que levasse os pedaços da cartola
destruída e a substituíssem por outra.
- Se quiser me dizer, senhor, quem me caluniou perfidamente - disse eu ao Sr. de Charlus-
ficarei para sabê-lo e confundir o impostor.
- Quem? Não o sabe? Não guarda lembrança do que fala? Pensa que as pessoas que me
prestam o serviço de me advertir dessas coisas não começam por me pedir segredo? E julga que
vou faltar ao que prometi?
- Senhor, é impossível dizer-me? - perguntei, buscando uma última vez em minha cabeça
(onde não encontrava ninguém) a pessoa a quem pudera ter falado do Sr. de Charlus.
- O senhor não me ouviu falar que prometi manter segredo a quem me informou? - disse
me com voz estridente. - Vejo que, ao gosto pelas conversas abjetas, o senhor junta o das
insistências vãs. Deveria ter pelo menos a inteligência de aproveitar esta última entrevista, e falar
para dizer algo que não seja exatamente nada.
- Senhor - respondi afastando-me -, insulta-me; estou desarmado, visto que tem várias
vezes a minha idade, a partida não é igual; por outro lado, não posso convencê-lo, jurei-lhe que
não disse nada.
- Então estou mentindo! - exclamou ele num tom terrível, e dando um tamanho salto que se
achou de pé a dois passos de mim.
- Enganaram-no.
Então, com voz suave, afetuosa, melancólica, como naquelas sinfonias que executam sem
interrupção entre os diversos trechos, e onde um gracioso scherzo amável, idílico, sucede aos
trovões do primeiro trecho:
- É bem possível - disse. - Em princípio, uma frase repetida raramente é verdadeira. Sua é
a culpa, se não tendo aproveitado as ocasiões de me visitar que eu lhe havia oferecido, o senhor
não pode fornecer-me, com essas palavras francas e diárias que criam a confiança, o preservativo
único e soberano contra uma palavra que o apresentasse como um traidor. Em todo caso,
verdadeira ou falsa, a frase realizou sua obra. Já não posso me livrar da impressão que ela me
causou. Não posso nem dizer que aquele que ama bastante castiga muito, pois castiguei-o muito,
mas já não o estimo. -
Dizendo tais palavras, ele me forçara a sentar de novo e tocara a campainha. Um novo
lacaio entrou.
- Traga bebidas, e diga que mandem preparar o cupê, -
Observei que não tinha sede, que era bem tarde e que aliás possuía um carro.
- Provavelmente, pegaram-no e o mandaram de volta - disse ele -; não se preocupe.
Mandei preparar para que o levem... Se receia, que seja muito tarde... poderia lhe dar um quarto
aqui...
Disse que minha mãe estaria inquieta.
- Ah, sim, verdadeira ou falsa, a frase realizou a sua obra. Minha simpatia um tanto
prematura florescera cedo e, como aquelas macieiras de que o senhor falava poeticamente em
Balbec não pôde resistir à primeira geada. -
Se a simpatia do Sr. de Charlus fora destruída, no entanto, ele não poderia agir de outra
maneira, visto que sempre dizendo que estávamos brigados, fazia-me ficar, beber, convidava-me
para dormir na casa e ia mandar-me levar à minha. Dava a impressão até de que receava o
instante de me deixar e achar-se a sós, esse tipo de temor um tanto ansioso que sua cunhada e
prima Guermantes me parecia sentir, uma hora atrás quando quis forçar-me a permanecer ainda
um pouco com uma espécie de igual queda passageira por mim, do mesmo esforço para
prolongar um minuto.
- Infelizmente - prosseguiu ele -, não possuo o dom de fazer reflorir o que uma vez foi
destruído. Minha simpatia pelo senhor está morta. Nada pode ressuscitá-la. Creio não ser indigno
de me confessar o lamento. Sempre me sinto um pouco feito o Booz de Victor Hugo: de viúvo, sou
só e sobre mim a noite desce.
Voltei a atravessar com ele o grande salão verdoengo. Disse-lhe, bem ao acaso, o quanto
o achava bonito seus móveis.
- Não é mesmo? Respondi
- É necessário amar alguma coisa. O madeiramento é de Bagard. E bonito mesmo, veja o
senhor, é que foi feito para combinar com as cadeiras de Beauvais e os consolos. Repare, estes
repetem o mesmo tema decorativo do madeiramento. Só existiam dois lugares onde ocorria o
mesmo: Louvre e a casa do Sr. d'Hinnisdal. Mas naturalmente, quando decidi morar nesta rua,
encontrou-se um velho palácio Chimay que ninguém tinha visto, pois aqui estava somente para
mim. Em suma, está muito bem. Poderia talvez ser melhor, mas enfim não está mal. Há coisas
bonitas não? O retrato de meus tios, o rei da Polônia e o rei da Inglaterra, de Mignard. Mas o que
estou lhe dizendo? O senhor o sabe tão bem quanto eu, pois esteve esperando neste salão. Não?
