sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Neve (d)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI
Neve

continuando...

     Afastou-se da parede, tomando impulso com o ombro. Mas apenas se distanciou do galpão, dando um único passo para a frente, o vento feriu-o com verdadeiros golpes de foice e rechaçou-o até o abrigo. Indiscutivelmente era esse o lugar mais indicado para ele. Por enquanto, o jovem devia conformar-se com isso, além do quê, tinha plena liberdade de encostar o ombro esquerdo, para variar, de apoiar-se na perna direita e de sacudir a outra para revigorá-la. “Com um tempo destes”, disse de si para si, “a gente não deve sair de casa. Um pouco de variação pode ser admissível, mas não a mania de inovações nem o desafio da Dona Borrasca. Fica quietinho e deixa pender a tua cabeça, uma vez que está muito pesada. A parede é boa. As tábuas são de madeira. Parece mesmo que se desprende delas um certo calor, se é que aqui se pode falar de calor. Um discreto calor natural da madeira, ou talvez apenas um produto da imaginação, coisa subjetiva... Vejam só todas essas árvores! Ah, esse clima vivo dos homens vivos! Que perfume!...”
     Um parque estendia-se a seus pés, sob a sacada onde ele se encontrava; um vasto parque de luxuriante verdor, formado de árvores frondosas – olmos, plátanos, faias, bordos, bétulas – levemente matizadas quanto ao colorido da folhagem abundante, fresca, lustrosa, com as copas agitando-se num suave sussurro. Um ar delicioso, úmido, embalsamado pelas árvores, envolvia a região. Um aguaceiro quente vinha se abatendo, mas a chuva parecia iluminada. Até as alturas do céu via-se a atmosfera resplandecer de gotinhas cintilantes. Que beleza! Ah, esse sopro do torrão natal, o aroma e a plenitude da planície, depois de tão prolongada privação! O ar ressoava com vozes de aves, pios, silvos, gorjeios, chilidos e soluços, cheios de fervor, de graça e de doçura, sem que se enxergasse um único passarinho. Hans Castorp sorriu, respirando gratamente. E o quadro tornava-se ainda mais belo. Um arco-íris curvava-se sobre um lado da paisagem, um arco completo e nítido, puro na sua magnificência, com o brilho úmido de todas as suas cores, que, untuosas como óleo, inundavam o verde espesso e reluzente. Mas isso parecia música, era como o som intenso de harpas, mesclado de flautas e violinos! O azul e o violeta, sobretudo, espalhavam-se maravilhosamente. Tudo se confundia com eles, como por um feitiço, transformando-se, evoluindo de modo sempre e cada vez mais belo. Lembrava aquele dia, anos atrás, quando Hans Castorp tivera ensejo de ouvir um cantor de fama mundial, um tenor italiano, de cuja garganta partiam sons de uma arte benéfica e de uma força abençoada, inundando os corações dos homens. Sustentara esse homem uma nota aguda, linda desde o começo; aos poucos, porém, de momento a momento, a harmonia apaixonada descortinara-se, ampliara-se, tomando volume, iluminara-se com um esplendor mais e mais deslumbrante. Um a um, os véus que antes ninguém percebera se haviam desfeito; caíra mais um, o último, revelando, segundo o pensamento de todos, a luz suprema, a luz mais pura, mas seguira-se outro e ainda outro – incrível! –, o derradeiro, desencadeando tamanha exuberância de fulgor e de perfeição banhada em lágrimas, que um rumor surdo de arrebatamento, soando quase como um protesto ou uma objeção, elevava-se do seio da multidão. Ele próprio, o jovem Hans Castorp, fora tomado de soluços. E o mesmo lhe acontecia agora, em face dessa paisagem que se metamorfoseava, se desdobrava em progressiva transfiguração. O azul a pairar em toda parte... Os véus luzentes da chuva iam caindo. Eis que surgiu o mar, um mar, o mar do sul, de um azul profundo e saturado, refulgindo de luzes argentinas, com uma belíssima enseada a abrir-se vaporosa, para um lado, enquanto o outro estava engastado em montanhas de azul cada vez mais pálido. No meio da baía emergiam ilhas, onde cresciam palmeiras e resplandeciam casinhas brancas por entre bosques de ciprestes. Oh, oh! Eram demais. Ele não merecia tudo isso. Que bem-aventurança de luz, de absoluta pureza do céu, de frescor de águas ensolaradas! Hans Castorp jamais vira aquilo, nem coisa semelhante. Nas suas viagens de férias mal passara pelas regiões do sul. Conhecia o mar áspero, o mar cinzento, ao qual se apegava com sentimentos vagos e pueris. Mas nunca chegara a ver o Mediterrâneo, Nápoles, a Sicília ou a Grécia. E todavia recordava-se. Sim, por estranho que pareça, o que Hans Castorp fazia nesse momento era reconhecer. “Ah, sim! É isso!”, exclamou nele uma voz, como se tivesse levado no seu coração, desde tempos imemoriais, às escondidas e sem confessá-lo a si próprio, toda essa alegria azul, irradiada pelo sol. E esses “tempos imemoriais” eram vastos, infinitamente vastos, tal e qual o mar que se abria à sua esquerda, ali onde o céu, num tom delicado de violeta, descia até as águas.
     O horizonte era alto; o espaço dava a ideia de elevar-se, o que se devia ao fato de Hans ver o golfo de cima, de certa altura. Em forma de promontórios abraçavam-no as montanhas coroadas de selvas; entravam no mar, retrocediam em semicírculo, do centro do quadro, até o ponto onde se encontrava o jovem e mais longe ainda. Era uma costa rochosa, em cujos degraus de pedra aquecidos pelo sol se achava acocorado. À sua frente inclinava-se a ribeira pedregosa, escadeada, coberta de musgos e brenhas, até uma praia plana, onde o cascalho, por entre os juncos, formava angras azuladas, pequenos portos e lagoas avançadas. E essa região banhada pelo sol, essas margens de fácil acesso, essas bacias risonhas no meio de rochedos, bem como o mar até as ilhas distantes entre as quais iam e vinham embarcações – tudo estava povoado. Homens, filhos do sol e do mar, mexiam-se ou repousavam em toda parte, uma humanidade bela e jovem, sensata e jovial, tão agradável de se ver que o coração de Hans Castorp se dilatava todo num sentimento amplo, quase doloroso, de amor.
     Mancebos adestravam cavalos; corriam, com a mão no cabresto, ao lado dos animais que trotavam relinchando e sacudindo a cabeça; montavam-nos sem sela e forçavam-nos a entrar na água, batendo com os calcanhares desnudos os flancos da cavalgadura, enquanto os músculos das espáduas, sob a pele trigueira, jogavam ao sol. Os gritos que trocavam entre si ou dirigiam às montarias tinham qualquer coisa de mágico. À margem de uma enseada que penetrava profundamente na terra firme, e cujas ribanceiras se espelhavam como num lago alpino, havia moças dançando. Uma delas, cujos cabelos atados na nuca tinham um encanto singular, estava sentada, com os pés enterrados numa concavidade do solo, e tocava uma flauta pastoril. Por cima dos dedos ágeis, seu olhar vagava em direção às companheiras, que, nos seus largos e flutuantes vestidos, executavam os passos da dança, ora isoladas, sorridentes, com os braços abertos, ora aos pares, com as fontes graciosamente coladas umas nas outras. Atrás das costas da flautista, costas alvas, longas, delgadas, que a posição dos braços tornava redondas, viam-se outras irmãs, sentadas ou em pé, de mãos dadas, conversando calmamente e contemplando a cena. A maior distância, alguns jovens exercitavam-se no tiro de arco. Que aprazível e ameno quadro! Os mais velhos ensinavam a uns adolescentes de cabelos encaracolados como retesar o arco e apontá-lo ao alvo; rindo, amparavam os novatos cambaleantes sob o rechaço da corda, quando a seta se desprendia dela com um sussurro. Outros pescavam com anzol. Achavam-se de bruços nas lajes dos penedos da costa, com uma das pernas balouçando no ar, enquanto mergulhavam a linha na água. Palestrando calmamente voltavam a cabeça para o vizinho, que reclinava o corpo para lançar muito longe a isca. Ainda outros estavam ocupados em transportar ao mar, arrastando, empurrando, levantando, um barco de alto bordo, provido de mastro e vergas. Crianças brincavam e exultavam no meio da rebentação. Uma jovem mulher, estendida no solo, de costas, olhava para trás, enquanto com uma das mãos apertava contra os seios o vestido floreado, e com a outra, avidamente, procurava alcançar um fruto ornado de folhas, que um moço de ancas estreitas, de pé atrás dela, brincando lhe oferecia e retirava. Havia vultos recostados nos nichos dos rochedos. Outros hesitavam à beira d'água, experimentando-lhe o frescor com a ponta do pé e segurando os ombros com os braços cruzados. Alguns casais passeavam ao longo da praia, e perto da orelha da jovem encontrava-se a boca de quem a guiava carinhosamente. Cabras felpudas saltavam de rocha em rocha, guardadas por um jovem pastor que se quedava sobre uma elevação, com uma mão na cintura, apoiando a outra num comprido cajado; um chapeuzinho de abas dobradas para trás cobria-lhe os crespos cabelos castanhos.