Ah, é que o levaram para o salão azul - disse ele com um ar seja de impertinência devido à minha
falta de curiosidade, seja de superioridade pessoal e por não ter indagado porque havia feito
esperar. - Olhe, neste gabinete há todos os chapéus usados por Madame Élisabeth, pela princesa
de Lamballe e pela Rainha. Não lhe interessa, dir-se-ia que o senhor nem está vendo. Talvez
esteja sofrendo de uma afecção do nervo óptico. Se gosta mais desse tipo de Natureza, eis um
arco-íris de Turner que principia a brilhar entre esses dois Rebrancits, como sinal de nossa
reconciliação. Ouça: Beethoven se junta.
E, de fato, distinguiam-se os primeiros acordes da terceira parte da sinfonia Pastoral, "A
alegria após a tempestade", executados por músicos junto de nós, sem dúvida no andar de cima.
Perguntei ingenuamente se por acaso tocavam aquilo e quem eram os músicos.
- Bem, não se sabe. Não se sabe nunca. São músicos invisíveis. Lindo, não? - disse-me
num tom levemente impertinente e que, entretanto, lembrava um pouco a influência e o acento de
Swann. - Mas o senhor importa-se com isso como um peixe com uma maçã. Deseja voltar para
casa, arriscando-se a faltar com o respeito a Beethoven e a mim. Ergue contra si mesmo o
julgamento e a condenação - acrescentou num tom afetuoso e triste, ao chegar o momento da
minha partida. - Desculpar-me-á por não acompanhá-lo como as boas maneiras me obrigariam a
fazer disse-me. - Desejoso de não mais revê-lo, pouco me importa passar cinco minutos mais com
o senhor. Todavia, estou cansado e tenho muito que fazer. - No entanto, reparando que o tempo
estava bom: - Muito bem! Sim, vou subir ao carro. Está fazendo um luar magnífico, que irei
contemplar no Bois depois de o ter deixado em casa. Como! O senhor não sabe se barbear,
mesmo numa noite em que janta na cidade ainda mostra alguns pelos - comentou, segurando-me
o queixo entre dois dedos, por assim dizer magnetizados, que, depois de resistirem por um
momento, subiram até as minhas orelhas como os dedos de um cabeleireiro. - Ah, seria agradável
olhar este "luar azul" no Bois com alguém como o senhor falou-me com uma súbita doçura como
que involuntária; e, depois, com ar triste: - Pois ainda assim o senhor é gentil, poderia sê-lo mais
que ninguém - acrescentou, tocando-me paternalmente o ombro. - Outrora, devo dizer que o
achava bem insignificante. -
Eu deveria pensar que ele me considerava como tal, ainda hoje. Bastava lembrar-me da
raiva com que me falara há meia hora apenas. Apesar disso, tinha a impressão de que ele estava
sendo sincero naquele momento, que seu bom coração triunfava do que eu supunha ser um
estado quase delirante de suscetibilidade e orgulho. O carro estava à nossa frente, e ele ainda
encompridava a conversa.
- Vamos - disse de repente -; suba. Em cinco minutos iremos até sua casa. E lhe darei uma
boa-noite que cortará rente e para sempre as nossas relações. Já que devemos nos separar de
uma vez por todas, é preferível que o façamos como na música, num acorde perfeito. -
Apesar dessas afirmações solenes de que não nos veríamos nunca mais, eu teria jurado
que o Sr. de Charlus, desgostoso por não ter sabido controlar-se há pouco, temendo me haver
magoado, não se aborreceria se me revisse mais uma vez. Não me enganava, pois, ao cabo de
um momento:
- Ora, ora! Pois não é que ia me esquecendo do principal? - disse ele. - Em memória da
senhora sua avó, mandei encadernar para o senhor uma curiosa edição da Sra. de Sévigné. Eis o
que vai impedir este nosso encontro de ser o último. É preciso que a gente se console, dizendo
que raramente se liquidam num dia os assuntos complicados. Veja quanto tempo durou o
Congresso de Viena.
- Mas eu poderia mandar buscá-lo sem o incomodar - respondi atenciosamente.
- Queira calar-se, bobinho - retrucou encolerizado-; e não tinha o ar grotesco de considerar
como coisa de pouca monta a honra de ser provavelmente (não digo certamente, pois será talvez
um lacaio que - entregará os volumes) recebido por mim. - Recobrou-se: - Não queria, deixá-lo
com tais palavras. Nada de dissonância; antes o silêncio eterno do acorde dominante! - Era por
causa dos próprios nervos que parecia temer o regresso imediatamente após as ásperas palavras
de briga. - Não quer vir até o Bois - me disse, num tom antes afirmativo que interrogativo segundo
me pareceu, não porque não quisesse me convidar, mas por recear que seu amor-próprio
sofresse uma recusa. - Muito bem, então - disse, alongando o assunto - é o momento em que,
segundo Whistler, os burgueses voltam para casa (talvez quisesse ferir meu amor-próprio) e é
quando convém começar a olhar. Mas o senhor nem sabe mesmo quem é Whistler. -
continua na página 250...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Minha cólera passara)
Volume 7
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