     “Mas isso é um encanto!”, pensou Hans Castorp com toda a sinceridade. “É realmente delicioso e cativante! Como são formosos, sadios, sensatos e felizes! Sim, não somente têm beleza, mas também seriedade e graça íntima. É isso o que tanto me comove e faz com que me apaixone por eles: o espírito e a mentalidade que formam a base do seu ser e lhes determinam a união e a convivência!” Referia-se àquela grande amabilidade e às considerações iguais para todos, que os filhos do sol usavam nas suas relações recíprocas. Existia ali um respeito natural, escondido sob o sorriso que uns demonstravam aos outros, a cada passo, um respeito manifestado quase imperceptivelmente, e que todavia tinha a sua raiz numa formação comum a todos, numa idéia arraigada neles. Havia até um quê de dignidade e de rigor, mas todo diluído na alegria, e que se tornava sensível nos seus atos somente em forma de certa inefável influência espiritual, fundada numa seriedade nada sombria e numa piedade razoável, embora não faltasse a tudo isso o lado cerimonioso. Pois ali, numa pedra redonda coberta de musgo, estava sentada uma jovem mãe, que retirara de um dos ombros o vestido pardo e saciava a sede do filhinho. E todos os que passavam perto dela saudavam-na de um modo especial que resumia tudo quanto ficava tão expressivamente inexprimido na atitude geral dessas criaturas. Os jovens, voltando-se para a mãe, cruzavam ligeiramente os braços sobre o peito, num gesto rápido e formal, e inclinavam a cabeça com um sorriso. As moças apenas esboçavam uma genuflexão, semelhante àquela com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor; mas, ao mesmo tempo, faziam-lhe cordiais, alegres e vivos sinais com a cabeça, e essa mistura de reverência comedida e de amizade jovial, assim como a vagarosa brandura com que a mãe, que apertava o seio com o indicador, para ajudar o pequerrucho, tirava dele os olhos e retribuía os cumprimentos com outro sorriso – tudo isso arrebatava a alma de Hans Castorp. Não se cansava de olhar e, contudo, se perguntava, angustiado, se lhe era permitido olhar, se esse ato de encarar aquela felicidade civilizada, cheia de sol, não era um crime para ele, o intruso, que se sentia lerdo com os seus sapatos, e falta de nobreza e garbo.
     Parecia não haver inconveniente. Um belo menino, cuja espessa cabeleira penteada para um lado avançava além da testa e caía sobre a fronte, achava-se embaixo do lugar onde Hans Castorp estava sentado. Com os braços cruzados sobre o peito, mantinha-se distante dos companheiros, sem dar mostras de tristeza ou de rancor, senão apenas de perfeita calma. E o rapaz divisou Hans Castorp; fixou nele o olhar, e seus olhos passaram entre o homem que estava à espreita e as imagens da praia, observando o espião. De repente, porém, levantou a vista, enxergando ao longe, por cima do estranho, e de um instante para outro desapareceu do lindo rosto de linhas clássicas, ainda meio pueris, o sorriso comum a toda essa gente que tinha a sua origem numa consideração cortês e fraternal. Sem que o cenho se tivesse anuviado, assomou-lhe no semblante uma gravidade como que pétrea, inexpressiva, insondável, um retraimento frio como a morte, que encheu o desassossegado Hans Castorp de pálido terror, mesclado de um vago pressentimento da significação dessa atitude.
     Também ele virou a cabeça... Poderosas colunas sem base, compostas de blocos cilíndricos e de cujas junturas brotava musgo, erguiam-se atrás dele; as colunas de um pórtico de templo, até o qual conduziam duas escadarias, com um vão entre si. Hans Castorp encontrava-se sentado num dos degraus. Com o coração opresso, levantou-se, desceu a escada, dirigindo-se para o lado, e entrou numa extensa galeria. Atravessou-a e seguiu um caminho lajeado que o conduziu até outros propileus. Passou também por estes e defronte de si viu o templo maciço, cinzento-esverdeado, corroído pela inclemência do tempo. Escadas íngremes levavam às fundações. O largo frontão repousava sobre os capitéis de vigorosas e quase atarracadas colunas, que se adelgaçavam pata cima, e em cuja estrutura um ou outro dos tambores canelados, que se deslocara, formava uma saliência lateral. Laboriosamente, às vezes recorrendo ao apoio das mãos, por entre suspiros que lhe arrancava a crescente angústia do coração, Hans Castorp galgou os altos degraus e alcançou a floresta das colunas do peristilo. Esta era muito profunda, e o jovem passeou por ela como por entre os troncos de um bosque de faias à beira do mar descorado. Evitou penetrar-lhe no âmago e esquivou-se do centro. Mas terminou voltando-se para ele e chegou ao lugar onde se separavam as fileiras de colunas. Ali deparou com um grupo de estátuas, duas figuras de mulheres talhadas em pedra, sobre um pedestal, mãe e filha, segundo parecia; uma, sentada, mais idosa, mais digna, muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas acima dos olhos vazios, sem pupilas, trajava uma túnica flutuante, um manto pregueado e um véu que lhe cobria os cabelos ondulados de matrona; a outra, de pé, abraçada maternalmente pela primeira, com um rosto redondo de donzela, ocultava braços e mãos juntos nas dobras do vestido.
     Enquanto Hans Castorp contemplava o grupo, o seu coração, por motivos obscuros, fazia-se ainda mais pesado, mais temeroso e mais opresso de presságios. Mal se animava e, contudo, se via forçado a contornar as figuras para franquear, atrás delas, a segunda colunata dupla. Aí encontrou aberta a porta brônzea do santuário, e os joelhos do pobre jovem quase cederam diante do espetáculo que se lhe oferecia aos olhos estarrecidos. Duas mulheres grisalhas, seminuas, de cabelos desgrenhados, com seios pendentes de bruxa e mamilos do comprimento de um dedo, entregavam-se lá dentro, no meio de chamejantes braseiros, a manipulações horrorosas. Por cima de uma bacia esquartejavam uma criancinha. Dilaceravam-na com as mãos, num furioso silêncio – Hans Castorp divisou os finos cabelos louros poluídos de sangue –, e devoravam os pedaços. Os frágeis ossinhos estalavam entre as suas presas, e o sangue pingava dos lábios selvagens. Um pavor gélido paralisou Hans Castorp. Fez menção de tapar os olhos com as mãos e não conseguiu. Quis fugir e não pôde. E elas acabavam de descobri-lo, no meio da sua atividade abominável. Agitaram os punhos ensanguentados, ralhando sem voz, mas com extrema vulgaridade, em termos obscenos, na gíria da terra de Hans Castorp. Este se sentiu mal, pior do que nunca. Desesperadamente esforçou-se por sair do lugar – e na mesma posição em que, durante essa tentativa, caíra de lado junto a uma coluna, encontrou-se na neve, ao pé do galpão, deitado sobre um braço, com a cabeça encostada e as pernas providas de esquis estendidas à sua frente. Ainda lhe ecoavam nos ouvidos aquelas vozes surdas, proferindo invectivas medonhas, e o terror glacial que se apoderara dele continuava a possuí-lo.
     No entanto, não chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os olhos, aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e também pouco lhe importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de templo ou a um galpão. Em certo sentido prosseguia sonhando, se não em imagens, ao menos em pensamentos, porém de forma não menos atrevida e curiosa.

“Logo vi que isso era um sonho!”, devaneou de si para si. “Um sonho encantador e pavoroso. No fundo o percebia desde o começo. Tudo foi concepção minha, o parque de árvores frondosas e a chuva deliciosa e todo o resto, as imagens lindas e as monstruosas. Quase o sabia de antemão. Mas como é possível saber uma coisa dessas e concebê-la para si mesmo, tornando se a um tempo feliz e perplexo? Donde tirei aquele belo golfo semeado de ilhas e depois o recinto do templo, ao qual me guiaram os olhares do simpático rapaz que se mantinha isolado? Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta. Aqui me acho ao pé da minha coluna e ainda sinto em mim os vestígios reais do meu sonho, o horror frio que experimentei ante a ceia sangrenta, e também a alegria íntima originada pelas cenas anteriores, quando vi a felicidade e os costumes piedosos da humanidade branca. Cabe-me – afirmo eu –, tenho o genuíno direito de me deitar aqui e de me entregar a esse tipo de sonhos. Fiquei sabendo muita coisa no convívio com a gente daqui, sobre a deserção e a razão. Perdi-me com Naphta e Settembrini numa montanha perigosíssima. Sei tudo a respeito do homem; conheci a sua carne; devolvi o lápis de Pribislav Hippe à enferma Clávdia. Mas quem conhece o corpo e a vida conhece a morte. Isso, entretanto, não é tudo, mas apenas o começo, pedagogicamente falando. É preciso acrescentar a outra metade, o oposto. Pois todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de exprimir aquele que se tem pela vida, como demonstra a humanística Faculdade de Medicina, que sempre se dirige à vida e à sua enfermidade num latim muito cortês e não é senão um matiz desse grande e urgentíssimo assunto cujo nome pronuncio com a maior simpatia: é o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu estado e sua posição. Não o desconheço; aprendi muito aqui em cima; desde a planície deixei-me arrastar a tamanhas alturas que quase perdi o fôlego. Mas agora, do pé da minha coluna, abre-se uma vista nada má... Sonhei com a posição do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam uma conclusão muito sutil e elegante. Quero, com toda a minha alma, aderir a eles e não a Naphta, nem tampouco a Settembrini. Ambos são charlatães. Um é devasso e malicioso, ao passo que o outro não deixa de tocar a corneta da razão e imagina ser capaz de desenlouquecer os próprios doidos, o que me parece absurdo. É o espírito filisteu, é mera ética, é irreligiosidade, disso tenho certeza. Mas também não desejo tomar o partido do pequeno Naphta, com a sua religião que é apenas um guazzabuglio de Deus e do Diabo, do bem e do mal, que só serve para fazer o indivíduo atirar se de cabeça, a fim de mergulhar misticamente no todo. Esses dois pedagogos! Suas próprias divergências e oposições não passam de um guazzabuglio e de um confuso fragor de batalha, que não pode aturdir a quem tiver o cérebro mais ou menos livre e o coração piedoso. A questão da aristocracia! A distinção! Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza – há oposição entre elas? Eu pergunto se constituem problema. Não! Não são problemas, e tampouco o é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsistente. É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição, cumpre lhe viver de um modo fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições que existem por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isso constitui a liberdade do seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre para ela, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom. Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, nas pontas dos pés, quando ela está perto. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e volúpia. A volúpia – clama o meu sonho –, não o amor! A morte e o amor, não, isso não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e ‘reinar’ bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com isso vou acordar... Pois segui o meu sonho até o fim. Alcancei o meu objetivo. Há muito que eu procurava essa ideia, no lugar onde me apareceu Hippe, no meu compartimento de sacada, e em toda parte. A minha busca me levou às montanhas cobertas de neve. Agora a possuo. Meu sonho revelou-a para mim com tanta nitidez que sempre a guardarei na memória. Sim, ela me encanta e me dá calor. Meu coração bate com força e sabe por quê. Não pulsa somente por razões físicas, assim como as unhas de um cadáver continuam crescendo; pulsa de um modo humano e certo, devido ao espírito feliz. É como uma poção, esta ideia do meu sonho, melhor do que vinho do Porto ou cerveja inglesa. Circula pelas minhas veias como o amor e a vida, e me induz a arrancar-me do sono e dos devaneios, que, como não ignoro, põem em gravíssimo perigo a minha jovem vida... Levanta-te, levanta-te! Abre os olhos! Essas pernas aí na neve são os teus próprios membros! Domina-te e coloca-te de pé! Olha só, faz bom tempo!” 

     Era imensamente difícil a libertação dos laços que o enredavam e procuravam mantê-lo deitado. Mas o impulso que Hans Castorp soubera tomar era mais forte. Bruscamente soergueu se no cotovelo; com um esforço enérgico dobrou os joelhos; puxando, apoiando-se, fazendo ginástica, conseguiu pôr-se de pé. Calcou a neve com os esquis; bateu os braços em torno das costelas e sacudiu os ombros, enquanto lançava olhares nervosos e forçados em todas as direções e para o céu, onde um pálido azul assomava entre nuvens cinzento-azuladas, fininhas como um véu, que singravam devagar, descobrindo o delgado crescente da lua. Leve crepúsculo. Nada de tempestade nem de nevada. A parede rochosa do outro lado, com a encosta hirsuta de pinheiros, era plena e claramente visível, e jazia em paz. A sombra subia até meia altura, ao passo que a metade superior estava iluminada num delicadíssimo cor-de-rosa. Que é que havia? Que se passava com o mundo? Era manhã? E ficara ele deitado na neve durante toda a noite, sem morrer de congelamento, ao contrário do que se lia nos livros? Nenhum dos seus membros estava entanguido, nenhum deles se fragmentava com um ruído agudo, enquanto ele calcava o solo, agitando-se e batendo-se, o que fazia sem cessar. Mas ao mesmo tempo seus pensamentos esforçavam-se por examinar a fundo a situação. Sem dúvida, as orelhas, as extremidades das mãos e os dedos dos pés achavam-se entorpecidos, não, porém, num grau mais intenso do que muitas vezes lhe acontecera em noites de inverno, durante o repouso na sacada. Uma tentativa de tirar o relógio foi coroada de êxito. Ele andava. Não parara, como costumava fazer quando Hans Castorp se esquecia de lhe dar corda à noite. Estava ainda longe de marcar cinco horas. Faltavam doze ou treze minutos. Inacreditável! Seria possível que somente houvesse levado uns dez minutos ou pouco mais, estendido na neve, remoendo tantas imagens deleitantes ou medonhas, tantos pensamentos ousados, enquanto o tumulto hexagonal sumia com a mesma rapidez com que chegara? Nesse caso tivera uma sorte notável, do ponto de vista do regresso seguro. Pois duas vezes os seus sonhos e as suas fantasias haviam tomado um rumo que o fizera sobressaltar se reanimado: a primeira vez, de horror; a segunda, de alegria. Parecia que a vida tinha boas intenções com seu filho enfermiço, extraviado nas alturas...
     Fosse como fosse, raiasse para ele a manhã ou a tarde – indubitavelmente tratava-se ainda do crepúsculo –, em todo caso não existia nenhum obstáculo, nas circunstâncias gerais ou no estado particular de Hans Castorp, que o pudesse impedir de regressar. E foi o que fez. Com um arranco grandioso, quase em linha reta, encaminhou-se ao vale, onde, ao chegar, já encontrou as lâmpadas acesas, embora os restos da luz do dia, conservada pela neve, lhe tivessem bastado plenamente durante o caminho. Desceu pelo Bremenbühl, ao longo do bosque, e às cinco e meia alcançou a “aldeia”, onde deixou os esquis na casa do merceeiro. Foi descansar no cubículo de Settembrini, no sótão, e contou como se deixara surpreender pela tempestade de neve. O humanista mostrou-se sumamente alarmado. Ergueu a mão por cima da cabeça; censurou-o energicamente pela perigosa imprudência e não tardou em acender o crepitante fogareiro de álcool, a fim de preparar para o jovem exausto um café, cuja força, no entanto, não impediu que Hans Castorp adormecesse na cadeira.
     Uma hora mais tarde, a atmosfera ultracivilizada do Berghof circundava-o com sua aura acariciadora. Por ocasião do jantar, Hans Castorp mostrou enorme apetite. O que sonhara estava em vias de apagar-se. O que pensara já não o compreendia naquela mesma noite.

continua pág 325...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (d)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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